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Coligay: a primeira e única torcida gay do Brasil?

A Coligay está na história. Animada, fiel, pé-quente, original e subversiva. Características atribuídas ao grupo que têm pouco ou nenhum questionamento. Mas seria a pioneira, aquela a justificar o status de “primeira torcida gay do Brasil”? E, além disso, teria sido a única a alcançar sucesso em sua empreitada de encarar o machismo e homofobia dos estádios de futebol?

A resposta às duas perguntas parece ser “não”. O que em nada diminui sua importância, é claro. Neste segundo texto da série sobre o agrupamento gremista, peço licença para falar de seus congêneres.

Como descrevi na coluna anterior, a Coligay surge em 1977 chamando bastante atenção. O estardalhaço levou jornalistas a interrogarem os protagonistas do jogo sobre o que achavam daquele inusitado coletivo. Telê Santana, então treinador do Grêmio, assim respondeu: “Eles incentivam bastante, por isto achei válida a iniciativa deles. Mas não é novidade: lá em Minas o Cruzeiro também tinha uma torcida parecida, como esta. Se eles querem ajudar, tenho certeza que serão bem aceitos”[1]. Está aí um indício de uma antecessora que tiraria o título de “primeira” da Coligay.

Comentário do treinador Telê Santana sobre a Coligay no jornal Zero Hora. Foto: Reprodução.

Pouco sei do agrupamento cruzeirense mencionado por Telê, mas não parece absurdo que, tal qual xs[2] tricolores gaúchos, outros gays, lésbicas ou travestis tivessem se reunido para torcer por suas equipes. E que algum desses tivesse feito isso antes.

Se sobre antecessoras da Coligay tenho escassas informações, sobre contemporâneas já há mais registros. Em pesquisas em diversos periódicos por ocasião da produção da minha Tese de Doutorado na UFRGS[3], que está prestes a virar livro pela Dolores Editora, me deparei com menções de 22 torcidas gays de 19 clubes diferentes. Há, contudo, que se fazer uma ressalva. A homossexualidade era tema recorrente de piadas publicadas nos periódicos. Em muitos textos que mencionavam torcidas gays, o evidente tom debochado deixa dúvidas se a piada era sobre um grupo existente ou se o próprio jornalista havia inventado uma torcida só para fazer sua chacota.

A impressão de uma proliferação de torcidas gays, todavia, existia. Cid Pinheiro Cabral, em uma coluna publicada em 1979 no jornal gaúcho Zero Hora, chegou a afirmar: “Em breve, creio, todos ou quase todos os grandes clubes a terão, embora a reação de Márcio Braga contra um grupo do gênero que quis se organizar no Flamengo. A verdade, porém, é que a coisa cresce…” [4].

A Fla-Gay, mencionada pelo colunista, é um caso de insucesso notório. Anunciou uma estreia que nunca pôde se concretizar diante de uma agressiva resistência de outras torcidas organizadas do clube, endossadas pelo também citado Márcio Braga, presidente do clube à época. Entre essa tentativa frustrada e referências pontuais de torcidas sobre as quais existe parca documentação, porém, é relevante dar conhecimento a outra exitosa torcida gay brasileira: a Maré Vermelha, do Internacional de Santa Maria (RS).

O comumente chamado Inter-SM é um clube pequeno. Talvez por isso mesmo após a rememoração da Coligay pouco se fale da também marcante Maré Vermelha. Fundado em 1928, o clube tem tradição no Rio Grande do Sul, só que poucas conquistas. Transita entre a primeira e segunda divisões estaduais, o que quase nada contribui para uma fama nacional, conhecido, portanto, muito mais entre xs gaúchos.

A Maré Vermelha, ou simplesmente Maré, como é carinhosamente chamada por seus/suas adeptxs e quem a conhece, foi criada em 1979[5]. O nome tem a ver com o fenômeno ocorrido no ano anterior à sua fundação, quando animais mortos vinham aparecendo na praia do Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar (RS). Um acidente ecológico associado ao fenômeno da maré vermelha[6]. Diante do impacto e das dúvidas acerca da veracidade do diagnóstico[7], o termo ocupava os noticiários de todo o estado e pareceu uma boa escolha aos/às torcedorxs.

