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Clássico é clássico e vice-versa?

Thalita Raphaela Neves de Oliveira 3 de fevereiro de 2020

Começa a temporada de disputa pelos campeonatos estaduais no Brasil e creio ser este um momento ainda mais oportuno para se falar das rivalidades clubísticas do nosso futebol e dos estereótipos que, entra ano e sai ano, seguem sustentando boa parte dos noticiários e transmissões esportivas de norte a sul do país. O velho embate figurativo entre time do povo versus time de elite é um dos conflitos que me parece uma construção em certa medida estereotipada, sobre a qual pretendo me aprofundar em minha tese de doutorado, investigando as origens desse e de outros estereótipos que vigoram no imaginário do torcedor, dos jornalistas e até dos próprios dirigentes.

Para chegar a alguns apontamentos iniciais sobre o tema, me propus um breve exercício de pesquisa visando identificar, nas cinco regiões brasileiras, embates clubísticos em que um dos clubes é tido como “do povo” enquanto o rival, por sua vez, é caracterizado sob a pecha de elitista. Para tanto, me baseei em um ranking dos maiores clássicos estaduais brasileiros feito pelo globoesporte.com para selecionar alguns dos maiores duelos futebolísticos do país e debater sobre quais alcunhas são comumente atreladas aos rivais diretos: time do povo, time de elite, time de pobre, time de rico, time de negro, time de branco, time do centro, time do subúrbio, time do futebol-arte, time do futebol-força, entre outras alcunhas as quais considero construções estereotipadas.

A intenção é identificar, ao final do doutorado, quais aspectos contribuíram para a construção desses estereótipos, com base no histórico dos clubes e nas percepções de torcedores e jornalistas esportivos, compreendendo como e por que tais construções são frequentemente reforçadas tanto pela mídia quanto por torcedores para sustentar e dimensionar as rivalidades clubísticas do futebol brasileiro. Parto de um pressuposto que julgo ambicioso, relacionado à premissa de que todo estereótipo, embora seja uma construção moldada sob diversos aspectos, tem em si um fundo de verdade.

É claro que, para validar essas afirmações, será imprescindível expandir minha revisão bibliográfica a esse respeito e seguir um caminho metodológico específico. Por ora, como dito, restrinjo meus apontamentos a conclusões meramente iniciais, as quais me servem como um dos pontos de partida para uma pesquisa ainda em desenvolvimento. Sendo assim, dedico os próximos tópicos deste texto para debater alguns aspectos característicos de 11 rivalidades do nosso futebol, tendo como referências pesquisadores que já se debruçaram sobre o tema. Cada tópico a seguir contempla uma região do país, abordando rivalidades clubísticas dos seguintes estados: MG, SP, RJ, RS, PR, BA, AL, PE, CE, PA, GO.

Região Sudeste

Os trabalhos do pesquisador Marcelino Silva (2005, 2009) abordam os estereótipos comumente associados aos dois maiores clubes de futebol de Minas Gerais: Clube Atlético Mineiro e Cruzeiro Esporte Clube. Em sua pesquisa de pós-doutorado, o autor analisa a construção discursiva da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro com base no imaginário do primeiro como time da massa e do segundo como clube-empresa. Segundo Silva (2005, s/p), a transformação do Atlético “em um ‘clube de massa’, alcunha que lhe é consensualmente atribuída pela mídia contemporânea, é ainda um mistério a se resolver”, tendo em vista que sua origem pode ser considerada elitista, já que o clube foi fundado por um grupo de jovens de famílias tradicionais belo-horizontinas.

O Cruzeiro, por sua vez, tem uma origem popular desde sua fundação, tendo sido criado por grupos de imigrantes italianos que haviam se estabelecido na capital mineira. Desse modo, enquanto a mística que cerca o Atlético (e sua torcida “Galoucura”) caracteriza a agremiação como “o clube do ‘povão, o clube da ‘massa’, dos pobres, dos negros e dos mestiços” (SILVA, 2005, s/p), o Cruzeiro se vale da organização e diligência típicas de sua “Máfia Azul”, definindo-se, sobretudo, “por aquilo que possibilitou aos italianos sua inserção na sociedade brasileira: o trabalho árduo e incansável, por meio do qual se pode construir lentamente um futuro bem sucedido” (SILVA, 2005, s/p).

