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Chile x URSS ou “o jogo que nunca existiu”: futebol e ditadura militar no Mundial de 1974

Ana Marília Carneiro 9 de dezembro de 2020

Em 1930 ocorria a primeira edição da Copa do Mundo no Uruguai, país-sede cuja seleção saiu vitoriosa. Em noventa anos de história das Copas do Mundo (1930 – 2020) apenas uma única vez houve um boicote político a uma partida ligada ao campeonato. Este episódio que envolveu uma disputa entre a seleção chilena e a União Soviética se deu durante a Guerra Fria, quando o mundo se encontrava polarizado em meio ao embate ideológico representado pelo capitalismo e os EUA, de um lado, e o socialismo defendido pela União Soviética, do outro. Nesse momento de acirramento de tensões novas regras eram postas em jogo, e o futebol assumia contornos políticos que extrapolavam a disputa em campo.   

Se o clima no cenário mundial no pós II Guerra Mundial era animado pela disputa ideológica entre EUA e União Soviética, na América Latina essa disputa foi traduzida na emergência de regimes autoritários em diversos países da região, como o golpe militar que destituiu o governo socialista de Salvador Allende no Chile em 1973. Em contraposição ao discurso propagandístico do “mundo livre”, o Chile emergia como uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, que se estenderia por dezessete anos.

O regime inaugurado por Augusto Pinochet, marcado pela brutalidade e repressão, abortava a primeira experiência de um governo socialista eleito pelo voto popular na região e dava início a uma longa temporada de violência, tortura e desaparecimentos sem precedentes na história recente do Chile. A perseguição política desencadeada pelo golpe conduzido por Pinochet assumiu proporções gigantescas, e prisões, delegacias e quartéis tornaram-se insuficientes para abrigar tantos presos políticos. O sintoma trágico mais evidente desse fenômeno repressivo foi a utilização das dependências do Estádio Nacional do Chile como centro de detenção, tortura e execução de milhares de presos políticos pelas forças de repressão imediatamente após o golpe de 11 de setembro. O Estádio Nacional, maior centro esportivo nacional com capacidade para 80.000 espectadores, tornava-se o maior campo de concentração da história do país.  

Segundo a Cruz Vermelha, mais de 7 mil pessoas foram levadas pelos militares para o Estádio Nacional em um único dia. Foto: Reprodução Twitter

Apenas duas semanas depois do golpe de Pinochet, em 26 de setembro de 1973, a seleção chilena de futebol disputava em Moscou com a União Soviética uma vaga para a Copa do Mundo de 1974 na Alemanha. Com um empate de zero, as seleções deveriam se enfrentar novamente em 21 de novembro, desta vez, no Chile. A revanche, no entanto, nunca aconteceu.

A União Soviética havia rompido as relações diplomáticas com o Chile e manifestou seu desacordo em disputar a partida de volta em Santiago, denunciando que o estádio havia sido transformado em centro de detenções e exigindo um campo neutro.

Diante deste impasse, a FIFA decidiu enviar uma delegação para inspecionar as instalações do Estádio Nacional do Chile. Em 24 de outubro de 1973 uma comitiva liderada pelo vice-presidente da FIFA, o brasileiro Abilio D’Almeida e o secretário -geral, Helmuth Kaeser, aterrissaram em Santiago para visitar o estádio e avaliar as condições para a eliminatória.

Depois da visita de 48h, os emissários ofereceram uma conferência na imprensa com o ministro da Defesa, onde declararam: “o informe que levaremos a nossas autoridades será o reflexo daquilo que vimos: tranquilidade total”. Abilio D’Almeida complementava: “não se preocupem com a campanha da imprensa internacional contra o Chile. No Brasil aconteceu o mesmo, logo irá passar”. Ainda estavam presentes 7.000 detidos no estádio durante a visita da comitiva da FIFA.

Os detidos que ocupavam o estádio foram trasladados – ou coisa pior – , e milhares de torcedores dirigiram-se ao Nacional do Chile na tarde de 21 de novembro de 1973 para assistir a partida. A delegação soviética, no entanto, não compareceu. A Federação de Futebol da União Soviética teria enviado um comunicado no dia 2 de novembro, informando que “por considerações morais os atletas soviéticos não podem neste momento jogar no estádio de Santiago, salpicado com o sangue dos patriotas chilenos. (…) A União Soviética se recusa a participar da partida em território chileno e responsabiliza a administração da FIFA por tal fato”.    

