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Charles, Fonte Nova, Bahia: em 1989, o bicho pegou na Copa América no Brasil

Paulo Junior 24 de julho de 2021

Para além do título no Maracanã há uma das grandes histórias de rejeição da amarelinha, envolvendo a torcida baiana, o time de Lazaroni e um atacante que seria adorado por Maradona

 

Não fazia tanto tempo, o Brasil havia se tornado o maior produtor de laranja do planeta, superando os Estados Unidos. O volume, muito vinculado à produção paulista, também sempre foi relevante em solo baiano e, talvez tomado por uma sensação de fartura, passou a ser fruto de desperdício. Pelo menos foi a impressão naquele primeiro de julho de 1989, em Salvador, mais precisamente junto da clientela dos varejistas do entorno do estádio da Fonte Nova, tarde de sábado. Homens, mulheres, idosos e crianças, esbanjando a safra pulsante, atiraram laranjas em quem jogasse bola no time de amarelo, via de regra gente chegada de São Paulo, do Rio de Janeiro ou da Europa.

– Olha a laranja!

Basta abrir um pouco a lupa para encontrar a outra versão que, ao longo de trinta anos, é a que ficou para a história: revoltada com a ausência do único jogador do futebol local no elenco da Seleção Brasileira que estreava na Copa América, fora da lista de inscritos para a primeira fase divulgada na véspera, a torcida baiana comprou uma briga contra a equipe nacional. Eles queriam ver Charles, atacante do Esporte Clube Bahia e campeão brasileiro ainda com tinta fresca, mas o técnico Sebastião Lazaroni o deixou fora dos 20 escolhidos na última hora.

– Olha a laranja para jogar na cabeça do Lazaroni!

Charles não jogou, e o povo de Salvador se colocou entre o desprezo e o protesto na recepção ao time nacional, protagonizando uma das maiores imagens de rejeição em solo pátrio da então tri, hoje pentacampeã do mundo, em toda a história.

Agora, se num novo tempo de Copa América três décadas depois, um Brasil x Venezuela na Fonte Nova, em junho próximo, não tem nenhum Charles para gritar, voltamos àquele intenso episódio, entre laranjas, ovos, bandeiras queimadas e gols de Bebeto — baiano, olha a ironia.

O Bahia de 1988 (e 1989)

Soberano na disputa estadual, o Bahia conquistava em 1988 seu título baiano de número 37, um tricampeonato consecutivo, numa época em que o Vitória somava apenas 10. Era um momento de pensar grande, e o time era forte. O ótimo zagueiro Pereira, o clássico meio-campista Paulo Rodrigues e o meia Bobô, aquele que todos amaram a elegância sutil tal qual canta a música de Caetano, terminariam a temporada na seleção Bola de Prata da Placar. João Marcelo era um jovem defensor revelado no clube que logo chamou a atenção, e Zé Carlos terminou artilheiro do time no Brasileiro — carismático, era um dos mais próximos da torcida. Osmar foi um goleador muito habilidoso, e Marquinhos, um velocista, se deu bem na reta final. Por fim, bem, havia um tal de Charles Fabian Figueiredo Santos.

Bahia campeão do Brasil pela segunda vez. Foto: Divulgação EC Bahia.
 

A campanha do Bahia era irregular, mas o time se mantinha vivo na briga pela classificação no campeonato nacional. Na segunda fase, já fim de novembro, a torcida começou a implicar com Renato, um centroavante gaúcho que não atravessava grande fase. Entrou Charles. O rapaz de 20 anos, nascido no interior, marcou um golaço na sua chance diante do Corinthians (foi no finalzinho do jogo, e ali ele virou Charles, O Anjo 45, como previra Jorge Ben Jor), e depois fez também o único tento na vitória contra o Criciúma, firmando lugar no time titular. Por um capricho da tabela, o título do Vasco no returno abriu uma vaga na fase final para o Bahia, o mais bem colocado entre os supostamente eliminados.

