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Com 108 anos, “ponha a mão na conciença” Coelhão!

30 de abril – Há exatos 108 anos da aristocracia mineira fundavam o América Futebol Clube na então novíssima capital de Minas.

1º de maio – Há aproximadamente 130 anos, operários estadunidenses saíam às ruas para reivindicar melhores condições de trabalho e vida.

Duas efemérides tão próximas na folhinha e tão distintas do ponto de vista simbólico. O aniversário do clube que ainda hoje se vangloria de ser para poucos e o dia internacional da consciência e da luta de classes. Impossível reuni-las em um mesmo texto? Talvez não. Em um momento de tantas incertezas e inseguranças, especialmente para a classe trabalhadora, recuperamos aqui o caso de Badú, um polivalente, cobiçado e hostilizado player negro dos anos 1920, que teve uma rápida mas significativa passagem pelo América de Belo Horizonte.

Já há algum tempo ninguém mais se espanta em razão das incessantes circulações de futebolistas profissionais pelos clubes. Aliás, fazendo votos pela convalescença do lendário Jair Bala, relembramos recentemente em nossas redes sociais uma máxima cunhada por esse que é um dos maiores ídolos do América que, questionado de seus voos incertos, teria dito: “casamento é lorota, o que vale é la nota”. Ainda assim, volta e meia torcidas elegem algum figurão como o “traidor”, o “vira-folha”, por ter trocado de camisa como quem troca de roupa.

Fonte: Minas Sport, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, 11 out. 1925, p. 2.

Difícil convencer os mais apaixonados que jogador de futebol também é trabalhador e tem os mesmos direitos que qualquer outro cidadão. Ou talvez um ranço racista, um preconceito de classe, em não aceitar a liberdade daqueles que, em sua maioria, vieram dos campos improvisados espalhados pelas periferias do nosso país. E se apupos como este ainda são comuns de serem ouvidos nos dias de hoje, o que poderíamos dizer de Badú que, vivendo em pleno amadorismo, teve seu nome de atleta inscrito em cerca de dez clubes do sudeste brasileiro?

Possivelmente, nosso biografado foi revelado para o mundo do futebol por volta de 1916, 1917 e 1918 como “medio aza direito” do Guarani de Campinas. Mas, já no início dos anos 1920, seu nome apareceria nas páginas da imprensa esportiva da Califórnia Brasileira como “back” do tradicional Comercial de Ribeirão Preto, chegando, inclusive, a ter sua convocação para a Seleção Brasileira requisitada por um torcedor paulista correspondente d’A Gazeta. Dali, Badú seguiu para o Triângulo Mineiro, onde defendeu o Uberaba Sport Club durante um período em que a capital mundial do zebu vivenciou grandes investimentos no futebol. Vestindo o uniforme alvirrubro uberabense, Badú atuou na inauguração da dispendiosa, moderna e grandiosa praça de esportes da cidade, tendo enfrentado, naquela ocasião, o temível Clube Atlético Paulistano de Friedenreich. Depois de uma rápida passagem pela capital paulista, onde jogou pelo Syrio Paulistano e pelo “Veteranos Ford”, neste último ao lado do próprio “El Tigre”, o nosso já afamado futebolista regressou ao Uberaba para mais algumas gloriosas jornadas. Dentre elas a acachapante goleada de 4 a 0 aplicada sobre o América, então octacampeão mineiro, no dia 30 de março de 1924.

Fonte: Acervo da Família Machado Borges.

Talvez por impressionar os excursionistas, Badú e outros responsáveis por aquela goleada seriam inscritos pelo América ainda no final daquele ano. Como se não bastasse, durante os anos de 1925 e 1926 dirigentes do clube belo-horizontino, do Sport Club e do Mello Vianna, os dois últimos de Juiz de Fora, brigaram publicamente por ele na imprensa mineira. Apesar disso, seria mesmo nos gramados do noroeste paulista e do Triângulo Mineiro que Badú viveria seus melhores momentos. Embora ainda atuasse pelo América e pela Seleção Mineira no ano de 1928, o Comercial de Ribeirão Preto e, sobretudo, o Uberaba SC, do qual se tornou treinador em 1935, seriam suas paragens finais no mundo da bola.