Na época, a cidade de Santa Maria tinha poucas atividades de lazer que atraíam a comunidade LGBT+[8], que naquele tempo precisava divertir-se às escondidas, em guetos próprios. Um dos espaços possíveis era a ala gay da Escola de Samba Vila Brasil. Um grupo que já frequentava esse espaço resolveu, então, criar uma torcida. Movimento similar tentou ser desenvolvido também no Riograndense, rival municipal do Inter, mas a rejeição desse clube impossibilitou sua viabilidade. A Maré Vermelha acabou sendo a única torcida gay da cidade, portanto. A proximidade entre os pertencentes à comunidade LGBT+ de Santa Maria fez, então, com que a torcida ganhasse cada vez mais interessadxs em partilhar daquele tempo e espaço de diversão – escasso na região, vale frisar novamente.

Esses integrantes variaram ao longo dos mais de 15 anos em que a torcida esteve em atividade. Alguns/mas componentes acabavam abandonando o grupo, mas outrxs tantos entravam, garantindo a longevidade e perenidade das atividades da torcida.

A torcida chamava a atenção no ambiente heteronormativo dos estádios. Não havia tentativa de se camuflar entre os “machos alfa”. Trejeitos e afetações eram liberados e as travestis não abriam mão de sua identidade. Além disso, eventualmente a torcida organizava jogos temáticos, em que datas comemorativas eram temas para fantasias. No dia 20 de setembro, data de comemoração da Revolução Farroupilha, os/as torcedores/as fantasiavam-se de prendas. Na Páscoa, de coelhinhas. Suas manifestações também envolviam elementos “menos controversos”, como coreografias e cânticos, acompanhados da charanga da Vila Brasil.

Pedágios e jantares eram organizados para arrecadar dinheiro para viagens acompanhando o time pelo Rio Grande do Sul. E como boa torcida fiel e dedicada ao clube, também buscavam ajudá-lo com ações e festas para angariar verba para eventuais demandas da instituição, como a construção do ginásio do clube, por exemplo.

Marcou presença também em eventos oficiais do clube, mostrando uma boa relação tanto com sua direção, quanto com xs demais torcedorxs e organizadas. Exemplo disso é sua participação em jogos preliminares contra equipes de outros agrupamentos.

Claro, nem tudo eram flores. Nos encontros com torcedorxs adversários, dentro e fora de Santa Maria, a torcida era acolhida e, ao mesmo tempo, recebia saraivadas de laranjas, pedras e copos de urina – algo também corriqueiro entre torcidas “não-gays”. A impressão dxs integrantes, contudo, era de que o preconceito acentuava essas manifestações de rivalidade. Em um vídeo (ver abaixo)[9] de cerca de dois minutos publicado em reportagem do portal Desacato sobre a Maré Vermelha[10], antigos membros relatam parte de suas vivências. Uma delas, ao recordar a revolta de uma torcida local que perdera para o Inter-SM, resignada, lamenta a corda “rebentar sempre do lado mais fraco”. E, finaliza, concluindo que “juntou o ódio da perda com o preconceito com os gays, né.”

As atividades da torcida foram interrompidas quando uma discussão entre o líder da torcida Marcelino e um dirigente do Inter-SM acabou em uma agressão ao torcedor. Marcelino esteve à frente da mobilização da Maré Vermelha ao longo de toda sua trajetória, algo que agrava o significado da atitude. Ainda que muitos dxs antigxs integrantes tenham continuado a frequentar as arquibancadas da Baixada Melancólica – estádio do Inter-SM –, aquele ato de violência acabou dando fim à torcida.

Se esse foi o estopim para a desarticulação do coletivo, o surgimento da epidemia da AIDS no Brasil em meados da década de 1980 também vinha contribuindo para tal processo. Matias, um ex-integrante do grupo conta que “Alguns torcedores da Maré saíram porque tinham medo de sofrer agressões por conta do que alguns chamavam de ‘câncer gay’. Começou ali a ruptura do nó na relação até o dia em que a Maré Vermelha deixou de fazer parte do Esporte Clube Internacional”[11].

Pude saber mais sobre a torcida a partir de uma entrevista com Marquita Quevedo, antiga integrante da Maré Vermelha. Ela entrou em meados da década de 1980, no que considera a última geração do grupo, quando contavam-se aproximadamente 80 membros. Entre eles, inclusive o roupeiro do clube, Manovan Pereira Gomes, o Mano. Ele tinha participação bastante efetiva. Muitas das reuniões aconteciam na casa de sua mãe.