O mata-mata aconteceu só em 1989, respeitando de forma pioneira um mês de férias para os jogadores de futebol, que pararam por 30 dias entre dezembro e janeiro. Charles, a essa altura absoluto no time de cima, foi um dos destaques do Bahia que passou por Sport e Fluminense para chegar à final frente ao Internacional, batido em Salvador e controlado no Beira-Rio. O suficiente para a volta olímpica tricolor na capital do Rio Grande do Sul, a última conquista nacional de um quadro do Nordeste.

Isso já era fevereiro de 1989, e a Libertadores começou sem respiro, com o Bahia vencendo o grupo que tinha além do Internacional a dupla venezuelana Marítimo e Deportivo Táchira. Naturalmente, a Seleção Brasileira viu coisa boa ali.

Bahia x Inter, agora na Libertadores | Crédito: Revista Placar

Em dez de maio, no Castelão, em Fortaleza, Sebastião Lazaroni recebia o Peru para seu quinto jogo no comando da equipe. A camisa 10 era de Bobô, agora já jogador do São Paulo, e a 9 era de Charles. Zé Carlos, parceiro de Bahia, entrou no segundo tempo com a 17. O Brasil venceu por 4 a 1, e Charles fez dois gols.

Em junho, ele foi novamente titular, agora nos 4 a 0 contra Portugal, deixando mais um golzinho, desta vez no Maracanã. Veio então uma excursão para a Europa e Charles foi discreto: o Brasil perdeu para Suécia, Dinamarca e Suíça, e empatou com o Milan. O jogo na Itália aconteceu a menos de duas semanas da Copa América.

Do Rio a Salvador

Depois da viagem à Europa, treinos em Teresópolis, no Rio de Janeiro, até o embarque para Salvador na noite de 29 de junho, quinta-feira. O último coletivo em gramados fluminenses terminou 4 a 2 para os titulares, com Charles marcando um dos gols dos reservas, time que acabou completado por alguns juvenis do Vasco.

A delegação chegou à capital baiana com 19 nomes confirmados. Lazaroni tinha até o almoço do dia 30, véspera da estreia, para entregar a lista oficial de 20 jogadores para a Conmebol.

“Com isso [o prazo foi prorrogado pela organização do torneio], o técnico Lazaroni ganhou mais algumas horas para decidir quem ocupará a última vaga da sua relação, uma vez que já decidiu 19 nomes. No entanto, pela recepção que a Seleção Brasileira teve na sua chegada ontem a Salvador, tudo indica que o vigésimo nome da lista do técnico será o baiano Charles, o mais festejado da delegação”, acordou o Jornal do Brasil.

Antes do desfecho, dois detalhes intrometidos na decisão. Primeiro que o regulamento da Copa América permitia duas trocas e mais dois novos inscritos para a segunda fase, ou seja, uma seleção podia terminar a campanha tendo usado 24 jogadores. Segundo que a eliminatória para a Copa do Mundo tinha rodada marcada para duas semanas após o torneio continental — o grupo também pensava na frente e Careca, por exemplo, é um dos que não tinha condições físicas para ser inscrito mas ficou no elenco de olho na disputa rumo ao Mundial de 90.

Silas e Renato na Itália, em 1990 — elenco da Copa América foi a base para o Mundial. Foto: Divulgação/CBF.

Enfim, os 19: no gol, Taffarel e Acácio; na defesa, Mazinho, Mauro Galvão, André Cruz, Ricardo Gomes, Branco, Zé Teodoro e Aldair; no meio, Giovani, Tita, Valdo, Alemão, Dunga e Silas; na frente, Bebeto, Romário, Renato e Baltazar. Charles, desconsiderado depois da excursão à Europa, tinha sido novamente chamado e estava bem cotado, principalmente após a confirmação da lesão de Careca e, claro, à expectativa baiana.

Nas redações, três pautas corriam. A do início da competição, claro, esperando 50 mil pessoas para a cerimônia de abertura na Fonte Nova e com preocupação em relação às condições do estádio, em época muito chuvosa e com gramado baqueado. Outra era a chegada de Maradona, que desembarcou no Rio e seguiu para Goiânia, onde jogaria a Argentina campeã mundial. E, claro, finalmente, a definição do elenco brasileiro.

