Há um ano e tanto, quando ainda existia futebol, assisti no Maracanã a uma partida entre Bangu e Vasco, pelo segundo turno do Campeonato Carioca de Futebol, a Taça Rio. O time do subúrbio taticamente muito bem estruturado não saiu, entretanto, vencedor da peleja. No mítico estádio, jogava no ataque alvirrubro o filho de um ídolo, Felipe, herdeiro sem fortuna de Cláudio Adão, o ótimo centroavante que passou pelos quatro grandes clubes do Rio de Janeiro.

Não vi Cláudio Adão jogar pelo Santos, time pelo qual foi revelado no início dos anos 1970 e em que logo se tornou candidato a sucessor de Pelé, com quem chegou a jogar em algumas ocasiões. A sucessão do Rei foi durante muito tempo uma infrutífera procura dos súditos órfãos, da imprensa, de todos que um dia se deram conta de que no futebol tudo tem fim.

Lembro-me de pela leitura de uma Placar de 1977 vir a saber da existência do promissor atacante que se recuperava de grave lesão, agora já vinculado ao Flamengo. Ele fraturara a patela e uns quantos ligamentos em um choque com o goleiro do América, de Rio Preto, pelo Paulistão de 1976. Não se comparam os recursos para recuperação física de que hoje dispomos com aqueles oferecidos quarenta anos atrás. Uma lesão grave significava, para muitos, o fim da carreira. No caso do jogador, cerca de um ano afastado da bola.

Mas Adão se recuperou na cidade do Rio de Janeiro e foi pelo Flamengo e no Maracanã que ele encontrou o território para colocar à prova a técnica refinada e a notável habilidade com a bola, que não eram poucas. Tá lá o Adão!, dizia o locutor carioca cada vez que o artilheiro deixava sua marca e fazia sua peculiar corrida na comemoração, ombros um pouco erguidos, na direção das gerais do Maracanã.

No Fla fez uma dupla de ataque infernal com Zico, centroavante e ponta-de-lança, como se dizia à época. Isso foi no final dos anos 1970, quando o Rubro-negro começava a escalada que culminaria nos títulos do Brasileiro, da Libertadores e da Copa Intercontinental. É certo que nenhum dos companheiros esteve completamente à altura do Galinho, mas ele sempre teve ótimos parceiros: Luisinho Lemos, Cláudio Adão, Nunes, Renato Gaúcho, até mesmo Beijoca. É certo que neste último caso o atacante vindo do Bahia estava alguns degraus abaixo dos outros.

Adão nunca teve chances na seleção principal, nem mesmo quando Cláudio Coutinho era treinador do escrete, ele que o levara ao Flamengo depois de tê-lo conhecido na seleção que representou o país nos Jogos Pan-americanos do México, em 1975. O capitão-paraquedista e tradutor de Kenneth Cooper fora supervisor do time. Coutinho foi destacada figura na preparação física e também atuou bem como treinador. Sim, há vida inteligente no Exército Brasileiro, malgrado a formação autoritária que parece que é praxe na caserna.

A chance no selecionado nacional talvez não tenha vindo porque havia muito bons centroavantes que compartilharam algum momento da carreira com a de Adão: Reinaldo (o melhor deles), Roberto Dinamite, Careca (o segundo melhor), Serginho, César, Palhinha, Nunes. Além de um segundo time, formado por Baltazar, Luizinho, André, Geraldão. Devo ter sido injusto com o escalonamento e com a falta de lembrança de alguém.

Adão jogou em vários outros times, no Brasil e no exterior, além do Santos e dos grandes do Rio. Teve sucesso no Fluminense, no Bahia e no Vasco. Foi campeão da segunda divisão carioca, já em final de careira, pelo Campo Grande. Atuou bem na curta passagem pelo Corinthians, onde fez um bom número de gols, um deles, de calcanhar, contra o Palmeiras.

Cláudio Adão. Foto: Laís Torres/CBF.

Com sessenta e tantos anos, cabelos brancos, parece que ainda joga futevôlei em bom nível. Hábil com a pelota sobre a areia, foi nela que fez a preparação de Luana Piovani para um filme em que a atriz viveria uma jogadora pelo futebol, O casamento de Romeu e Julieta (Bruno Barreto, 2005). Por falar nisso, o sogro do ex-jogador é Luiz Carlos Barreto, o produtor mais importante que o cinema nacional já teve. Ademais, foi um importante fotógrafo cinematográfico do Cinema Novo, tendo trabalhado em um dos mais destacados filmes de futebol já realizado no Brasil, o documentário Garrincha, a alegria do povo (1965), de Joaquim Pedro de Andrade.

Cláudio Adão tentou trabalhar como treinador, mas não teve grandes oportunidades. O racismo presente no futebol lhe teria dificultado a carreira, afirma. É o mesmo que Andrade, campeão brasileiro pelo Flamengo em 2009, costuma dizer sobre sua própria situação. Sabemos o quanto o racismo é estrutural na formação do país. No futebol a presença de jogadores negros demorou para ser admitida, devendo-se ela principalmente à profissionalização do esporte.

O futebol tornado profissão, aliás, é uma das chaves que abriu portas para muitas minorias sociais e políticas ao longo do século XX, judeus entre elas. Na Série A os treinadores negros são Roger Machado, do Bahia, que vem sendo acusado de “falar demais sobre racismo”, e Vanderlei Luxemburgo, do Palmeiras. Dez por cento do montante, o que não é representativo, nem de longe, nos termos do contingente populacional brasileiro.

Paulo Cézar Lima com frequência relata sua experiência como dependente químico, foram quinze anos de muito sofrimento. Segundo ele, quando tudo parecia perdido e as esperanças iam para o ralo, foram Cláudio Adão e sua esposa Paula Barreto que lhe abriram a porta de casa e o acolheram. Craque no gramado, nas areias, na amizade. Não é pouco para uma vida.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Cláudio Adão – Gols, racismo, amizade. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 31, 2020.
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