40.3

Chega de exceções

Giovana Capucim e Silva 10 de outubro de 2012

Há cerca de dois meses teve fim o maior evento esportivo global. A Copa do Mundo que me perdoe, mas as olimpíadas dão conta de uma gama de atletas e modalidades que as torna incomparáveis. Como mulher que se debruça sobre as relações entre gênero e esporte, tenho muito a dizer sobre os jogos: as polêmicas e os comentários sobre o vôlei de praia e a obrigatoriedade do uso de biquínis, o advento, finalmente, do boxe feminino (com direito à medalha e desabafo contra a confederação1), a participação das mulheres da Arábia Saudita, tão representativa da luta feminina naquele país, dentre tantos outros fatos que não passam impunes aos olhos de uma feminista crítica atenta ao noticiário esportivo brasileiro.

Entretanto, peço agora, licença às Olimpíadas, mas falarei da estrela da Copa do Mundo. O futebol que é só “mais um” nos Jogos Olímpicos e no caso masculino sequer conta com as suas principais estrelas, possui um certame de dimensão de mega-evento no qual é a única modalidade e estrela. Esse fato torna a disputa olímpica de futebol masculino “menor”. Há até quem defenda a saída do futebol das Olimpíadas por essa razão, porém é preciso observar que essas relações não se dão no caso feminino. A Copa do Mundo de futebol feminino não atinge, nem ao longe, o status da irmã destinada aos homens. Isso torna, então, a disputa olímpica do futebol feminino a mais importante competição entre seleções da categoria.

Neymar comemora gol contra a seleção de Honduras nos Jogos Olímpicos. Foto: Mowa Press.

Posto isso, convido o leitor à reflexão: qual foi a cobertura dada aos torneios olímpicos de futebol destinado aos dois sexos? E mais: qual foi o tamanho da decepção de ambos? Se a disputa olímpica dos homens não é a principal da categoria, ao contrário do que ocorre com o feminino, por que então a cobertura e a decepção foram maiores com eles? É desnecessário explicitar a dimensão da exposição midiática espetacularizada que o futebol masculino possui no Brasil. É de conhecimento geral também a ausência do futebol feminino da exposição pública. Às futebolistas é negado, não só o espaço na imprensa, mas também os próprios locais para a prática desportiva, já que a falta de regularidade de campeonatos voltados para elas leva a maioria dos clubes a fechar suas portas para a categoria.

A seleção brasileira de futebol feminino nas olimpíadas apresenta uma regularidade – esteve presente nas disputas por medalhas desde o início da modalidade nos jogos em 1996 – muito diversa da masculina – a última vez que a equipe esteve numa final foi há 24 anos – entretanto, o segundo lugar masculino parece nos decepcionar muito mais do que o fato das moças terem ficado longe da disputa por medalhas pela primeira vez. Isso possui uma explicação muito simples: enquanto a seleção masculina levada para Londres apresenta uma gama de “novos craques”, a feminina continua a depender de talentos individuais como os de Marta e Cristiane, cujo auge da carreira data do último ciclo olímpico. Por que não houve renovação da equipe? Simples: onde meninas podem jogar futebol no Brasil? É difícil, até mesmo, formar turmas nas “escolinhas”, quem dirá estabelecer equipes nas escolas e universidades? Que interesse têm, então, os clubes em manter abertas suas portas para a prática do esporte?

Cristiane e Marta comemoram gol contra Camarões nos Jogos Olímpicos. Foto: Mowa Press.

Gostaria de trazer para a reflexão um caso que julgo exemplar. Em 2009 o Santos F. C. de Neymar, Pelé e tantos outros, iniciou uma série de contratações para formar uma equipe competitiva de futebol feminino. Vieram grandes nomes para a disputa da Copa Libertadores da América, dentre os quais se destaca o de Marta, então melhor jogadora do mundo por cinco anos consecutivos. O Santos conseguiu cumprir seu objetivo: venceu o torneio. Após a conquista surge, então, a dúvida de toda equipe vencedora de futebol feminino: e agora? Não há mais campeonatos a serem jogados, não há cobertura televisiva e há a necessidade de pagar o salário das jogadoras. Aquela equipe brilhante apelidadas de “Sereias da Vila” foi se desfazendo até o encerramento dos trabalhos femininos do departamento de futebol no início deste ano, mesmo com a doação de um milhão de reais reunido pela arrecadação do ídolo santista Neymar de diversas empresas para a manutenção da equipe feminina.