Lazaroni segurou a decisão até o limite. A pressão pela presença de Charles era gigantesca. Desde o final de semana anterior, com a ausência do atacante do Bahia na lista dos já garantidos, o comentarista Raimundo Varela, da TV Itapuã (o SBT de Salvador), começou uma campanha de boicote à Seleção. Num treinamento no campo do Sesc, na capital baiana, quem passava tratava de xingar o treinador. E nada da lista sair. Teve jornal que fechou ainda sem saber se o ilustre filho da terra estaria, quem sabe, ao menos no banco de reservas dali algumas horas.

Mas, veio a bomba: a Bahia foi dormir sabendo que Charles não estava entre os inscritos.

Fonte Nova

Paulo Maracajá, presidente do Esporte Clube do Bahia e deputado estadual, invadiu o hotel da delegação brasileira e levou Charles pelos braços, cortando o jogador do elenco com as próprias mãos. O supervisor Paulo Angioni nada conseguiu fazer. Eurico Miranda, diretor de futebol da CBF, não estava.

“Eles vêm para a terra da gente para fazer molecagem. Deram esperança ao povo baiano e agora fizeram esta traição. Estou levando Charles para um lugar melhor”, gritava o cartola e político.

Ricardo Teixeira, o novo presidente da CBF, tentou convencer Lazaroni a incluir Charles para conter a turbulência em Salvador, mas sem sucesso. Luciano Borges, repórter da Folha de S. Paulo na cobertura em Salvador, publicou: “Eurico Miranda tentou fazer Lazaroni mudar de ideia e trocar Charles por Cristóvão, Silas ou Baltazar. O técnico negou com o seguinte argumento: gosto de olhar nos olhos dos meus atletas; se faço isso, como vou falar com esses jogadores depois?”

Charles fora do elenco, mas não desconvocado, e por isso impedido de jogar pelo Bahia dali a dois dias, em rodada do Estadual contra a Catuense. Enquanto isso, a estreia da Seleção contra a Venezuela.

A abertura foi um fiasco, com uma hora de atraso e estádio completamente vazio diante das bandeiras das seleções participantes e ao ritmo de samba, capoeira e maculelê. A preliminar entre Peru e Paraguai começou às moscas.

Faixa levada pela torcida na Fonte Nova | Crédito: Reprodução matéria TV Globo.

Mas, se o público não encheu a Fonte Nova para ver a estreia do Brasil (foram cerca de 13 mil pessoas), o engajamento de protesto contra a Seleção foi impressionante. O time brasileiro entrou em campo muito vaiado, e a torcida logo disparou rojões em direção à comissão técnica, levando os reservas a saírem do banco para se proteger. Chiaram no hino nacional, nos gols. Portaram bandeiras pretas, pedindo cadeia para Eurico Miranda e chamando Lazaroni de “mafioso”. Uma faixa dizia “O campeão brasileiro merece respeito”, outra já apontava para Telê Santana na Copa de 1990. Nas cadeiras, o médico Mauro Pompeu, o administrador da CBF Américo Faria e o preparador físico Ademar Braga, mais os jogadores não relacionados, levaram uma chuva de bagaços de laranja e copos. Tiveram que voltar para o campo.

Lazaroni saiu se dizendo envergonhado: “nunca vi um espetáculo tão selvagem”. Alemão, que viu o jogo das tribunas, se mostrou preocupado com a repercussão na Itália, onde atuava. “A bandeira do Brasil foi queimada, isso não pode acontecer”. Ricardo Gomes falou da imagem para as crianças que estavam vendo pela TV em todo o Brasil. Branco foi para cima: “isso valoriza nosso feito”. Romário ficou bravo, e Mauro Galvão apelou: “o Charles não é mais bonito que ninguém”.

Situação curiosa viveu Bebeto, um dos mais decepcionados com a situação. Baiano, o atacante do Flamengo era um dos mais procurados após a partida e precisava comentar não só a pressão da torcida como também o péssimo estado do gramado, ainda mais pelo fato de sair com o tornozelo enfaixado e já virar dúvida para a sequência das partidas.