Já para abordar aspectos da rivalidade entre o Sport Club Corinthians Paulista e a Sociedade Esportiva Palmeiras interessa o trabalho do pesquisador Roberto Louzada (2011), que analisa, do ponto de vista administrativo, as condições sociais que permitiram compreender como se constituíram as identidades dos três principais clubes da cidade de São Paulo, definidos sob os seguintes estereótipos: Corinthians, o clube do “povão”, fundado por operários; Palmeiras, o time da colônia italiana, fundado por operários imigrantes; e o São Paulo Futebol Clube, considerado representante da elite econômica da cidade.

Importante salientar que, nas conclusões apontadas por Louzada, os dois clubes fundados por operários são os que concentram os maiores percentuais de torcedores das classes A e B, enquanto o time identificado como da elite é o que possui os menores percentuais de públicos dessas duas classes – perspectiva esta que contribui para reforçar o viés mítico dos estereótipos que compõem o objeto de estudo da minha pesquisa. Também interessam à discussão os trabalhos científicos de Florenzano (2009), sobre a democracia corinthiana e as práticas de liberdade no futebol brasileiro; de Araújo (1996), que analisa as relações entre imigração e futebol a partir da fundação do Palmeiras; e de Malaia & Júnior (2017), que investigam as maneiras pelas quais o imaginário de “time do povo” contribui para a manutenção de uma identidade organizacional que, segundo os autores, confere certa vantagem competitiva ao Corinthians.

Quanto a alguns aspectos definidores da rivalidade entre o Clube de Regatas do Flamengo e o Club de Regatas Vasco da Gama interessam à discussão, principalmente, os trabalhos de Coutinho (2013), Ferreira (2013), Kowalski (2002) e Helal & Teixeira (2001). Em sua tese Um Flamengo grande, um Brasil maior: o Clube de Regatas do Flamengo e o imaginário político nacionalista popular, Coutinho (2013) investiga os fatores que contribuíram para a popularidade e para a abrangência nacional do clube rubro-negro a partir do período marcado pela implantação do regime profissional na agremiação, entre os anos de 1933 e 1955, demonstrando que o estereótipo de clube do povo somente se consolidou após a profissionalização da equipe, elitista à época de sua fundação: “O Flamengo, clube do povo, da paixão ensandecida, o mais querido do Brasil, era, até meados dos anos 1930, o clube da ‘fina flor’ carioca, o clube da força de vontade.” (COUTINHO, 2013, p. 31).

A popularização do Clube de Regatas do Flamengo não ocorreu antes de 1933. A popularização ocorreu somente a partir da profissionalização do clube. Sendo assim, o clube esquecido dos tempos do amadorismo em nada se diferenciava dos outros clubes elitistas da cidade. Dirigentes e associados eram tratados pela imprensa esportiva como símbolos de um sport promotor do espírito civilizado europeu. O Flamengo não carrega o gene da popularidade, como costumeiramente afirmam os estudiosos do clube. (COUTINHO, 2013, p. 36).

A dissertação de Ferreira (2013), “Flamengo, time de favelado!”: Representações sociais do Flamengo na mídia impressa dos anos 1930 aos 1960, analisa período semelhante ao abordado por Coutinho, investigando a construção das representações sociais sobre o clube por seus torcedores e de outros times a partir da instalação física de sua sede na década de 30, junto à comunidade da Praia do Pinto, o que, segundo o autor, contribuiu para a constituição do estereótipo de popularidade que o time carrega até os dias de hoje. A tese de Kowalski (2002), Por que Flamengo?, caminha no mesmo sentido, atribuindo o imaginário de popularidade do Flamengo a uma “construção mitológica”. A autora ainda caracteriza tal popularidade como um dos fatores potenciais para estimular a rivalidade com as demais equipes, tanto do Rio de Janeiro – a exemplo da disputa direta entre o status de popular do Flamengo e o rótulo “pó de arroz” do Fluminense – quanto de outros estados, tendo em vista que o rubro-negro é o clube de maior torcida do país.

Torcida mista no Fla-Flu disputado no Estádio Mané Garrincha, em partida válida pelo Campeonato Brasileiro de 2018. Foto: Lucas Merçon/Fluminense F.C.