Toda essa trajetória de Badú é reveladora do quanto o amadorismo vinha apresentando suas fissuras no país durante aqueles anos de 1920. E também do quanto a narrativa oficial de que o América protestou contra o profissionalismo durante os anos 1930 e 1940, por acreditar que o futebol devia ser um lazer e um passatempo elitista, deve ser lida como uma tradição inventada, legitimadora da identidade aristocrática do clube belo-horizontino.

Em 1924, por exemplo, um cronista do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, afirmaria, por ocasião de uma excursão do selecionado da então capital da República ao longínquo interior de Minas, que “[n]ão ha[via] quem desconhe[cesse] naquella cidade mineira, a vida dos profissionaes do Uberaba Sport Club”. Dentre os quais o próprio Badú, descrito pelo correspondente carioca, pasmem, como “[u]m negrão boçal, narinas super dilatadas, voz cavernosa”, “homem useiro e veseiro na pratica de todas as ind[i]sciplinas”, “cuja profissão ninguem conhece outra, além de jogador do Uberaba Sport Club”. Fazendo troça de sua maneira de expressar, supostamente um indício de seu baixo capital cultural, o cronista ainda apelidaria Badú de “o tal da ‘mão na conciença’”, já que, segundo ele, “em face de um goal legitimamente conquistado” pelos visitantes e “ractificado” pelo árbitro, o indigno atleta da casa teria protestado, “numa atitude francamente ameaçadora”, da seguinte maneira: “– O que isso ‘sô’ juiz? Ponha a mão na ‘conciença’ moço. Foi ‘fisaide’ – Foi ‘fisaide’. […] Oia moço, vancê não serve não. Vá pra fora do campo.”

Não seria uma coincidência, portanto, que em novembro de 1931 Badú fosse confundido pelas páginas policiais da imprensa brasileira como foragido de uma “violenta scena de sangue” provocada por um confronto armado na cidade de Uberaba. Por via das dúvidas, a culpa recaía, mais uma vez, sobre o “negrão boçal, narinas super dilatadas, voz cavernosa”, “homem useiro e veseiro na pratica de todas as ind[i]sciplinas”.

E se até a imprensa da época procurou reparar o mal-entendido, faça-nos o favor América: da altura dos seus 108 anos “ponha a mão na ‘conciença’” e reconheça seu papel na popularização do futebol belo-horizontino!


Fontes

A linha media do Syrio, de S. Paulo. O Paiz, Sports… Foot-Ball, Rowing, Turf e Outros, Foot-ball, Notas officiaes, Rio de Janeiro, 13 mar. 1923, p. 11.

America Foot-Ball Club vs. Uberaba Sport Club. Lavoura e Commercio, Columna sportiva, Foot-ball, Uberaba, 3 abr. 1924, p. 5.

As aventuras de uma excursão. Correio da Manhã, Football, Rio de Janeiro, 19 dez. 1922, p. 5.

As aventuras de uma excursão. Correio da Manhã, Correio Sportivo, Football, Rio de Janeiro, 20 dez. 1922, p. 16.

Badú, Amilcar e Abbate. A Gazeta, Todos os Esportes, Futebol, Opiniões… O selecionado e os leitores, São Paulo, 26 jul. 1924, p. 3.

Écos. A Gazeta, A Gazeta Esportiva, Futebol, São Paulo, 3 mar. 1923, p. 2.

Jogos intermunicipaes. A Gazeta, A Gazeta Esportiva, Futebol, São Paulo, 27 mar. 1923. [nº da p. não legível].

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcus Lage

Bacharel, Licenciado e Doutor em História. Mestre em Ciências Sociais. Pós Doutor em Estudos Literários. Professor do Instituto de Educação Continuada da Puc Minas. Torcedor-militante do América! Se aventurando pelo mundo da crônica!

Letícia Marcolan

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas. Participa do FULIA/UFMG e do Memória FC.

Mariana Brescia

Atleticana, graduada em História pela PUC Minas, pesquisadora do projeto Saberes da Terra (UFMG) e participante do Grupo de Estudos e Pesquisa Memória FC.

Como citar

LAGE, Marcus Vinícius Costa; MARCOLAN, Letícia; BRESCIA, Mariana. Com 108 anos, “ponha a mão na conciença” Coelhão!. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 45, 2020.
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