Eurico Miranda chamou o já citado jornalista Raimundo Varela de débil mental — na TV, ao vivo, o apresentador chegou a rasgar ingressos, recebidos de pessoas que desistiram de ir à partida.

Ah, o jogo. Com gols de Bebeto, Geovani e Baltazar, o Brasil venceu por 3 a 1, mas difícil é achar um elogio sobre a atuação.

Salvador

Sobrou até para o assessor de imprensa | Crédito: Reprodução Jornal do Brasil.

“O que todos perguntavam era: como o campeão brasileiro não tem nenhum jogador na Seleção?”, lembra o jornalista Flávio Novaes, que está preparando o livro 88 Histórias da 2a Estrela, um especial sobre o contexto no Brasil e no mundo durante o título brasileiro do Bahia.

“O time ganha o Brasileiro e depois começa a Libertadores muito bem. É campeão nacional no domingo e na terça já vence o Inter de novo, termina em primeiro do grupo. E a Seleção não leva o Rodrigues, não leva o Pereira, leva só o Bobô, mas que já estava no São Paulo. Então tinha uma autoestima da torcida do Bahia, de grandeza, afinal era um dos melhores times do Brasil”, completa.

Isso, até hoje, reverbera na relação do torcedor baiano com o time nacional. Para Novaes, quem viveu aquela época carrega uma sensação de que o futebol na Bahia sempre foi muito renegado. Já o jornalista Elton Serra, autor do livro Década de Ouro, sobre o heptacampeonato do Bahia nos anos 1970, acredita que a convivência atual é desgastada por outros motivos. “É bem mais fácil o torcedor pedir para o jogador não ser convocado para não desfalcar o seu time. Ramires está na Seleção sub-20 [disputa o Sul-Americano da categoria em janeiro e fevereiro de 2019] e a torcida do Bahia quer que ele volte, porque não está sendo aproveitado. Hoje, estar na Seleção não representa muito para o torcedor.”

Uma coisa curiosa da época é que ela uniu tricolores e rubro-negros. Alexandre Lyrio, hoje repórter do Correio, em Salvador, era garoto na época, esteve na Fonte Nova e se recorda do fato. “A rivalidade existia mas não era como hoje. O Vitória não tinha chegado na final do Brasileiro, da Copa do Brasil, não tinha conquistado tantos Estaduais. Então a torcida do Bahia se revoltou e parte da torcida do Vitória foi junto, como se fosse algo contra os baianos mesmo”.

Renato Gaúcho é atingido pela torcida na entrada em campo para o terceiro jogo em Salvador | Crédito: Reprodução matéria TV Globo.

Quando a CBF conseguiu trazer a Copa América para o Brasil, paulistas, mineiros e gaúchos não se esforçaram muito para receber os jogos. Bom também para José Sarney, que contemplou aliados políticos. Quem lembra o contexto é o jornalista Franklin Oliveira Jr. , no seu blog Memórias da Fonte Nova. E que segue: “Renato Gaúcho procedeu na ocasião com a mesma arrogância das elites que montaram o Estado Nacional às custas dos interesses republicanos nordestinos, acusando a Bahia de ser uma “terra de índios”, talvez em função da merecida ovada que recebeu”, escreveu em 2011, tratando do episódio.

Fala, Charles

“Foi uma mistura de sentimentos ali, sabe? O torcedor tinha me reconhecido, sabia do meu potencial para estar na Seleção, mas eu fiquei triste pela forma como as coisas foram feitas: queimar bandeira, vaiar o hino, jogar ovo em atleta…”

Com a calma característica dos tempos de jogador, Charles conversou com a reportagem do Puntero e explicou as razões que o fazem acreditar que seu caso dificilmente se repetirá na Copa América deste ano: “A convocação da Seleção é feita, em sua maioria, por jogadores que atuam fora. A gente não tem referência, não acompanha e nem conhece alguns dos jogadores.”

O título conquistado com o Bahia potencializou o clamor público por Charles entre os escolhidos por Lazaroni. “Aquele campeonato com o Bahia foi a oportunidade de nossas vidas. Muitos atletas passaram a ter reconhecimento a partir dali. Não só profissional, mas também financeiro. É importante conquistar títulos para ser reconhecido. E nós sabíamos que tínhamos condições, pese ao orçamento e estrutura bem menores que os clubes do sul do país. Foi uma conquista única no futebol brasileiro, jogando todos contra todos”.

