102.7

O comandante negro

José Paulo Florenzano 7 de dezembro de 2017

No início dos anos sessenta o Botafogo possuía na figura de Antônio Julião o grande ídolo da equipe de Ribeirão Preto. Revelado em Piracicaba, desprezado pelo Corinthians, o zagueiro central tinha sido contratado em 1957 a título de reforço quando a agremiação da assim chamada Terra do Café ascendera à Divisão Especial do Campeonato Paulista. Desde então, mercê do comportamento irreprochável como atleta profissional, angariara admiração e se firmara como exemplo, dentro e fora de campo, exibindo aos 31 anos de idade tanto um condicionamento físico impecável, que lhe permitia disputar as jogadas com a mesma “fibra” do início de carreira, quanto um preparo intelectual invejável, que o situava na condição de líder do time tricolor, conforme salientava A Gazeta Esportiva Ilustrada:

Antônio Julião é o homem que “canta” a maneira de jogar para os seus companheiros, que dele fazem uma “estação emissora” de todas as ordens dentro das quatro linhas do campo.[1]

Mais ainda: de acordo com a reportagem do semanário esportivo, sempre que se fazia necessário ele assumia e desempenhava o papel de “técnico de emergência”, sendo solicitado, ademais, pelos próprios “coachs” para “orientar a preparação física” do elenco. Não por acaso, o zagueiro negro que há quatro anos defendia as cores do Botafogo recebera na cidade a alcunha de “Gerente”, deixando entrever o caminho que se lhe descortinava a partir do momento em que pendurasse as chuteiras. De fato, uma vez encerrada a carreira de atleta, Antônio Julião dera início a de treinador ali mesmo em Ribeirão Preto. A oportunidade surgiu quando Zezé Procópio abandonou o cargo. Vários nomes foram então aventados pelo Departamento de Futebol, mas as opiniões pouco a pouco convergiram para o do antigo defensor do clube, o qual obteve “aprovação geral”. A Gazeta Esportiva Ilustrada aplaudia a escolha de quem se convertera em verdadeira “legenda” da agremiação, homem “familiarizado com o meio”, cuja longa vivência no futebol lhe servira de “escola” e o habilitava agora a ensinar e orientar os jogadores. Após os elogios, no entanto, o periódico considerava-se no dever de fornecer a Antonio Julião alguns conselhos, alertá-lo para o fato de que ao técnico não cabe “inventar”, pois “sua tarefa se resume” a manter o grupo “na linha de uma família que se bate por um objetivo, sem complicações, sem casos, sem problemas”. A reportagem advertia-o ainda para não se exceder no uso da autoridade que tal posição lhe conferia:

Antonio Julião entende que a melhor fórmula para um rendimento aceitável é agir com simplicidade, sem gritos, sem prepotência, sem pose, enfim, um conselheiro mais velho e mais experimentado a guiar os passos dos mais jovens.[2]

Ou seja, não lhe convinha vestir o figurino do assim chamado técnico comandante, cujo autoritarismo, no entanto, afigurava-se um dado natural na paisagem do futebol, constituindo-se em um traço de comportamento visto como intrínseco ao exercício da função. Feitas as recomendações, o texto concluía com votos de boa sorte, expressando a crença de que, sob a “batuta” de Antonio Julião, o Botafogo se sairia bem no certame oficial de 1963.[3] Ao menos era esta a convicção unânime quando ele assumiu em fevereiro o posto de treinador. Nove meses depois, contudo, o seminário informava aos leitores que o “Gerente” havia deixado a agremiação de Ribeirão Preto. O time tinha começado de maneira promissora dentro do Campeonato Paulista da Divisão Especial, mas já no final do primeiro turno o conjunto apresentou “queda de produção”, dando ensejo as primeiras “interrogações” acerca do trabalho desenvolvido pelo antigo zagueiro -, questionamentos que se fizeram ainda mais fortes no returno, à medida que se acentuava o mau desempenho da esquadra. Em meados de novembro, com efeito, ele solicitou demissão do cargo, rompendo o “contrato verbal” que possuía com a diretoria do clube. Atentemos para o motivo alegado para a decisão, segundo registrava A Gazeta Esportiva Ilustrada:

Antonio Julião desistira, por não mais estar sendo obedecido em suas determinações. Alguns craques não correspondiam às suas instruções de técnico, confundindo um dever com a camaradagem advinda de um prolongado convívio.[4]

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Antonio Julião ainda como jogador em 1955. Foto: Mundo Esportivo (reprodução).

