Overlaping, ponto futuro, futebol total. O vocabulário que Cláudio Pêcego de Moraes Coutinho fez incorporar ao futebol brasileiro na segunda metade dos anos 1970 era alvo de seguidas anedotas da imprensa, principalmente a de São Paulo. Coutinho substituíra Oswaldo Brandão no comando do selecionado brasileiro de futebol no primeiro semestre de 1977, durante as eliminatórias para a Copa do Mundo que seria disputada na Argentina, um ano depois. A seleção fracassara na primeira partida, contra os colombianos em Bogotá, depois de quarenta (!) dias de treinamento e aclimatação à altitude. Sob ar rarefeito e falta de um esquema tático convincente, o placar do jogo não saiu do zero. Insatisfeitos com o resultado, os dirigentes da CBD (Confederação Brasileira de Desportos, depois substituída pela CBF) contrataram o então treinador do Flamengo, clube cujo sucesso extraordinário no final da década de setenta e início da seguinte muito deve a ele. Coutinho fora preparador físico da equipe nos Mundiais de 1970, no México, e 1974, na Alemanha Ocidental, além de treinador nos Jogos Olímpicos de 1976, em Montreal.

Quando vi pela televisão Coutinho, já treinador da seleção, com um agasalho azul da marca Adidas, em tecido brilhante, tive a sensação de me deparar com o futebol não mais apenas como jogo, mas como esporte. Dizia-se que ele não sabia praticá-lo, que não fora futebolista – lembro-me de minha avó destacando que lera no jornal um relato sobre sua falta de habilidade com a pelota –, mas que era um estudioso da coisa, com formação científica e conhecimento do que se fazia de mais avançado no mundo. Adidas significava Alemanha Ocidental, seleção campeã em 1974. Dado que o país apresentava expressivo sucesso em outras modalidades esportivas, parecia que, epicentro da Guerra Fria, trouxera às quatro linhas do campo a força da preparação meticulosa.

As imagens que víamos dos grandes centros de treinamento alemães não deixavam dúvida: frio, sobriedade, grama verdinha, atletas se exercitando organizadamente, equipamentos de musculação, esteiras para corrida, testes, dados, filmagens. Nada a ver com o calor e os campos de terra batida, os risos e improvisos locais. Depois da derrota de 1974, como acontecera em 1966, a imprensa esportiva nacional se debatia com as razões dos fracassos e uma das respostas, ainda que não sem controvérsias, indicava nossa falta de organização que não potencializaria o talento “nato” dos jogadores.

Mas, de fato, Coutinho encarnava a Ciência no Esporte. Traduziu e divulgou as obras de Kenneth Cooper no Brasil, para logo montar, com colegas, todo um protocolo de testes físicos para o time que chegaria em ótima forma à Copa de 1970. Foi na Biblioteca da UFSC, em Florianópolis, ainda estudante do ensino médio, que li um relatório dos testes daquela seleção, publicado pela Editora Planeta e assinado por Coutinho, Admildo Chirol e Carlos Alberto Parreira. Lá estão os resultados de cada atleta nos testes de Cooper (Brito o melhor, acima de 3000 metros, Pelé um tanto menos), 50 metros rasos, Banco de Balke, entre outros procedimentos típicos do que havia de disponível na época. Junte-se a isso o detalhado planejamento para adaptação progressiva à altitude mexicana, elaborado por Lamartine Pereira da Costa[1] e bem executado pela seleção, e estava posta a ciência a serviço do futebol.

A ciência que Coutinho representou para o futebol era oriunda, em boa medida, do Exército Brasileiro, em que chegou a Capitão e exerceu a função de paraquedista. Como tal, e junto com sua comissão técnica, sua ciência não deixou de ser política: preferiu renunciar a jogadores “problemáticos”, como o craque Paulo Cézar Lima, mas autorizava cabelos longos, como os do lateral Orlando, do Vasco, desde que bem penteados! Não, a Abertura Política ainda não alcançara o futebol, Afonsinho já havia sido marginalizado, Sócrates recém despontava no Botafogo de Ribeirão Preto.

Cláudio Coutinho. Foto: Wikipédia.

Perguntado em 1979, se era mais difícil jogar contra a seleção da Argentina em Buenos Aires ou saltar de paraquedas na Amazônia, o militar reformado vaticinou: se partida de torneio Sul-americano, salto de paraquedas na imensidão da floresta; se de Mundial, mais difícil enfrentar os hermanos. Coutinho permanecera no comando depois das Eliminatórias e fora o treinador brasileiro na Copa de 1978, disputada na Argentina. Em equipe montada a seu modo, sem Falcão – a grande ausência entre os convocados –, com apenas um lateral-esquerdo de ofício no elenco (Junior, do Flamengo e Wladimir, do Corinthians, ficaram no Brasil), a seleção brasileira enfrentou os argentinos em dramática noite de domingo, dezoito de junho, um zero a zero que se tornaria conhecido como A batalha de Rosário.

Disputando ademais com Peru e Polônia uma vaga na final, foi a Argentina que a alcançou, restando ao Brasil a disputa pelo terceiro-lugar. Com o empate em pontos dentro do grupo, pesou o saldo de gols a favor da equipe da casa, alcançado depois do fatídico jogo contra os peruanos. Em um Monumental de Nuñez, estádio do River Plate, abarrotado de fanáticos torcedores, os argentinos jogaram sabendo a diferença de gols que deveriam conseguir, já que Brasil e Polônia se haviam enfrentado horas antes. Contra o bom time andino, eram necessários quatro gols, empreitada que não parecia fácil. A pressão sobre os já desclassificados visitantes foi tremenda. Supõe-se que o próprio ditador Jorge Rafael Videla, que assistia ao jogo ao lado de João Havelange, então presidente da FIFA, desceu ao vestiário adversário. O fato é que rapidamente os argentinos fizeram os quatro gols, chegando a seis e mantendo a meta de Fillol invicta. Passada a fatura, restavam os holandeses na final.

No Brasil falou-se muito em jogo “comprado”. Não acredito nisso, e não porque não fosse possível. A ditadura na Argentina fez coisa muito pior e sem qualquer constrangimento. É que não foi necessário e suponho que seria difícil corromper os jogadores peruanos. Além disso, mais do que a pressão feita, não esqueçamos, o time argentino era muito forte. Há resultados incríveis em Copas, como na última, aqui mesmo no Brasil.

Coutinho disse e repetiu que foi campeão moral daquele Mundial. Discordo. Foi o terceiro colocado, invicto. Nada mais.

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2017.

[1] Sobre o tema, sugiro a leitura de Soares, A.J.G.; Salvador, M.A.S.; Bartholo, T.L. O “futebol arte” e o “planejamento México” na copa de 70: as memórias de Lamartine Pereira da Costa. Movimento. Porto Alegre, v. 10, n. 3, p.113-130, setembro/dezembro de 2004.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Cláudio Coutinho (ou, o futebol moderno). Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 16, 2017.
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