Charles orienta elenco do Bahia em 2015 — de ídolo a treinador. Foto: Felipe Oliveira/EC Bahia

Depois do Bahia, Charles foi contratado pelo Cruzeiro. E atuando pelo clube mineiro, mais especificamente na final contra o River Plate pela extinta Supercopa da Libertadores, encantou os olhos de Diego Maradona, à época suspenso por seu primeiro caso de doping. O argentino decidiu comprar o passe de Charles Fabian e levá-lo para o Boca Juniors.

Desembarcou em Buenos Aires trazendo junto status e peso de ser o homem escolhido por D10S. Em meio ao alvoroço produzido pela transferência, sentiu o gosto de disputar um Boca x River ao lado do próprio Maradona. O programa de televisão Ritmo de la Noche, o principal do país naquele início de anos noventa, colocava glórias dos dois rivais argentinos para um superclasico em dimensões reduzidas.

Fez pose para fotos ao lado de Diego e foi apresentado com a pompa de alguém que teve o craque como avalista; “Uma honra tê-lo aqui, vestindo a camiseta do Boca pela primeira vez. Do Brasil, Charles!”

 

“O clube estava numa fila de onze anos sem conquistar o título argentino. Eu sofri com algumas lesões, não consegui me adaptar. Uma coisa é você jogar contra um time argentino, outra é você jogar por uma temporada inteira o campeonato deles”.

Se a experiência no Boca não foi lá das melhores, Charles reencontra a tranquilidade quando comenta os anos em que jogou pelos clubes daqui. “Os meus momentos no Bahia, Cruzeiro e Flamengo foram muito bons. Nos dois primeiros eu ainda era jovem, no início da carreira e descobrindo meu melhor futebol”.

Hoje longe do futebol profissional, Charles assegura que não guarda mágoas de Lazaroni e nem da Seleção. Vai acompanhar a Copa América e torcer pelo Brasil como sempre fez.

“É uma chance que a gente tem, depois de 30 anos, para mostrar que o torcedor baiano gosta de futebol, respira o futebol e ama a Seleção. Em 89 eles só queriam um atleta da Bahia jogando pelo Brasil. Nós vamos fazer uma grande festa porque estamos contentes em receber um jogo da Seleção Brasileira novamente, e vamos mostrar que o torcedor da Bahia é só festa”.

De Salvador para Recife

Lazaroni chegou ao segundo jogo já ameaçado de demissão. João Saldanha, jogando pimenta em sua coluna no Jornal do Brasil, escreveu: “Charles? Ora, quem é este tolo? Um jogador brasileiro e nada mais. E o Lazaroni? Está ameaçado. De certa forma, bem feito. Quem mandou aceitar os jogos malucos que estão arrebentando nossos jogadores?”.

Mesmo assim, era no próprio JB que o treinador encontrava algum tipo de retaguarda. Foi no jornal, com reportagens de Oldemário Touguinhó, que saíram as principais linhas dizendo que o treinador não cairia, como lembra o jornalista Cláudio Arreguy, também da equipe do JB, mas enviado para Goiânia, sede do outro grupo. E que acrescenta: “A Copa América custou à Seleção um ano de Lazaroni. Não se deu conta de que, manjado o esquema [3–5–2 pouco habitual no futebol brasileiro], bastou aos adversários fechar os corredores laterais. A Copa mostrou isso. Vitórias apertadas na primeira fase, no sufoco, e queda nas oitavas”.

Diante do Peru, o Brasil ficou no empate sem gols que terminou com os gritos pedindo a cabeça do comandante e uma torcida mais numerosa, superando 30 mil pessoas. Irritada com o gramado ruim — ou com as vaias? -, a CBF ameaçou interditar a Fonte Nova para a Copa do Brasil que aconteceria no segundo semestre, logo prejudicando o Bahia, clube com maior arrecadação nos últimos dois campeonatos nacionais. Enquanto isso, um dia depois do empate contra os peruanos, a CBF acertou a volta de Charles ao elenco, podendo ser inscrito para as finais. E Ricardo Teixeira seguia tentando bancar o treinador.