Ainda quanto aos estereótipos atrelados à rivalidade entre Flamengo e Vasco, também interessa o artigo O racismo no futebol carioca na década de 1920: Imprensa e invenção das tradições, de Helal e Teixeira (2011), no qual os autores mostram como foi narrada a inserção do negro no esporte mais popular do país, contestando versões que são recontadas como verdades até os dias atuais, a exemplo do pioneirismo do Vasco da Gama em tal inserção.

Região Sul

O foco da discussão sobre a rivalidade clubística no Rio Grande do Sul é o modo como o jornalismo esportivo representa a sociedade e o futebol gaúchos, apropriando-se do discurso da marginalidade para pautar os dois maiores clubes de futebol do estado: Grêmio de Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional. Nessa perspectiva da representação midiática, nota-se a demarcação de uma linha tênue que, de um lado, se guia pelo culto às tradições, mas, do outro, acaba reforçando estereótipos muitas vezes não condizentes com a realidade da federação, das agremiações e até do próprio jogo em si, inclusive sob o risco de fomentar aspectos não sadios da rivalidade clubística. A definição de um estilo gaúcho de jogar futebol é um exemplo clássico dessa estereotipação frequentemente encontrada no noticiário esportivo, muito embora ao longo da história centenária de Grêmio e Inter tenham surgido evidências contrárias a tal estereótipo, como pondera o jornalista Léo Gerchmann (2016):

Em uma comparação simples, o Flamengo tem aquele jogo cadenciado, lindo, tipicamente brasileiro. Parece que todo jogador, ao vestir a camisa rubro-negra do Flamengo, passa a dar toques macios e fazer gols de efeito. No Grêmio, sem abrir mão da técnica de um Valdo, temos a gana de um Dinho, algo não menos lindo. […] Vários ídolos eternos aliam a técnica à garra, mesclam os dois. E assim é o nosso Tricolor. A impressão é de que, assim como ocorre no antípoda carioca, todo jogador que veste o manto azul, preto e branco torna-se um guerreiro, o que não implica violência, mas sim muitíssima emoção. (GERCHMANN, 2016, p. 96).

O modelo dito característico de se jogar futebol também encontra raízes na geografia física do território, servindo como mais um elemento para cultuar as tradições de um estado considerado pelos sul-rio-grandenses como marginalizado e periférico, contornos estes que, nessa ótica regionalista, seriam responsáveis pela falta de representatividade do Rio Grande do Sul diante das decisões político-econômicas tomadas no centro do país. Exemplo disso é que, no futebol, as manifestações contra possíveis prejuízos diante dos clubes do eixo Rio-São Paulo – como erros de arbitragem e não convocações para a Seleção Brasileira – seguem contundentes desde a época do primeiro Torneio Roberto Gomes Pedrosa e da polêmica partida da Seleção Gaúcha x Seleção Brasileira na década de 1970, sempre no ideário da afirmação do futebol do estado. Contudo, é interessante ponderar que, de 2006 em diante, a Seleção Brasileira teve cinco treinadores gaúchos consecutivamente no comando: Dunga, Mano Menezes, Felipão, Dunga (em nova passagem) e Tite, atualmente.

Além dos estereótipos que caracterizam um estilo de jogo tipicamente gaúcho, também é fundamental à minha pesquisa a discussão envolvendo os imaginários de time do povo e time de elite atrelados a Inter e Grêmio, respectivamente. A questão racial, por exemplo, alicerçou a fundação Internacional, em contraposição à fundação do Grêmio que, nos primórdios de sua história, só aceitava membros de descendência alemã em seu grupo. O Inter, fundado pelos irmãos Poppe, que eram descendentes de italianos, teria nascido, então, para englobar aqueles que não eram aceitos no Grêmio, daí deriva-se inclusive o nome “Internacional”, versão esta que se encontra na obra A História dos Grenais (2009), organizada pelo jornalista David Coimbra.

No intuito de refutar essa versão, a obra Somos azuis, pretos e brancos (2015), escrita por Léo Gerchmann, reúne alguns documentos históricos que estariam por trás da fundação dos dois clubes e que desmontariam o mito da segregação racial atribuída ao Grêmio, apontando o racismo no futebol como um reflexo de toda a sociedade brasileira, atrelado às sequelas da escravidão: “Havia, sim, um processo de exclusão dos negros, mas ele nunca foi proposto pelo Grêmio, mas pela sociedade brasileira, profundamente hierárquica e preconceituosa” (GERCHMANN, 2015, p. 9-10).

