38.2

Classe “C”, de Corinthians

Tiago Rosa Machado 7 de agosto de 2012

Depois do buzinaço e da madrugada de rojões e gritos de “Vai Corínthians”, uma rápida olhada nas mídias e nas estantes nos propõe algumas reflexões acerca da conquista corintiana. O primeiro aspecto, inegavelmente, é a dimensão histórica da competição, que dá a chance de um embate/ajuste mundial entre a América e a Europa (sem esquecer que o torneio leva o nome de “Libertadores da América”; que, com todas as reapropriações e ressignificações, evoca o legado de Simón Bolívar, San Martín, José Martí, Francisco de Miranda). O segundo, tal qual um pesquisador/ensaísta da história do futebol, são os simbolismos e metáforas (sempre forjadas) que tal conquista carrega. Terceiro: quase como um resumo, são algumas ideias de história, propriamente, que surgem deste título (tão festejado como uma “conquista histórica”, “campanha histórica” etc).

I) Se aqui no Brasil não temos o nosso libertador nacional (não valeria a pena lembrar Bonifácio ou Pedro I), talvez seja melhor mesmo procurar o elo entre futebol e personagens políticos que para nós adquiriram significados importantes e que estão relacionados a esta conquista. De Getúlio a Lula (talvez somente excluindo a seleção de 70, no ponto alto do militarismo) há uma ponte que atravessa o futebol e conduz do “populismo” ao “popular”.

Getúlio sacou a potência da penetração social que o futebol tinha, sobretudo numa época de afirmação da urbanidade e de demanda por pertencimento aos campos políticos até então vinculados às elites agrárias. Esta incorporação, à maneira do processo civilizatório, encontrou no futebol e em seus estádios uma praça cívica detentora de um simbolismo extremamente potente. Getúlio discursou aos operários, em São Januário (que então acomodava mais de 40 mil em suas bancadas), um sem-número de vezes, principalmente nos 1ºs de maio (sacanamente transformado de “dia do trabalhador” em “dia do trabalho” pelo conservadorismo midiático) e inaugurou o Pacaembu (que já abrigou mais de 70 mil), pensado como palco multifuncional (pergunte ao Maluf sobre a Concha Acústica).

Mais recentemente foi Lula que voltou à carga com o elo “Presidente” e “Futebol”. Dizem que o ex-presidente já tinha um envolvimento com esporte desde os tempos de sindicato (organizando torneios e confraternizações), e que seu time de coração era o Vasco, tendo “virado” corinthiano por uma questão de classe. Pois foi Lula quem esteve no centro de uma bem alinhavada trama que envolveu o PT (Lula, propriamente, mas sobretudo Andrés Sanches), Globo (o Corínthians e o mais alto contrato por direitos de transmissão), CBF (Ricardo Teixeira), FIFA (Copa 2014 no Brasil) dentre outros (patrocinadores, empreiteiras, cervejarias, outros grupos políticos – o Itaquerão, à boca pequena, foi chamado de “Lulão”).

E isso, ressalte-se, dentro das margens de manobra de bastidores autorizadas, e sem as quais nenhum “time grande” conquistaria seu lugar ao sol. O envolvimento Lula-Futebol parece mais sofisticado que o de GV e envolve outros poderes que se constituíram e se consolidaram no decorrer destes 60, 70 anos. O futebol se midiatizou, publicizou, globalizou e atingiu proporções ainda incalculáveis ao nosso tempo (os brasileiros campeões do Mundo em 1958 nunca poderiam imaginar a dimensão que aquele conquista teve ao longo do tempo) e que serão certamente reapropriadas e resignificadas.

Corinthians Campeão da Libertadores 2012 – Foto: Foradoeixo/Flickr

Resumo da partida: da mesma forma que a historiografia reviu o conceito de “populismo”, à luz de uma série de disputas/conquistas/concessões aos trabalhadores (sem que isso signifique cultuar o mito do “pai dos pobres” e tampouco vitimizar a “domesticação proletariada”), também é necessário um certo distanciamento desta fundamental afirmação identitária corinthiana (“louco”, “favelado”, “o time do povo”, “república popular”) que, com todas reapropriações e ressignificações históricas, acaba produzindo efeitos e forjando concepções em relação às quais não é mais possível passar batido. (Apenas para que se tenha uma dimensão acerca disso, vale uma rápida consulta à tabela de renda média dos torcedores).

