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Colonialismo, Lusotropicalismo e futebol

Nos anos 1960, Portugal era “um país relativamente atrasado e pobre. O mais pobre do Ocidente europeu” (PINTO, 2001, p.47). No seu conjunto este foi um período muito difícil para o Estado Novo, pois fora marcado por uma série de acontecimentos que abalaram profundamente o regime salazarista.

A mais longa ditadura da Europa do século XX já iniciava o decénio sob o contexto de pressão da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo fim do Império colonial português.

Relativamente ao ano de 1961, dentre as “cisões internas”, logo no primeiro mês aconteceu o Assalto ao Santa Maria, quando um grupo armado de portugueses e espanhóis sequestraram um navio pertencente a marinha mercante portuguesa.

Já no mês de abril, ocorreu uma tentativa de golpe militar, que pretendia derrubar o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar e o Presidente da República, Américo Tomás.

Início da Guerra Colonial

Com o surgimento de novas nações africanas, algumas delas fazendo fronteira com as «províncias ultramarinas» portuguesas[1], a onda de anticolonialismo multiplicou-se, fazendo eclodir movimentos de libertação em toda a África.

Assim, os “ventos das mudanças” no sentido da autodeterminação e da independência das colônias atingiram a política ultramarina portuguesa. O início da luta armada deu-se no Norte de Angola, com o ataque à cadeia de Luanda a 4 de fevereiro de 1961.

Com grande repercussão internacional, a rebelião daquela população fazia parte de uma conjuntura crítica que colocava em causa a continuidade do «Império Português».

A resistência do Estado Novo português pela manutenção do seu império colonial contou com a deslocação em larga escala de forças militares portuguesas. “Para Angola rapidamente e em força” disse Salazar através de pronunciamento em rádio e televisão.

Numa época em que a televisão estava a dar os primeiros passos em Portugal, era principalmente através do rádio e dos jornais que as notícias eram transmitidas à sua população. E uma vez sob censura, as reportagens reduziam os nacionalistas angolanos a terroristas que estavam corrompidos pelo comunismo. Com uma insistência quase que diária, os jornais advogavam que Portugal defendia “os princípios do Ocidente em Angola” contra a ação de “criminosos financiados por agentes estrangeiros[2]. Assim, adaptando-se ao contexto da Guerra Fria, a presença portuguesa em África era protagonista da nova cruzada do ocidente cristão contra o infiel comunismo.

Além dessa clara preocupação de não associar os ataques exclusivamente aos angolanos, a defesa da manutenção da presença portuguesa em África passava também por outra estratégia: noticiar o apoio das populações associando a temas como a ausência de discriminação racial.

É uma imagem de todos os dias, em Luanda. Sem a menor discriminação de raças, todos os habitantes da cidade utilizam os mesmos transportes, não obedecendo a qualquer precedência a entrada nos autocarros[3]. (Diário de Lisboa, 21 fev 1961, capa)

Diante de uma presumida singularidade da obra colonial portuguesa, supostamente despojada de qualquer segregação, era preciso mostrar ao mundo que em Angola exis­tia progresso e harmonia racial.

Na defesa da integridade territorial da província de Angola e da sua população europeia, mestiça e negra, como no fomento da sua prosperidade económica e social, temos de mobilizar todos os recursos, espirituais, morais e matérias, porque a defesa de Angola é a defesa da própria Nação, em todos os continentes, como terra independente e livre, que em todos o tempos soube cumprir a sua missão em favor da Humanidade e do seu progresso. (O Século, 27 mai 1961, p. 18)

A nação portuguesa, «una e indivisível», estava imbuída das ideias de multirracialidade e pluricontinentalidade do recentemente adaptado Lusotropicalismo.

O Lusotropicalismo

As bases do Lusotropicalismo foram lançadas em Casa-grande & Senzala (1933). Já nas primeiras páginas, ao descrever as “características gerais da colonização portuguesa do Brasil”, Freyre defende a aptidão portuguesa para a vida tropical que advém da plasticidade de uma indefinida bicontinentalidade.

Em O mundo que o português criou (1940), Freyre consolidou sua visão da superioridade da colonização portuguesa frente a outros colonizadores. Mas foi em 1951, durante uma conferência intitulada de “Uma cultura moderna: a luso-tropical”, que Gilberto Freyre, em Goa, esboçou as primeiras sugestões em torno de alguns aspectos da “civilização luso-tropical[4].

Foi no entanto, numa outra conferência, desta vez na Universidade de Coimbra, que Freyre procurou “esboçar algumas sugestões em torno de um conceito novo de tropicalismo” (FREYRE, 1953, p. 175).