Torcida mista no Grenal do Campeonato Gaúcho de 2015, no Estádio Beira-Rio. Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

Ainda no tocante ao futebol da região Sul do país, interessam à minha pesquisa trabalhos que abordam o futebol paranaense, considerando-se o rótulo de elitista que recai sobre os dois maiores clubes locais: o Club Athletico Paranaense e o Coritiba Foot Ball Club. Para abordar essa temática, serão úteis os trabalhos científicos de Campos (2006) e Capraro (2004). Segundo Campos, à época da fundação os dois clubes possuíam uma forte identidade com determinados setores da sociedade curitibana. O Coritiba, por exemplo, é conhecido pela alcunha de “coxa branca” por ter sido fundado por imigrantes alemães e descendentes. Inclusive, “a identificação com a comunidade alemã gerou diversas representações sociais de que o Coritiba não admitia negros entre seus atletas, que era um clube racista” (CAMPOS, 2006, p. 94). Já as representações sobre o Athetico recaem, segundo Capraro (2004), no paradigma da modernidade, tendo em vista o pioneirismo do clube na construção de um estádio considerado a grande referência no Brasil e que é tido como “espaço social da fina-flor curitibana”.

Região Nordeste

Embora a bibliografia sobre clubes e rivalidades do futebol nordestino não seja tão ampla, foi possível selecionar alguns trabalhos relevantes a esse respeito, a exemplo da obra Pugnas Renhidas: futebol, cultura e sociedade em Salvador (1901-1924), do pesquisador Henrique Santos (2014), que discute as relações desse esporte com diversas camadas da sociedade soteropolitana, sobretudo quanto à inserção dos negros na modalidade e a caracterização de um “futebol tipicamente baiano”. Também interessa ao debate a tese do pesquisador Paulo Leandro (2011), Ba-Vi: da assistência à torcida. A metamorfose nas páginas esportivas, na qual o autor discute a instituição da torcida de futebol nos jornais de Salvador entre o longo período de 1932 a 2011, evidenciando, inclusive, dois perfis antagônicos: o Esporte Clube Vitória como um clube de origem “amadora” e o Esporte Clube Bahia como um clube de origem “profissional”.

Torcedores pedem paz no Ba-Vi. Foto: Felipe Oliveira/EC Bahia.

Para abordar a rivalidade entre os clubes alagoanos Clube de Regatas Brasil (CRB) e Centro Sportivo Alagoano (CSA) serão úteis, sobretudo, os trabalhos preliminares dos pesquisadores Alexandrino et al. (2016), os quais discutem a violência em Maceió decorrente do clássico local e a influência midiática na rivalização das duas equipes. Segundo os autores, a imprensa esportiva alagoana é responsável por potencializar as manifestações de violência entre os torcedores, inclusive se utilizando de estereótipos para fomentar um clima de “guerra de classes” entre as torcidas.

Ao tratar o CSA como “o clube do Mutange” ou “do mangue”, e o CRB como o “galo da praia”, “da Pajuçara”, a mídia reforça dois estereótipos: o de que todos os torcedores azulinos são periféricos – a imagem dos catadores de sururu da lagoa Mundaú – e o de que todos os regatianos são da elite e moradores dos bairros litorâneos – o aristocrata branco que assiste ao jogo da tribuna de honra. Ocorre, portanto, a construção de um caráter de “guerra de classes”, ao se generalizar, erroneamente, duas torcidas que dividem em cores um estado de mais de 3 milhões de habitantes, das mais variadas esferas econômicas e sociais. Há patrões e proletários, trabalhadores informais e aristocratas, nas torcidas dos dois times, logo, a ideia de “povo versus elite”, na disputa entre CRB e CSA, é uma mitificação proposta pela mídia. (ALEXANDRINO ET AL., 2016, p. 6).

No tocante ao futebol pernambucano, interessam principalmente as pesquisas de Carvalho et al. (2017) e Ferreira et al. (2014). No artigo Símbolos e rituais do futebol espetáculo: uma análise das emoções no campo de jogo, Carvalho et al. (2017)  identificam e analisam os símbolos e rituais de torcedores das três principais equipes do estado: Sport Club do Recife, Santa Cruz Futebol Clube e Clube Náutico Capibaribe, evidenciando mascotes, cores, orações, superstições e consumo de álcool como alguns dos símbolos mais significativos no modo de torcer dos rivais. Já o estudo de Ferreira et al. (2014) investiga como os mecanismos de identificação e da diferença são utilizados para reforçar midiaticamente as supostas identidades dos torcedores dos clubes pernambucanos. Já sobre a rivalidade entre o Ceará Sporting Club e o Fortaleza Esporte Clube, um dos trabalhos mais significativos é do pesquisador Rodrigo Pinto (2007), que analisa a construção da história do futebol cearense e os conflitos sociais em torno da bola, considerando-se a origem elitista da prática e a formação operária de Ceará e Fortaleza.