O Chile entrou em campo e o árbitro marcou o início da partida. Diante de 18 mil espectadores, sem rival no campo adversário, Francisco “Chamaco” Valdez Muñoz fez o gol fictício que deu ao Chile a classificação para o Mundial na Alemanha em 1974. A partida durou exatamente 30 segundos.  

O famoso episódio envolvendo a “partida fantasma” é apenas um evento dos que pode ser trazido à tona para compreendermos melhor a dimensão da repressão perpetrada durante a vigência das ditaduras militares latinoamericanas. Apesar do futebol constituir uma das esferas pouco visitadas pela historiografia, mostra-se um campo de análise privilegiado para compreendermos que a violência e a arbitrariedade não ficaram restritas aos redutos oficiais; invadiram distintos espaços, afetaram a experiência cotidiana de quase toda a população, ultrapassaram as arquibancadas e se articularam com os grandes cenários da política internacional e do Estado.   

A análise desses eventos também se mostra fundamental para pensarmos a relação das políticas de memória construídas sobre as experiências ditatoriais. Muitas vezes considerado, por um lado, como instrumento propagandístico manipulado pelos regimes autoritários e mecanismo de alienação e despolitização da sociedade, por outro, o futebol pode – e deve – ser encarado para além dessas visões dicotômicas, e ser apreendido como território para se explorar temas múltiplos no campo da investigação histórica. 

Foto: Wikipédia

O estádio Nacional do Chile foi remodelado depois de diversas intervenções, mas chama atenção um setor vazio, cercado por grades. Uma tribuna com arquibancadas de madeira, tal como era em 1973 quando recebeu milhares de presos políticos, contrasta entre milhares de cadeiras plásticas. Em destaque sob o portão número 8, uma frase emblemática: “un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. Depois de um processo de demanda social e uma longa campanha envolvendo a participação de diversos organismos de direitos humanos, encabeçada pelo Regional Metropolitano de ex Prisioneras y Prisioneros Políticos, o Estádio Nacional do Chile foi declarado sítio de memória em 2003. Conquista importante, porém o jogo só termina quando acaba. E os espaços de memória estão inscritos em um processo de produção de memórias complexo, multifacetado e sempre inacabado.

Foto: Reprodução Twitter

Para além de registro do passado e homenagem às vítimas, talvez a maior potencialidade dos espaços de memória seja justamente a de ressignificar sua existência a partir de uma inquietação básica: por que conservar esses espaços? Como indicam as palavras lúcidas de Tzevtan Todorov, os espaços não devem ser concebidos apenas a partir de uma lógica informativa, para que os visitantes reproduzam uma conexão distante das suas experiências pessoais, reforçando a ideia que a ditadura só passou para as vítimas e seus familiares; pelo contrário: os espaços de memória devem ser usados, experienciados, sentidos, narrados e escutados de forma a pautar a ação presente e um determinado projeto de futuro, inspirado em lutas passadas e atuais e comprometido com valores democráticos e justiça social.

Referências

BRUM, Maurício. La cancha infame: a história da prisão política no Estádio Nacional do Chile. Porto Alegre/RS: Zouk Editora, 2017.

AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou Morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

VICTORIANO, Felipe, “La imaginación concentracionaria del golpe: el Estadio Nacional de Chile, lo siniestro y el fútbol”. In: Revista de Crítica Cultural. Santiago de Chile, no. 32, novembro, 2005.

TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Editorial Paidós, colección Asterisco, Buenos Aires, 2000.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ana Marília Carneiro

Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Memória Futebol Clube. Pós-doutoranda em História pela UFMG (Capes PrInt). Doutora em História pela UFMG. Torcedora do América- MG, Villa-Nova - MG, Parnahyba Sport Club, Huracán e do Galícia Esporte Clube.  

Como citar

CARNEIRO, Ana Marília. Chile x URSS ou “o jogo que nunca existiu”: futebol e ditadura militar no Mundial de 1974. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 21, 2020.
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