É muito claro que enquanto não houver um investimento estrutural e contínuo desde a base, não haverá renovação na seleção de futebol feminino. Enquanto forem mantidas as estruturas e políticas atuais para o esporte dependeremos do surgimento de exceções como Marta e Cristiane. Por falar em exceções, temos uma exemplar registrada na fotografia tirada na ocasião da vinda de Marta para o Brasil com o fim de assinar contrato com o Santos, na qual a atleta posou com sua camisa ao lado da presidenta Dilma Rousseff. Tal imagem me parece um tanto quanto emblemática. Explico: assim como a eleição de Marta como melhor jogadora dos anos de 2006 a 2011 não representa a estrutura, desenvolvimento e política do futebol feminino no Brasil, também a eleição de Dilma não representa o fim do entendimento da política como um lugar masculino e machista. Posso, perfeitamente, trocar as explicações: a eleição de Dilma não representa a estrutura, desenvolvimento e política para a inserção da mulher na política, Marta não representa o fim do entendimento do futebol como um lugar masculino e machista.

A presidenta, Dilma Rousseff, recebeu em 2011 a jogadora Marta, eleita pela quinta vez consecutiva a melhor atleta de futebol feminino do mundo pela Fifa. Durante o encontro a jogadora presenteou a presidenta com uma camisa autografada. Foto: Antonio Cruz – Agência Brasil.
Na política as mulheres são a maioria do eleitorado, mas não chegam a ocupar 10% dos cargos em nenhuma instância2. No esporte, a marginalização do futebol feminino também acontece. De acordo com dados da FPF disputam o campeonato paulista atualmente 18 equipes das quais apenas três da capital. Isso é um indício do baixo número de clubes que mantém o futebol feminino como atividade perene. Gostaria apenas de atentar para o detalhe que o jogo marcado na tabela da FPF para 22 de setembro não apresenta resultado no site, enquanto os resultados dos jogos de ontem do futebol masculino já estão atualizados em destaque. Mais uma demonstração do interesse que se tem pelo futebol feminino neste país.

Pode-se concluir diante do apresentado que Dilma é exceção, assim como Marta, porém, isso não significa que elas estejam de mãos atadas no sentido de promover a integração da mulher no futebol feminino, assim como na política. Pelo menos como referências e ídolos, elas são inspiração pra outras mulheres, mas também auxiliam no desenvolvimento de políticas públicas para isso. A primeira presidenta da História da democracia brasileira tem dado muita atenção à secretaria de políticas para mulheres e feito o possível para nomear mulheres para cargos de confiança no governo. Já Marta com os resultados que trouxe para o Brasil3 deu um grande impulso nos investimentos do país no futebol para mulheres. A organização de campeonatos como o Paulista e a Copa do Brasil dá-se exatamente no início da trajetória da atleta como melhor do mundo. Se hoje há 18 times no estado de São Paulo, o que nos parece nada frente às três divisões no masculino, é um crescimento significativo diante das equipes pioneiras da Juventus e do Saad que figuravam sozinhas no estado no período anterior ao surgimento de Marta e cia.

Para corrigir tais aberrações é preciso mais que políticas públicas para o ingresso da mulher no esporte e na política, mais do que investimento desde a escola para essas promoções, mais do que despertar o interesse da iniciativa privada, mais do que dar fim aos preconceitos que barram a entrada dessas mulheres nesses espaços, mais do que um engajamento da grande imprensa nessas questões, é preciso reconstruir a forma que a sociedade brasileira enxerga as mulheres e suas funções na sociedade e, então, no esporte para que então todas essas medidas possam ser tomadas de forma efetiva. A luta das mulheres para a ocupação desses espaços ocorre a passos de tartaruga, pois se dá fora dos olhos da maioria e é, muitas vezes, ridicularizada com estereótipos. Mesmo assim, os movimentos femininos, apesar de todos esses pesos sobre suas costas, não deixa de brigar por seu espaço na política, no esporte, na imprensa e na sociedade.

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[1] Mais detalhes da declaração da medalhista Adriana Araújo em: http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2012/08/adriana-dispara-contra-presidente-da-cbboxe-me-humilhou-varias-vezes.html

[2] Dados oficiais retirados de http://www.brasil.gov.br/secoes/mulher/atuacao-feminina/mulheres-na-politica

[3] O Brasil nunca ganhou um título expressivo, mas tem constantemente chego às finais, o que é surpreendente para a estrutura que o esporte apresenta no país.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Giovana Capucim e Silva

Mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP) e é integrante do GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol) e do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas-USP).

Como citar

SILVA, Giovana Capucim e. Chega de exceções. Ludopédio, São Paulo, v. 40, n. 3, 2012.
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