Região Norte

A despeito do enfoque que as pautas do jornalismo esportivo dão ao futebol do eixo Rio-São Paulo, o clássico Remo x Paysandu (RePa ou Clássico Rei da Amazônia) vigora entre os duelos mais disputados e equilibrados do mundo, com mais de 700 partidas em 105 anos de confrontos. De 1914 a 2017 foram 737 clássicos disputados entre as equipes, sendo 256 vitórias do Clube do Remo contra 231 do Paysandu Sport Club, além de 250 empates. Os números contabilizados na dissertação da pesquisadora Aline Freitas (2017) demonstram que o Clássico Rei da Amazônia é o mais disputado do Brasil, ainda que não tenha essa mesma expressão em termos de cobertura midiática. Importante salientar que o fato de ser o clássico mais disputado do país, não significa dizer que Remo e Paysandu representam a maior rivalidade clubística brasileira, visto que essa afirmação pode variar conforme os critérios de análise e demandaria novas pesquisas para ser validada cientificamente.

Ainda assim, pode-se dizer que o equilíbrio entre os dois clubes, que é outra marca expressiva do duelo Re-Pa, também contribui para reforçar o teor desta rivalidade: das 103 edições do Campeonato Paraense, são 47 taças do Paysandu e 46 do Remo. Interessante ressaltar que, entre os campeões estaduais brasileiros, somente as equipes Avaí e Figueirense têm o mesmo equilíbrio de troféus – 17 e 18 taças respectivamente, nas 47 edições do Campeonato Catarinense. Nem mesmo os maiores vencedores dos campeonatos Carioca e Paulista contam com disputas tão acirradas, sendo 35 taças do Flamengo contra 31 do Fluminense e 30 taças do Corinthians contra 22 do Palmeiras – embora não se possa desconsiderar que nesses estados existem outros clubes de ponta no torneio. Porém, até na comparação com outros estados com apenas dois times em disputa, como Minas Gerais (44 títulos do Atlético e 38 do Cruzeiro) e Rio Grande do Sul (46 títulos do Internacional e 38 do Grêmio), o clássico Re-Pa se mantém como o confronto mais equilibrado do Brasil.

Quanto ao sentimento clubístico, o assunto é objeto de estudo na citada dissertação de Freitas (2017), intitulada Não É Só Futebol: uma análise dos laços de afetos que envolvem os torcedores do Clube do Remo, a partir de processos socioculturais comunicativos. A autora faz um estudo etnográfico para compreender como se dá a produção de sentido dos torcedores do Remo em uma dimensão afetiva e coletiva. Em seu estudo etnográfico, Freitas (2017, p. 78), ao perguntar a torcedores remistas o que é o amor pelo time do Remo, ressalta que diversas vezes eles “fizeram questão de lembrar que o sentimento dos torcedores rivais é payxão e isso é passageiro”, remetendo ao slogan utilizado pelo Paysandu para explicarem que, ao contrário do rival, eles sim lotam o estádio porque têm amor ao clube, e não somente paixão. Em perspectiva contrária, uma matéria no site oficial do Paysandu, escrita por Ronaldo Santos (2014) traz informações interessantes ao objeto de estudo da minha tese. Ao fazer um perfil de Seu Raimundo, “o torcedor mais antigo do Paysandu”, Santos destaca a fala final do entrevistado, suscitando o estereótipo de que este seria o “verdadeiro clube do povo”, ao contrário do rival Remo.

Seu Raimundo disse que o Paysandu é verdadeiramente o time do povo, e que por isso, tem a maior torcida do Estado e da Região Norte do País. “Para torcer pro Paysandu não precisava de nada, somente do amor pelo clube. No Remo era diferente, só entrava quem estivesse devidamente trajado com terno e gravata, quando no Paysandu não existia estes requisitos. O Paysandu é verdadeiramente o time do povo, e o time que deu as maiores glórias para o futebol paraense”. (SANTOS, 2014, s/p).

