147.39

Clica! Apontamentos sobre a assistência de jogos eletrônicos

Clayton Denis Alino da Silva 24 de setembro de 2021

Dos fliperamas aos grandes eventos realizados atualmente, os jogos eletrônicos têm atraído mais adeptos e vêm se transformando paulatinamente em uma indústria não só para os jogadores, mas também para os espectadores destes jogos, gerando uma nova prática de entretenimento e uma forte indústria de produção de mídias digitais voltadas ao público espectador. Esse fenômeno econômico-cultural não pode ser menosprezado. Representa hoje em dia um mercado multimilionário, que mobiliza milhões de pessoas e participantes ativos que correspondem a 60% do tráfego de dados de internet mundial[1], referente à soma dos serviços digitais de streaming[2] e de jogos eletrônicos.

A popularização dos dispositivos eletrônicos, da expansão do serviços de banda larga, do desenvolvimento dos games[3] para esses dispositivos e dos serviços de streaming, geralmente de fácil manejo e gratuitos, fazem o jogar e o assistir elementos cada vez mais importantes da cultura mundial, para crianças, jovens e adultos, inserindo-se no cotidiano, na linguagem e no estilo de vida dos indivíduos, independente de classe e gênero, raça e sexualidade, embora haja ressalvas quanto à representatividade e à presença dos discursos hegemônicos que existem na comunidade gamer[4] que é reflexo da sociedade em que vivemos.

Games com partidas competitivas, os denominados e-Sports[5], ou mesmo jogos mais casuais, se tornaram referência de conteúdos para plataformas de streaming como Twitch.TV, Youtube e Facebook Gaming, mas também nas transmissões de televisão nacional e internacional, em canais como SporTV, ESPN e Fox Sports, e até mesmo na programação aberta de emissoras brasileiras como SBT e Globo.

Esports
Foto: Wikipédia

Seja via computador, videogame ou celular, os jogos eletrônicos foram inseridos na cultura. E a praticidade de acesso ao jogo fez com que esse deixasse de ser um elemento esporádico de ludicidade e passasse a se infiltrar cada vez mais no cotidiano das pessoas. Assim como o jogar, a prática espectadora de videogames se tornou comum, principalmente pelas plataformas de streaming que possuem transmissão ininterrupta de campeonatos, jogos casuais, treinamentos de equipes/organizações[6] e jogadores profissionais. Ou mesmo pelos criadores de conteúdo, que são um novo fenômeno cultural graças a esses serviços de streaming e às novas ferramentas de comunicação digital pela internet, ganhando relevância como forma cybercultural de produção de mídia, num movimento bilateral de comunicação entre transmissão e recepção do conteúdo gerado/consumido.

Assim, as plataformas digitais assumem o papel das mídia tradicionais para essas formas de transmissões de partidas, revolucionando a dinâmica da indústria do entretenimento e as formas de recepção do que é transmitido, seja de forma profissional ou não, seja de comunicadores profissionais ou casuais.

Os serviços de streaming citados criam uma participação/interação do espectador pela interação gerada pela plataforma digital, que geralmente é dada por uma caixa de chat entre os que estão assistindo e, assim, eventualmente comentado pelo jogador ou narrador da partida, que utilizam microfones. Essa comunicação gera uma relação mais intima entre quem assiste com o conteúdo consumido e também com os jogadores que transmitem as partidas. Essa transformação midiática incentiva a participação e a interação dos consumidores, que se opõem à passividade da assistência gerada pela televisão e passam a conviver mais com essa cultura emergente da convergência (JENSKINS, 2009) dessas plataformas.

Também existe uma sensação de controle mediado do que se é assistido pelo espectador, fazendo que esse deixe de ser meramente passivo na transmissão da partida, mas que tenha a capacidade de decisão. A partir dessa interação e de outras ferramentas, é possível votar qual perspectiva da partida deseja ver, seja de um ou outro jogador, personagem, posição ou lugar do mapa, ou mesmo se querem que o jogador realize alguma alteração em suas estratégias ou artifícios para vitórias: como armas, poderes e personagens, a depender do jogo, já que muitos desses jogos, principalmente os competitivos, são realizados por equipes em que os jogadores exercem funções diferentes para concluir seus objetivos e vencer seus oponentes.