Lida em janeiro de 1952 na Sala dos Capelos, Freyre menciona que foi durante a recente viagem que fez a alguns territórios do Ultramar Português, que em contato com essas áreas tropicais, “irmãs do Brasil”, encontrou a expressão que lhe faltava para caracterizar a “civilização lusitana, vitoriosa nos trópicos”. (FREYRE, 1953, p.176)

O novo conceito de tropicalismo, resposta ao uso pejorativo recorrente na Europa principalmente na segunda metade do século XIX, buscava reconhecer “valores dos trópicos” (FREYRE, 1953). Desta forma, Gilberto Freyre tinha a proposição de analisar a diversidade e a complexidade das culturas humanas insistindo na singularidade de cada uma em oposição a hierarquia das “raças” defendida por evolucionistas, que sustentavam ser a cultura europeia superior.

Pois do português pode-se com exatidão dizer que cedo deixou de ser na cultura um povo exclusivamente europeu para tornar-se a gente luso-tropical que continua a ser e que encontrou nos trópicos zonas naturais e congeniais de expansão, ao motivo económico e ao motivo religioso e político de expansão tendo-se juntado sempre o gosto, ausente noutro europeus expansionistas, de viver, amar, procriar e criar filhos nos trópicos, confraternizando com mulheres, homens e valores tropicais e não apenas explorando os homens, devastando os valores, violando as mulheres das terras conquistadas. (FREYRE, 1953, p.180)

Ao referenciar a expressão «luso-tropical», Freyre procurava adjetivar sociologicamente “o complexo de cultura marcado pela presença em terras quentes, menos do homem com valor étnico que da cultura de origem principalmente portuguesa” (FREYRE, 1961, p. 51).

Como vimos, em linhas gerais, um tema amplamente abordado nas obras de Gilberto Freyre nas décadas de 1950 e 1960 é o da fraternidade racial. Para Freyre, a capacidade de portugueses se unir com os trópicos deve-se muito ao fato de não lhes ter faltado amor. Essa aptidão, deve-se muito ao contato da “gente lusitana, ainda na Europa, com moura” (p.50).

Não tem deixado de haver drama, conflito, dor, angústia, sofrimento em tais encontros. Mas raramente lhes tem faltado: amor de homem a mulher de cor e amor de homem a terra quente, para amortecer, dulcificar as asperezas, em choques de interesses que a pura conveniência, mesmo quando mútua, dificilmente evita ou sequer amacia, nas relações entre grupos humanos, nisto parecidas com relações entre indivíduos. (FREYRE, 1961, p.50).

Seja como for, é indubitável dizer que ao valorizar os efeitos históricos do colonialismo português, as ideias de Gilberto Freyre também ajudavam a legitimar o Estado Novo português, pois este tentava passar a imagem de que seu colonialismo promovera uma integração harmoniosa.

Em concomitância com o regime, o lusotropicalismo do sociólogo recifense serviu também para a defesa do projeto colonial do governo de Salazar nos meios acadêmicos e científicos internacionais. Assim, a defesa da tese do colonialismo como função civilizadora e cristianizadora ganhava uma “defesa científica”.

Aproveitando-se da doutrina luso-tropicalista, o regime salazarista tentava demonstrar e promover a ideia de que nas “colônias ultramarinas” não havia segregação racial, sustentando, com este argumento, a defesa da manutenção do domínio português nos territórios africanos.

Essa tática de negar a existência do racismo foi abundantemente explorada pelo Estado Novo. Tendo em vista inclusive a sedimentação da unidade imperial, a mobilização do desporto foi um expediente utilizado.

Jogos Desportivos do Mundo Português
Os Jogos Desportivos do Mundo Português era um exemplo da “integração luso-tropical”. (Primeiro de Jan 20 mai 1961 p.06)

 

Os campos de desporto constituem um dos sectores em que com mais evidência se nota a total ausência de discriminação racial entre os povos das diferentes comunidades que vivem em território português. E são até uma eloquente demonstração de que em Portugal se verifica um verdadeiro intercâmbio de valores entre as diversas províncias espalhadas pelo globo. (Moçambique: Documentário trimestral, nº 105, jan-jul 1961. p.64)

Apresentando o desporto com um exemplo de integração social, a narrativa imperial propagandística usada nesta publicação periódica de responsabilidade do Governo Geral de Moçambique celebra formalmente um preceito da especificidade portuguesa: a sociedade multirracial.