Como abordado no início do tópico, Paysandu e Remo representam o duelo mais disputado e equilibrado do Brasil. Uma única taça do Campeonato Paraense separam os dois rivais. Vale lembrar ainda que o Paysandu é o segundo clube brasileiro com mais taças estaduais: 47 contra 55 do ABC Futebol Clube, de Natal. O Remo aparece logo em terceiro lugar, com 46 troféus de campeão do Pará. Os títulos estaduais são, inclusive, o grande trunfo dos remistas na comparação com o rival. Além disso, em sua campanha como Campeão Brasileiro da Série C em 2005, o Remo bateu recordes de público entre todas as séries do campeonato, com uma média de 30 mil torcedores por jogo. O Paysandu, por sua vez, está melhor posicionado no ranking de clubes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), com conquistas nacionais mais expressivas, como a extinta Copa dos Campeões que lhe rendeu o feito inédito de ser o único clube do norte do país a disputar uma edição da Copa Libertadores da América.

Gol de Betinho no clássico Re-Pa. Foto: Fernando Torres/Divulgação/Paysandu.

Região Centro-Oeste

Em meio à restrita bibliografia sobre o futebol na região centro-oeste do país, interessam-me as pesquisas de Leão (2016), Nascimento (2007) e Gonçalves & Silva (2011). Em Futebol em Goiânia: sociabilidades e espaços, Leão faz um trabalho etnográfico para restituir a configuração social da memória coletiva que conecta a

cidade de Goiânia e o futebol. Em Futebol, sociabilidade e psicologia de massas: ritos, símbolos e violências nas ruas de Goiânia, Nascimento propõe uma análise etnográfica das práticas sociais de uma torcida organizada do Vila Nova Futebol Clube em dias de jogos contra o rival Goiás Esporte Clube. Já o trabalho de Gonçalves & Silva, O futebol na geografia: a difusão socioespacial do futebol em Goiânia, analisa o papel dos clubes de futebol profissional na configuração da cidade.

Segundo Gonçalves & Silva (2011, p. 166), “a construção da nova capital foi fundamental para a consolidação de um futebol ainda incipiente. Goiânia e o futebol nascem praticamente juntos, em um fenômeno diferenciado do restante do Brasil.”, considerando-se a Revolução de 1930 e o ideário nacionalista da “Marcha para o Oeste”. Os autores apontam a construção da Ferrovia Mogiana, ao sul do estado, como uma das primeiras políticas de integração de Goiás ao principal eixo econômico nacional, a cidade de São Paulo. Daí surgiram as primeiras agremiações esportivas do estado, os clubes ditos “ferroviários”, tendo a ferrovia como elemento simbólico. Goiás e Vila surgiram depois, no contexto de desenvolvimento de Goiânia, que passa então a ser a nova capital do estado, “engendrada e planejada para ser uma cidade moderna, que representaria um novo Estado de Goiás e que se integraria de fato no bojo da economia brasileira” (GONÇALVES & SILVA, 2011, p. 168).

Em 6 de abril, um grupo de amigos se reuniu no centro da cidade e desse encontro resultou a criação do Goiás Esporte Clube. Todos os presentes eram paulistas descendentes de italianos e torciam para o extinto Palestra Itália (atualmente Sociedade Esportiva Palmeiras), da cidade de São Paulo. Desta forma, foram escolhidos o verde e o branco como as cores do uniforme, as mesmas que utiliza o clube paulista. Como a torcida paulista tinha o periquito como mascote, logo os fundadores do Goiás o incorporaram como mascote do novo clube que surgia. Tal adoção foi facilitada também pelo fato de o periquito ser uma ave bastante conhecida na região Centro-Oeste do Brasil. A ideia original era dar ao clube o nome de Palestra Itália; todavia, o contexto político brasileiro da época não permitiu que tal vontade fosse realizada.