A famosa foto de Sergio Sade; relatos até hoje ainda se confundem sobre a motivação da campanha. A Placar fala em “drogas”, Juca Kfouri, em coluna de 2013, falou em prevenção da AIDS; matéria do Lance, em 2015, tratou como combate a febre amarela e malária | Foto: Reprodução Placar Junho 1997

É contra o Peru, aliás, que Sergio Sade registrou uma das mais emblemáticas imagens daquela campanha. Ao fim da partida, com o 0–0 estampado no placar eletrônico, surgiu o slogan do Ministério da Saúde na época: É o fim da picada. Na lembrança do fotógrafo, em contato com o Puntero, apenas o futebol de péssima qualidade da seleção. “Tanto é que, quase no finalzinho do jogo, ao perceber a frase exposta no placar, aproveitei e fiz uma imagem mais aberta — que não serviria para ilustrar um lance do jogo — traduzindo o péssimo espetáculo apresentado no gramado”, lembra.

Na sequência, Charles treinava com o time para calar as críticas, Lazaroni fugia da torcida e o boato é de que a seleção podia seguir para Recife já para a terceira rodada. O quarto jogo da tabela estava marcado para Pernambuco, e os jornais noticiaram que a CBF cogitava mudar a agenda, mas a própria organização das partidas no estádio do Náutico desmentiu. Portanto, em 7 de julho, Brasil x Colômbia na Fonte Nova. Novo zero a zero.

No dia seguinte, sábado, Charles foi a campo pelo Bahia comandado por Renê Simões, um empate sem gols visitando o Leônico em Conceição do Coité. E no domingo o Brasil finalmente encontrou a paz ao ser abraçado por um público pernambucano apaixonado. A imprensa local convocou a todos para “darem um exemplo de civismo” na partida contra o Paraguai. A delegação foi recebida com frevo e dança popular já no aeroporto, e o prefeito Joaquim Francisco inaugurou a pavimentação interna do Arruda só para a Seleção passar. A mudança de energia da Bahia para Pernambuco foi tamanha que alguns relatos da época dizem que a Seleção fugiu de Salvador por causa das críticas, mas, claro, a tabela já previa a rodada final do grupo para o estado mais ao norte. Em campo, Brasil 2 a 0, classificado.

Capa do Diário de Pernambuco depois da seleção ser acolhida por Recife | Reprodução do Diário de Pernambuco via Blog de Esportes.

“Cada público tem o futebol que merece”, cravou Lazaroni na saída do campo. “Bem-vindos de volta ao Brasil”, dizia uma faixa cuja foto rodou muitos jornais.

“Lembro de um domingão de sol e muita festa, além de um vareio de bola do Brasil. Eu confesso que estava mais preocupado com Santa x Náutico [decidiriam o Campeonato Pernambucano naquele mês], mas a torcida estava muito feliz. Nessa época todo mundo levava faixas e bandeiras dos três grandes e isso era bem marcante, ficava bonito”, comenta o produtor cultural Raul Holanda, que tinha 15 anos na época.

Esse clima seguiu sendo a imagem da Seleção Brasileira no Recife, tanto que o Arruda voltou a ser protagonista de outra história de ressurgimento da equipe. Em 1993, pressionado nas eliminatórias, o time de Carlos Alberto Parreira fez 6 a 0 na Bolívia para recuperar a confiança e avançar rumo ao tetracampeonato mundial. Naquele dia, ficou marcada a cena dos jogadores entrando de mãos dadas, situação repetida na Copa do Mundo nos Estados Unidos.

Mas enfim, passada a turbulência — três jogos caóticos em Salvador e o alívio no Recife -, Lazaroni se concentrou para a fase final da Copa América, no Maracanã, e incluiu quatro jogadores entre os inscritos: Bismarck, Josimar, Zé Carlos e… Charles. Dois ocupavam as novas vagas e dois substituíam os lesionados Tita e Zé Teodoro. O Brasil venceu bem a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, com três gols de Bebeto, três de Romário e nenhum sofrido, para ser campeão da América no Maracanã contra o mesmo rival e exatamente no aniversário do Maracanazo. Dos novos selecionados, só Josimar foi a campo, saindo do banco na partida decisiva.