Porém, o hype, isto é, o que se torna mais famoso e é mais assistido, são as partidas realizadas em campeonatos, que geralmente envolvem uma alta premiação monetária e que são disputados pelos melhores jogadores profissionais nas diferentes modalidades de jogos. Nestes modos de transmissão a participação de decisão dos espectadores é menor, mas intensifica-se a comunicação realizada pelo chat, principalmente pelos espectadores que são torcedores. Jogados em equipes, os E-Sports possuem, como nos esportes tradicionais, torcedores e fãs, um sistema de lealdade (DAMO, 2002) que faz com que as equipes não sejam somente parte dessa indústria do entretenimento, mas criadoras e transformadoras de personalidades, sentimentos de pertencimento e performances torcedoras.

No Brasil, país em que as formas de torcer são apresentadas pelo futebol (o esporte mais tradicional do país), não podemos colocar as práticas torcedoras realizadas nas competições de videogames junto às práticas de torcer dos esportes tradicionais sem antes apontar as diferenças de mecânica e de estrutura: dos jogos, das formas de comunicação em que são dadas as recepções das emoções da partida, dos discursos, da espetacularização, das semiologias e de outras expressões culturais particulares que são oriundas dessas formas de assistência e dessas práticas de torcer, como o processo de remediação nas transmissão dos videogames e as peculiaridades que são geradas pelas outras mídias – televisão e rádio principalmente – nos esportes tradicionais.

Huizinga não viveu o suficiente para ver a indústria contemporânea dos jogos eletrônicos, dos videogames e aplicativos lúdicos para smartphones, tablets e PCs. Mas não se teria surpreendido em ver que, quanto mais esforço fazemos para expurgar o “espírito do jogo” de nossas atividades “sérias”, mais ele nos cerca e povoa o mundo com “diversões” e “espetáculos”, oferecidos por uma indústria que faz da produção de lazer o seu trabalho. […] Entretanto, […] acreditamos que o princípio lúdico da Humanidade está mais profundamente impregnado na vida das pessoas do que o mercado de consumo consegue alcançar. (GASTALDO; HELAL, 2013, p.117).

Hoje, a popularidade no Brasil das equipes de E-Sports na internet são concorrentes à do futebol, tendo os números de curtidas e seguidores nas redes sociais das equipes PaiN Gaming e LOUD disputando diretamente com Flamengo e Corinthians, equipes com maiores torcidas do Brasil[7]. Essa popularidade alcançada por equipes e jogadores desafiou os próprios clubes de futebol a se aventurarem nos diferentes cenários competitivos de jogos eletrônicos[8] e também a trazerem expoentes dessa nova geração para suas divulgações e campanhas publicitárias, tendo o Corinthians apresentado seu uniforme de 2020 pelo streamer[9]Gaulês.

Gaules
Gaules posa com a camisa 2 do Corinthians. Foto: Divulgação

As interações envolvidas nos jogos de videogames se diferenciam a cada modalidade de jogo, de acordo com a dinâmica do próprio jogo, da transmissão e da comunidade que o cerca, mas pode ser definida por alguns apontamentos em comum entre elas: comentários das jogadas; retrospectos e históricos das equipes; especulação de jogadas e dicas de como ganhar a partida; chacota e xingamentos contra adversários, streamers, times, jogadores, entre outros. Lembrando que muitas dessas comunicações acontecem em forma de metalinguagem, com excesso de palavras e verbos tomadas do inglês e que são conjugados no português, como “trollar”, “defusar”, “pickar”, “dropar[10].

Ainda, tal qual os espectadores dos esportes convencionais, os espectadores de videogame buscam por acompanhar seus times e streamers favoritos, seja pela diversão, pela estética, pela busca de aprendizado de como jogar melhor, ou pela busca de excitação (ELIAS, DUNNING, 1992), mas também pela presença de estar entre a comunidade que lhe agrada ou que quer se fazer parte; e, pelo confronto com outros usuários da plataforma, já que podemos entender a internet como espaço de conflitos e confrontos de comportamentos tóxicos, como são chamados as formas abusivas, agressivas e preconceituosas que são facilitadas pelas interação não face-a-face (GOFFMAN, 1967). Assim, juntamente à performance do torcer está intrínseca a performance do comportamento relacionada às comunidades de jogo, jogadores, espectadores e torcedores.

Para os que assistem e jogam, a diferença entre o que se joga e o jogo que se assiste são mínimas, por isso o assistir desses jogos se torna também um aprendizado de como jogá-los para os espectadores praticantes da modalidade. Mas é importante deixar claro que nem todos os espectadores de jogos digitais são também praticantes das modalidades que assistem ou de qualquer outra modalidade, e que nem todos os que assistem as partidas interagem com jogadores, streamers ou outros espectadores. Assim, podemos buscar compreender também outras formas de assistências dessas partidas.