Como travesti, Marquita encontrou na Maré um espaço de lazer, sociabilidade e empoderamento:

O que me guarda, essa memória que me traz, é o que ela me encorajou a ser o que eu sou hoje. Eu acho que se eu não tivesse participado daquela torcida, eu não seria Marquita, hoje. Que as pessoas respeitam, que eu fui militar em busca de um direito, de uma causa. Construí essa pessoa que eu sou através da Maré Vermelha, porque a gente passava por vários processos, era a questão do preconceito, e a gente rompeu com essa barreira dentro de um estádio que era de futebol, que era só homem, que era só isso. E nós tínhamos essa coragem. Eu acho que isso me fortaleceu, me ajudou muito para eu ser a Marquita hoje. […] Se eu não tivesse participado da Maré naquele processo, eu acho que eu não sei se eu seria Marquita, militante, do contato, construindo para os outros também[12].

Hoje, dia 17 de maio, é o Dia Internacional contra a Homofobia. Parece, assim, uma data pertinente para lembrar de torcidas como a Maré Vermelha, a Coligay e outras menos conhecidas, que encararam a homofobia tão presente no universo do futebol. E que assim permitiram que tantxs torcedorxs geralmente excluídos desse esporte vivenciassem o que ele tem de melhor: a vivência da arquibancada. Mais do que no pioneirismo, ineditismo ou exclusividade, esta aí a grandeza dessas torcidas gays.


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[1] Jornal Zero Hora, 16 de maio de 1977, p.43.

[2] Ao longo deste texto, utilizo o “x” com o intuito de adotar uma linguagem não binária. A escolha visa descaracterizar a ideia de que as palavras são masculinas ou femininas, assim como a utilização do masculino como referência. Ao usar o “x” busco contemplar igualmente homens, mulheres e aqueles e aquelas que fogem da norma binária. Essa opção acaba comprometendo a escuta do texto por pessoas com deficiência visual (possibilitada por aplicativos específicos). Peço, assim, desculpas a essas pessoas por tal prejuízo, o qual, acredito, não irá impedir a compreensão do conteúdo da coluna.

[3] ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. 2018. 388f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

[4] Jornal Zero Hora, 21 de outubro de 1979, p.45.

[5] Sigo aqui informação do jornal Zero Hora, que anuncia o surgimento da torcida em notícia de 6 de abril de 1979. Mas segundo a integrante da Maré Marquita Quevedo, há uma disputa pelo pioneirismo, o que sugeriria que a torcida do Inter-SM teria surgido alguns anos antes.

[6] A maré vermelha se refere a uma aglomeração de micro-planctons dinoflagelados que em alta quantidade produzem mudança na coloração das águas, podendo torná-las amarela, alaranjada, vermelha ou marrom.

[7] Sobre isso, ver: Lembrando Hermenegildo. Acesso em 25 de outubro de 2017.

[8] No período em que a torcida foi criada, a nomeação LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trangêneros) ainda não era utilizada, sendo comum se referir como “homossexual” (ou outras alcunhas pejorativas) toda identidade não heteronormativa. Faço uso da sigla no sentido de dar visibilidade à pluralidade de identidades que, de fato, se faziam presentes no contexto da Maré Vermelha e, mais amplamente, na cidade de Santa Maria.

[9] O vídeo tem o título “Violência: Maré vermelha nos estádios”, e foi produzido pelo Boca Jornalismo.

[10] Maré Vermelha: uma parte (esquecida) da história do Inter-SM

[11] Citação extraída da matéria disponibilizada na nota anterior.

[12] Hoje, Marquita é servidora pública do município de Santa Maria, integra o coletivo Igualdade, coordena o grupo que promove a “Parada Livre” do município e é figura amplamente conhecida na região por suas atividades de militância LGBT+.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiza Aguiar dos Anjos

Atleticana, boleira, professora e pesquisadora. Interessada principalmente nas existências invisibilizadas nas arquibancadas e campos.

Como citar

ANJOS, Luiza Aguiar dos. Coligay: a primeira e única torcida gay do Brasil?. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 39, 2020.
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