Pré-jogo no Maracanã | Crédito: Reprodução da publicação História de La Copa América.
 

E depois?

Na história, o Brasil jogou 13 vezes na Fonte Nova e venceu 9, sem nunca ter perdido. No último jogo, em 2015, vitória por 3 a 0 sobre o Peru pelas eliminatórias. Daniel Alves, cria tricolor, era o único baiano em campo.

O próximo jogo acontece em 18 de junho, contra a Venezuela, na segunda rodada da Copa América 2019 que trinta anos depois volta a ser disputada no país.

Claro, cenário que nada lembra 1989. A pauta regional envolvendo Seleção Brasileira nunca deixou de existir, mas hoje, pela geopolítica do futebol e pelo distanciamento da agenda da amarelinha em relação aos estádios brasileiros, parece mera nostalgia. Seja do tempo em que a torcida queria ver seus ídolos com a camisa máxima, seja de mero aceno distante diante de estrelas, hoje na Europa, que às vezes mal jogaram por aqui.

Daniel Alves é o próprio exemplo disso. Nascido em Juazeiro, passa as férias na Bahia e costuma ter um bom trato com a imprensa e os fãs locais. Em 2013, na Copa das Confederações, se mostrou muito emocionado em fazer uma partida de competição oficial na Fonte Nova, logo diante da Itália. Deu Brasil.

Dante é outro. Presente nos elencos da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, sempre despertou o carinho do baiano e principalmente do torcedor do Bahia. Diferente de Daniel, é nascido em Salvador e foi torcedor de arquibancada do clube.

Na Copa de 2014 havia também o paraibano Hulk, que deixou o país muito cedo, mas reviveu um orgulho em Campina Grande. No seu primeiro gol pela Seleção, um amistoso contra a China no Recife, ele mobilizou muita gente de sua cidade-natal a pegar a estrada e comparecer no Arruda.

O elenco tinha também Hernanes, pernambucano que foi se destacar no futebol paulista, além de David Luiz, paulista que jogou no Vitória, e Luiz Gustavo, outro paulista que atuou em clubes alagoanos. Mais tarde, a Copa de 2018 foi a primeira em que a Seleção Brasileira viajou sem baianos depois de 32 anos, e o único nordestino era Roberto Firmino, nascido em Maceió mas que não jogou profissionalmente na região. Sinal dos tempos.

Dante entrou no lugar de David Luiz e marcou contra a Itália, em Salvador, em 2013. Foto: Rafael Ribeiro/CBF.

“Essa coisa de Nordeste é tão bizarra que nenhum jogador de clube nordestino já foi para uma Copa do Mundo. Tinha muito jogador que claramente só chegou à Seleção depois de ir para clubes do Sul”, diz Raul Holanda. Nunes, atacante do Santa Cruz, foi quem chegou mais perto, cortado já depois da lista final da Copa de 1978, por lesão, e dando lugar a Roberto Dinamite.

E a presença é cada vez mais rara. Nessa década, só Diego Souza, quando atuava no Sport, chegou a entrar em campo, já que Douglas Santos, no Náutico, foi chamado mas não jogou. Tirando esses, chegamos em Nadson e Dudu Cearense, do Vitória, em 2003, e já em Leomar, levado para a Copa das Confederações de 2001, sob o comando de Emerson Leão. Sobre isso, o presidente do Sport na época, Luciano Bivar, afirmou anos depois que pagou uma comissão ao técnico pela convocação; na sequência disse que o dinheiro foi para um intermediário, responsável por fazer lobby junto ao treinador. Leão negou, e Leomar se incomodou com a história.

E hoje?