II) Se a conquista da américa pode ser pensada como metáfora, é o caso de forçar um pouco a barra e viajar em alguns paralelos. Há 20 anos a Libertadores não tinha no Brasil a importância que agora tem (sobretudo para os corintianos), e essa valorização, dentre outros fatores, deveu-se às conquistas dos rivais Santos, São Paulo e Palmeiras. Também às gozações, com uma boa parte delas relacionada à preconceitos de classe (o bilhete de metrô como passaporte, o “nunca serão” internacionais, o “clube da periferia”), alimentaram a sanha corintiana por uma conquista continental e a simbólica ascensão ao grupo desta “elite” do futebol.

Com efeito, se existem marcas neste título corinthiano certamente são luta, dedicação, esforço e trabalho coletivo. E a viabilidade do título, é importante frisar, não significou renunciar a estes valores já associados a estas “identidades” corinthianas. O título não foi conquistado com Ronaldo, Roberto Carlos ou qualquer outro cobrão; o título veio com um time “sem estrelas individuais”. Ou seja, ascensão de um grupo de jogadores, com históricos diferentes de lutas, mas em certa medida nivelados num mesmo padrão.

Talvez fosse o caso de reconhecer rapidamente a trajetória de alguns personagens. Emerson, “Sheik das Américas”, talvez seja o mais simbólico dos conquistadores corintianos. Ainda jovem falsificou sua documentação para emplacar como jogador, caminhou cambaleante entre a ordem e a ilegalidade, foi escorraçado do aristocrático Fluminense e do rico Qatar, literalmente “deu até mordida” pra conquistar o título. Alessandro e Chicão, remanescentes daquele elenco montado para disputar a série B, completaram o ciclo: vieram de baixo, cresceram junto com o time e foram os capitães da conquista. Cássio e Romarinho, ilustres desconhecidos há poucos dias atrás, agora são alçados à condição de heróis: “a sorte pode sorrir pra qualquer um na próxima esquina”. Paulinho e Ralf (conforme ouvi dia desses numa mesa de bar – não sem algum preconceito) têm a cor e a cara da periferia brasileira: raça e luta de quem vem de baixo (Barueri e Bragantino) em busca de seu lugar ao sol.

Bem-Vindos – Foto:Max Rocha

Isso tudo pra dizer que “o time do povo” – já que é tão difícil e ao mesmo tempo tão importante trabalhar com as identidades clubísticas – se aproxima muito com o propagandismo ideológico recente da “classe c”, e a representa muito bem: conquista e inserção social (respeitando as ordens do jogo econômico); acesso ao deslumbrante mundo do consumo (camisetas de R$ 200, projetos sócios-torcedores, pay-per-view, Estádios agora como espaços de pertencimento e significativa ostentação, aos quais o acesso já representa um corte de classe); envolvimento e participação, ainda que toscos, no jogo/debate político (Lula, Andrés e compartilhamento de um ideal “democrático corintiano”).

III) Por fim, um último aspecto que chama atenção, bastante corrente nas falas dos boleiros e torcedores corinthianos: a menção sempre frequente ao “fazer história”, no e pelo clube. Uma característica interessante, não frequente nas vozes dos jogadores de outros clubes em outras conquistas passadas, e reveladora de uma dimensão de se compreender como agente histórico, como alguém que em ato escreve e produz uma tradição. Uma tradição que sofrerá diversas reapropriações e ressignificações – é evidente – mas que ganha outros contornos pela ação de agentes que até então estiveram à sua margem. “Justo”, “merecido”, pra dizer o que muitos “antis” foram obrigados a assumir após o apito final no Pacaembu.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Tiago Rosa Machado

Mestre em História Social, pesquisa futebol e é integrante do LUDENS.

Como citar

MACHADO, Tiago Rosa. Classe “C”, de Corinthians. Ludopédio, São Paulo, v. 38, n. 2, 2012.
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