Com esse trecho, os autores chamam atenção para a influência socioespacial exercida pelo eixo Rio-São Paulo na formação de diversos clubes do interior brasileiro, apontando a migração paulista dos descendentes de italianos como uma das principais vertentes do surgimento do futebol no Centro-Oeste. No mesmo ano em que é fundado o Goiás, surge o Vila Nova, embora este já desenhasse sua existência há alguns anos. “Desportistas entusiastas do então clube amador Associação Mariana aceitaram o desafio de fundar um clube para representar o bairro conhecido como a ‘vila mais famosa’, a Vila Nova” (GONÇALVES & SILVA, 2011, p. 169). Desse modo, o clube surge como uma agremiação totalmente identificada com determinado lugar, no caso um bairro de classes sociais menos favorecidas, o que fornece pistas para abordar alguns dos estereótipos que dimensionam a rivalidade entre Goiás e Vila.

O Vila surgiu de gente humilde. O bairro da Vila Nova não passava de uma área invadida. A construção de Goiânia se deu graças à mão de obra de cidadãos de outros estados. Veio gente do Ceará, do Maranhão, de Minas Gerais, da Bahia, do Piauí, de Pernambuco e de Alagoas. Essas pessoas moravam em minúsculas casinhas de três cômodos, plantavam suas hortas no quintal e a comida era feita no fogão de lenha. Como não planejaram um espaço para os homens que ajudaram na edificação da nova cidade e a maioria não tinha dinheiro para comprar um lote em Campinas ou no Bairro Popular, o jeito foi invadir um pedacinho de chão lá pros lados do Córrego Botafogo. Local distante, sem asfalto e sem transporte. Lugar de gente simples: pedreiros, serventes, carpinteiros e operários. (SILVA apud GONÇALVES & SILVA, 2011, p. 170).

Torcedores de Goiás e Vila Nova. Foto: Divulgação/Jornal O Popular.

Considerações finais

Considerando-se a abrangência geográfica dos apontamentos aqui propostos, não posso deixar de mencionar ainda a importância dos trabalhos que relacionam o futebol às hierarquias urbanas, a exemplo das pesquisas do geógrafo Gilmar Mascarenhas, que traça paralelos sobre o processo histórico de desenvolvimento desse esporte no Brasil com os efeitos da concentração de poder e de capital que hoje pairam sobre a modalidade. No artigo Futebol, globalização e identidades locais no Brasil (2008), o autor aponta, por exemplo, para a contradição existente entre as forças mercadológicas da globalização – que tendem a transformar o torcedor em consumidor do espetáculo futebolístico – e a manutenção de tradições locais, considerando-se, inclusive, a força das rivalidades estaduais do futebol brasileiro.

Deve-se notar que, quando clubes da mesma cidade participam de competições nacionais ou internacionais, ao nível do cidadão comum, vemos uma disputa paralela contínua, porque o que realmente interessa ao torcedor é saber qual das equipes está melhor posicionada. E ele não apenas aplaude as vitórias do seu clube, mas também as derrotas do seu rival local. (MASCARENHAS, 2008, p. 12).

Quanto ao ato de aplaudir a derrocada do rival, atribuo esse sentimento à natureza sociológica do conflito, evidenciada pelo sociólogo alemão Georg Simmel (1983). Ele defende que toda relação conflituosa, por si só, é uma forma de sociação, de modo que o conflito estaria destinado “a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das partes conflitantes” (p. 22). Nesse sentido, para o adversário é como se pouco importasse a condição social do outro – se povo ou elite, se pobre ou rico, se negro ou branco – mas sim se ele torce ou não para o mesmo time.

Tanto é que, em dia de clássico, é nítida a separação entre os alambrados rivais. Até mesmo no entorno dos estádios o policiamento é reforçado para que os adversários tomem cada qual seu espaço e não se cruzem pelo caminho. Nesse cenário, percebemos que a prática do schadenfreude – palavra de origem alemã que, em bom português, significa ficar feliz pela desgraça do outro, vigora independentemente do alcance da partida ou da dimensão dos clubes em disputa. Porém, qual a garantia de que realçar os problemas e estigmas do rival resolverá as pendências do seu time do coração, fazendo com que ele suba na tabela? Nenhuma. Mas talvez resida justamente nessa perspectiva um dos maiores clichês do nosso futebol: clássico é clássico. E vice-versa.

Referências

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Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

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Thalita Neves

Jornalista (UFOP), mestra em Jornalismo (UFSC) e doutoranda em Comunicação (UERJ). Pesquiso aspectos socioculturais das rivalidades clubísticas do futebol brasileiro.

Como citar

OLIVEIRA, Thalita Raphaela Neves de. Clássico é clássico e vice-versa?. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 3, 2020.
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