Vale lembrar que a relação bairrista com a Seleção vem de longe. Na Copa de 1930, só cariocas defenderam a camisa branca. Depois, fizeram época as seleções estaduais, e era comum que o time brasileiro fosse representado por um escrete local — o selecionado baiano jogou como Brasil na Taça Bernardo O’Higgins, contra o Chile, em 1957, por exemplo. Daria também para citar uma das maiores vaias da história, sobre Julinho Botelho, ponta do Palmeiras, no Maracanã, em 1959. No fim, foi só para a Copa de 1966, com uma extensa lista de pré-convocados para o Mundial na Inglaterra, que a equipe já bicampeã do mundo passou a ser considerada sem restrições, chamando jogadores de Norte a Sul a cada compromisso (nem tanto ao Norte, vai).

E a partir daí são inúmeros os casos em que a lembrança do torcedor vai falar de favorecimento, média ou afeto especial com determinado lugar, com respectiva torcida. Há quem diga que Valdo, meia do Grêmio, foi chamado por Telê em 1986 para acalmar os gaúchos diante do iminente corte de Renato Portaluppi. Ou não dá para negar a escolha de Luiz Felipe Scolari em seu primeiro jogo em solo brasileiro, nas eliminatórias, em 2001, quando o treinador pediu para que fosse em Porto Alegre e viu o Olímpico abraçar o ídolo gremista e instaurar um clima ufanista diante do Paraguai.

Mais recentemente, nesse ciclo de eventos realizados no Brasil entre 2013 e agora, 2019, a torcida brasileira comprou a briga do time. Na Copa das Confederações, que abriu essa sequência, vinham das cadeiras das novas arenas o hino nacional à capela, com os jogadores entrando empurrados pelo público e matando os jogos logo no início, até o título. E, no Mundial do ano seguinte, um caso chamou a atenção nessa relação com o público local. Foi no Mineirão.

Neymar, camisa 10 e maior jogador da companhia, se machucou nas quartas de final, e o Brasil tinha pela frente a Alemanha. Pouco antes do jogo foi confirmado que o substituto seria Bernard, que um ano antes havia brilhado ali mesmo ao conquistar a inédita Libertadores da América pelo Atlético-MG.

“Havia essa comoção para que o Felipão escalasse o Bernard e eu vivi a euforia da notícia que o Bernard seria escalado. Eu estava do lado de fora do Mineirão, duas horas antes do jogo, e foi a gente que deu primeiro a informação que o Bernard estava escalado. Quando saiu na TV e na internet, a notícia se espalhou e as pessoas começaram a se empolgar, em perguntar para a gente se o Bernard ia jogar mesmo, e muito nessa ideia de que o Mineirão seria um trunfo”, conta Thales Machado, então produtor da ESPN Brasil e que cobria o pré-jogo junto do repórter André Plihal. Foi a última alegria antes do 7 a 1.

Agora, olhando a Copa América, Thales, hoje editor d’O Globo, acredita que o torneio passa muito por essa possibilidade de encontro com o público brasileiro. “Eu acho que a grande atração dessa Copa América é a última chance nessa década de grandes eventos do torcedor ver os jogadores. É a última chance para ver Neymar, Marcelo, Coutinho, caras que não tão cedo jogarão aqui, além de Messi, Cavani, Suárez. E também o clubismo: saiu a tabela e tem jogo do Paraguai no Rio, o que já deixou contente os botafoguenses, já que o Gatito Fernandes pode ser titular; o Uruguai vai jogar aqui e a popularidade do Arrascaeta vindo para o Flamengo também já contou um pouco”.

Mas, e o Charles? Ficou fora da Copa de 1990, mas voltou a ser chamado por Falcão e também por Carlos Alberto Parreira, seguindo no grupo como jogador do Bahia e depois já defendendo o Cruzeiro. Se apesar de alguns gols e do título da Copa América seu legado na Seleção não é como gostaria dentro de campo, em Salvador é eterno e ultrapassa a linha de fundo: dizem que tem vendedor de laranja que subiu casa para família de tanto dinheiro feito 30 anos atrás.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulo Junior

Jornalista e documentarista, no texto, no rádio e no vídeo. Jogador de futebol de várzea.

Como citar

PAULO JUNIOR, . Charles, Fonte Nova, Bahia: em 1989, o bicho pegou na Copa América no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 47, 2021.
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