Usando da retórica luso-tropical na tentativa de apontar a total ausência de racismo, o texto termina por descrever a segregação espacial entre Metrópole e as suas Colônias.

No sector futebolístico, a Metrópole constitui o «Eldorado» nacional. Todos os futebolistas portugueses, qualquer que seja a sua terra de origem, tem como sonho o seu ingresso num clube metropolitano, de preferência um dos «grandes», isto é, um daqueles que constituem a «elite» do desporto nacional. (Moçambique: Documentário trimestral, nº 105, jan-jul 1961. p.65)

Ao mesmo tempo que apresentava o mérito como um símbolo do futebol, o excerto mostra que a necessidade económica “impelia” o jogador ultramarino em direção à Metrópole. Neste mercado de “pés-de-obra”, ao explorar o êxito de alguns atletas ultramarinos na metrópole para afirmar a possibilidade de mobilidade social, o texto expõe a existência das estruturas de classe e a estratificação que caracterizavam o colonialismo português. Apesar do escasso número de beneficiados, apresentava-se o futebol como o aniquilador de barreiras raciais.

No caso de Moçambique, há muitos naturais que passaram de uma posição modesta para «milionários», pouco tempo após terem ido da Província para a Metrópole. Esses africanos vivem nos mesmos lares, hospedam-se nos mesmos hotéis de luxo, viajam nas mesmas classes de comboio, de barco ou de avião. São aquilo a que se convencionou chamar pessoas importantes. (Moçambique: Documentário trimestral, nº 105, jan-jul 1961. p.66)

Omitindo a estrutura de poder colonial e a estratificação social que se definia racialmente, disseminava-se a noção de pátria “euroafricana” forjada na ideia de mobilidade social e de valorização dos jogadores ultramarinos.

Sempre que surjam condições e casos para que os africanos se revelem noutros sectores de actividade, o que acontece no futebol acontece nos outros sectores. Verifica-se assim um verdadeiro intercâmbio de valores, fornecendo cada uma das províncias portuguesas aqueles de que dispõe àqueles que deles necessitam, numa verdadeira demonstração da indestrutível unidade nacional. (Moçambique: Documentário trimestral, nº 105, jan-jul 1961. p.66)

Com o suor dos “ultramarinos”, Portugal chegou ao terceiro lugar da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. (Revista Flama, 08/7/1966,capa)

Referências Bibliográficas

COELHO, J. N.; PINHEIRO, F. A paixão do povo: história do futebol em Portugal. Porto: Afrontamento, 2002.

DOMINGOS, N. Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique. 1a. edição ed. Lisboa: Instituto Ciências Sociais, 2012.

FREYRE, G. Um brasileiro em Terras Portuguesas. Introdução a uma possível luso-tropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1953.

FREYRE, G. Luso e o Trópico: sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização: o luso-tropical. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961.

FREYRE, G. et al. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51a edição, 10a reimpressão ed. São Paulo: Global Editora, 2006.

GARCIA, J. L.; UNIVERSIDADE DE LISBOA (EDS.). Salazar, o Estado Novo e os media. Lisboa: 70, 2017.

PINTO, A. C. O fim do império português: a cena internacional, a guerra colonial, e a descolonização, 1961-1975. Lisboa: Livros Horizonte, 2001.

PORTUGAL. Colónia de Moçambique: Documentário trimestral, nº 105, jan-jul 1961, n.105, 1961.


[1] A exemplo do Congo, que se tornou independente em 1960.

[2] Sabe-se que a comunicação social é um importante agente no empreendimento de convencimento da opinião pública, especialmente dentro da lógica ditatorial. Sob censura, a imprensa constitui um veículo privilegiado para uma ação propagandística que tem um impacto muito significativo. Por essa razão a informação veiculada por esta, de algum modo, corresponde à forma como o Estado Novo desejava que a guerra em marcha fosse noticiada.

[3] (1961), “Diário de Lisboa”, nº 13718, Ano 40, Terça, 21 de Fevereiro de 1961, Fundação Mário Soares / DRR – Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_16565 (2021-5-21)

[4] Gilberto Freyre, naquele momento, encontrava-se em viagem pelo Ultramar Português a convite do ministro Sarmento Rodrigues.

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Rodrigo Carrapatoso de Lima

Possui graduação em História (2008), especialização em História do Século XX (2010) e mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). Atualmente é doutorando na Universidade de Coimbra (UC) e Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme) e Pesquisador das temáticas ligadas a ditadura e futebol.

Como citar

LIMA, Rodrigo Carrapatoso de. Colonialismo, Lusotropicalismo e futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 47, 2021.
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