A fim de encerrar este breve apontamento sobre o assistir e o torcer de jogos e competições eletrônicas, que demanda maior pesquisa das áreas de Ciências Humanas, é preciso entender que os jogos mudaram a si mesmo, reinventam formas de comunicação e informações existentes e também a cultura e as práticas sociais e simbólicas em uma hiperconexão interativa, que, segundo Van Djick (2016). Sem contar que o torcer, por mais que ainda se pareçam com o torcer dos esportes tradicionais, gera uma interação bilateral, inaugurando uma nova forma de significação e de consumo daquilo que se é produzido para o entretenimento.

Notas

[1] SANDVINE. The Global Internet Phenomena Report. 2018.

[2] Tecnologia de transmissão de vídeo e áudio pela internet.

[3] Jogos, do inglês, usado principalmente para se referir a jogos eletrônicos, sejam eles para computador, console ou celular.

[4] Grupo de pessoas que se relacionam através dos jogos eletrônicos.

[5] Termo usado para competições de videogames que envolvem jogos como League of Legends, FreeFire, Counter-Strike, Dota2, Fortnite, Fifa, Street Fighter, entre outras.

[6] As equipes brasileiras com mais torcedores são: LOUD, Corinthians e-Sports, PaiN Gaming, Fluxo, INTZ e miBR.

[7] A popularidade da organização brasileira LOUD nas redes sociais (Twitter, Instagram, Tiktok e Facebook) é maior que qualquer um dos 20 times da Série A do Campeonato Brasileiro de 2021.

[8] Muitas equipes brasileiras de futebol possuem também organizações de e-Sports, estando entre eles Flamengo, Corinthians, São Paulo, Santos, Cruzeiro, Atlético-MG, Athlético-PR, Goiás, Bragantino, Londrina e Ceará. Internacionalmente, existem também equipes de Paris Saint-Germain, Barcelona, River Plate, Boca Juniors e outros. Os e-Sports também são investimentos de diversos atletas e ex-atletas, entre eles Casemiro, do Real Madrid, Ronaldo Fenômeno e o jogador de pôquer Akkari.

[9] Termo designado para quem transmite conteúdo via streaming.

[10] Traduzindo estes termos êmicos: perturbar, desarmar, escolher e soltar.

Bibliografia

ALINO-SILVA, C.; DA LUZ SANCHES, R. GGWP: uma aproximação ao torcer de esportes eletrônicos no Brasil. XIII Reunião de Antropologia do Mercosul, 2019

BOLUK, S; LE MIEUX, P. Metagaming: Playing, Competing, Spectating, Cheating, Trading, Making, and Breaking Videogames. Cambrigde: MIT Press, 2017.

DAMO, A. S. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

GASTALDO, E; HELAL, R. Homo Ludens e o futebol-espetáculo. Revista Colombiana de Sociologia, v.36, n.1, 2013.

GUTTMANN, A. From Ritual to Record: The Nature of Modern Sports. New York: Columbia University Press, 1978. (Ebook) E-ISBN 978-0-231-51707-2.

JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução Susana L. de Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

JENSEN, L. E-sports: profissionalização e espetacularização em competições eletrônicas. Curitiba, 2017.

VAN DIJICK, J. La cultura de la conectividad: Una historia crítica de las redes sociales. Buenos Aires: Siglo Veintiuno. Editores, 2016.


Sobre o LELuS

Aqui é o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade. Mas pode nos chamar só de LELuS mesmo. Neste espaço, vamos refletir sobre torcidas, corporalidades, danças, performances, esportes. Sobre múltiplas formas de se torSER, porque olhar é também jogar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Clayton Alino-Silva

Fanático por jogos e esportes, tradicionais e eletrônicos - Pesquisa performances e rituais em atividades lúdicas como brincadeiras, jogos e torcer. Bacharel e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e especialista em Antropologia Política pela FLACSO-Argentina. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidades (LELuS/UFSCar) desde 2020.

Como citar

SILVA, Clayton Denis Alino da. Clica! Apontamentos sobre a assistência de jogos eletrônicos. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 39, 2021.
Leia também:
  • 165.10

    A mitificação de Pelé

    Clayton Denis Alino da Silva
  • 159.25

    O discurso como campo de disputa política em dia de jogo do Londrina

    Clayton Denis Alino da Silva
  • 156.3

    Sepak Takraw: quando a arte marcial encontra uma bola

    Clayton Denis Alino da Silva