Ao invés do uso excessivo do poder, como chegara a temer a revista esportiva, a queda do técnico negro se consumava em decorrência do problema inverso, isto é, da falta de autoridade considerada necessária para se desincumbir da função. Os atletas ignoravam as suas orientações táticas, não lhe obedeciam em nada, agiam por conta própria. Não obstante, enquanto estivera ao lado deles, como companheiro de profissão, o ex-zagueiro exercera pleno “controle do time dentro do campo”. Mais ainda, quando por alguma razão esteve fora de combate, o Botafogo se vira sem a sua “voz de comando”. Eis aí o cerne da questão: era como se a referida voz se tivesse tornado inaudível para os atletas, mero ruído que ninguém lograva decodificar, instaurando-se a suspeita generalizada sobre a autenticidade da fonte emissora. A Gazeta Esportiva Ilustrada, em todo caso, lamentava o desfecho da experiência e lhe desejava boa sorte noutro clube, no qual, acreditava a revista, “não falhará”. O caminho seguido por Antonio Julião, porém, parece ter sido semelhante ao da maioria dos antigos jogadores negros que foram se “meter a técnico”.[5] A expressão, aliás, merece reter a nossa atenção. A afirmação segundo a qual alguém foi se “meter” a fazer algo traduz reprovação velada pela ousadia do gesto, desvela espanto e perplexidade pelo atrevimento da decisão, comporta censura pela ambição desmedida de almejar uma posição julgada fora do alcance do pretendente. A crônica esportiva encontra-se repleta de exemplos. Vejamos a título de ilustração um episódio envolvendo uma personagem célebre do futebol brasileiro.[6]

No início da década de cinquenta Leônidas da Silva disputava as últimas partidas como atleta do São Paulo, principiando, no próprio clube, as primeiras experiências na função de treinador. De fato, no dia 4 de janeiro, no estádio do Pacaembu, os admiradores ainda podiam vê-lo em ação contra o Botafogo, jogo válido pelo recém-criado Torneio Rio-São Paulo. Apesar de alternar altos e baixos no decorrer do prélio, Leônidas da Silva figurava como “destaque” no ataque do então tricolor do Canindé. Sem chances na competição, mas almejando a conquista do tricampeonato estadual, cuja realização estava prevista para o segundo semestre, os dirigentes renovaram-lhe o contrato. Dois meses depois, porém, A Gazeta Esportiva antecipava em um furo de reportagem que o veterano atacante, sem prejuízo da condição de atleta, encarregar-se-ia das equipes amadoras e das categorias de base do clube.[7] Uma “notícia verdadeiramente alvissareira”, segundo o jornal, que parabenizava o tricolor pela iniciativa de entregar os “futuros valores” do clube “a alguém com conhecimento do futebol”.

Todavia, os acontecimentos começaram a se precipitar. Em março, Vicente Feola recebera o convite de Flávio Costa, treinador da Seleção Brasileira, para auxiliá-lo no período de preparação do elenco nacional para a Copa do Brasil. Ato contínuo, a direção do São Paulo designava Leônidas da Silva para assumir interinamente o posto deixado vago por Vicente, tendo como assessor direto o preparador físico Ariston de Oliveira, o qual havia adquirido recentemente “o diploma de técnico de futebol”.[8]

Desse modo, em março de 1950, quando todas as atenções estavam voltadas para o selecionado nacional que se preparava para a disputa da Copa do Mundo, desenrolava-se no então tricolor do Canindé o fato incomum de dois profissionais negros terem nas mãos o controle da direção técnica de uma grande esquadra, preenchendo as exigências do conhecimento empírico adquirido ao longo de uma carreira exitosa, no gramado de jogo, caso do primeiro, e do conhecimento teórico obtido no transcorrer do curso superior, na faculdade de Educação Física, caso do segundo.

A Gazeta Esportiva desejava a ambos “boa sorte”.[9] Infelizmente, porém, a experiência teria curta duração, abortada em agosto de 1951 devido aos resultados insatisfatórios colhidos em campo, bem como aos conflitos de Leônidas da Silva com o elenco tricolor, o qual, segundo a imprensa esportiva, relutava em lhe obedecer por causa do comportamento “extremamente rigoroso” e “disciplinador”.[10] A princípio, portanto, no insucesso do comandante negro temos somente razões de ordem esportiva, consubstanciadas nos resultados insatisfatórios da equipe, atribuídos à crise envolvendo o treinador e o elenco, fato corriqueiro e recorrente no universo do futebol. Todavia, o comentário recolhido à época por Roger Bastide dentro de um táxi na cidade de São Paulo permite-nos abordar o caso sob outro ângulo. Conforme argumentava o motorista do veículo, torcedor do tricolor paulista, que transportava o antropólogo francês, os percalços da equipe no campeonato em curso residiam na identidade racial do treinador:

O negro nada pode dar de bom. Não pode comandar, muito menos a brancos. Leônidas, como todos os negros, é desorganizado e insubordinado. Sobretudo considerando que o clube compreende brancos de boa família, até advogados. Como é possível que eles aceitem ordens de um negro?[11]

O comentário do taxista anônimo contém a chave-explicativa da indagação que o jornal O Estado de S. Paulo, anos mais tarde, endereçara sem rodeios ao célebre futebolista: “O grande Leônidas tinha tudo para vingar como técnico. Por que fracassou?” [12] A questão evocava o roteiro que parecia traçado especialmente para os grandes jogadores negros. Em linhas gerias, ele pode ser assim resumido: por causa do êxito demonstrado dentro de campo, os ídolos de Ébano se afiguravam à primeira vista dotados dos atributos necessários para o cargo de treinador e, com efeito, logo se lhes ofereciam algumas oportunidades. Não obstante, à medida que se projetavam na nova função, à beira do gramado, amiúde frustravam as expectativas, deixando o comando escapar-lhes das mãos, fosse por exercê-lo de forma considerada tirânica, como no episódio de Leônidas da Silva, fosse por manejá-lo de maneira julgada hesitante, como no exemplo de Antônio Julião, perdendo-se ora por excesso, ora por insuficiência de autoridade, verso e reverso da suposta incapacidade do treinador negro de encontrar a dosagem conveniente para o bom governo do time de futebol.

De fato, a trajetória do comandante negro não permite enxergar no insucesso que a acompanha somente coincidência, ou, quem sabe, a existência de algum desígnio divino pairando como uma maldição sobre toda uma categoria de treinadores. Descartada estas hipóteses, convém recolocar em novas bases a indagação acima enunciada pelo jornalista de O Estado de S. Paulo e aventar a existência de uma barreira de cor erguida para impedir-lhes a ascensão profissional aos postos de direção nas principais equipes do país. Por certo, à semelhança do que ocorria nas demais esferas da atividade social, também no futebol os afro-brasileiros se deparavam com os estereótipos forjados para desqualificá-los aos cargos de comando. Conforme salienta Florestan Fernandes a respeito dos referidos estereótipos, “diz-se”, por exemplo, “que o preto que se eleva e não tem prática de mandar é autoritário, tirânico, desagradável para com os colegas e subordinados, pretensioso e arrogante”.[13] Ou seja, precisamente os fatores alinhavados à época pela crônica esportiva para justificar o insucesso de Leônidas da Silva, em 1951, como treinador do São Paulo! Convém, no entanto, nuançar a análise.

E, no entanto, no interior do fracasso geral do técnico negro, podemos identificar uma série de pequenos êxitos muito valorizados no campo esportivo. Conforme pretendemos argumentar nos próximos artigos, mais do que interditar o acesso ao cargo de comando, o dispositivo racial canalizava a trajetória do antigo atleta afro-brasileiro para áreas específicas da atividade futebolística onde a sua presença, por assim dizer, mostrava-se integrada à ordem natural das coisas.

[1] Cf. “Antônio Julião é o ´grande capitão` do Botafogo”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº182, 2º quinzena de abril de 1961.

[2] Cf. “Antônio Julião é o ´grande capitão` do Botafogo”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº182, 2º quinzena de abril de 1961.

[3] Cf. “Nova fase na vida de um craque: Antonio Julião trocou as chuteiras pelo apito de técnico”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº 226, 2º quinzena de Março de 1963.

[4] Cf. “´Gerente` Julião deixou o Botagofo (R.P.)”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº242, 2º quinzena de 1963.

[5] Cf. “Dino: não ´deu` no samba e no ´quebra canela`”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº268, 2ª quinzena de dezembro de 1964.

[6] Uma versão resumida do caso Leônidas da Silva encontra-se elaborada no artigo publicado em 30 de maio de 2010 na Folha de S. Paulo: Treinador é coisa de branco.

[7] Cf. “Leônidas será o técnico dos amadores, juvenis e infantis”, A Gazeta Esportiva, 10 de fevereiro de 1950.

[8] Cf. “Leônidas e Ariston”, A Gazeta Esportiva, 29 de março de 1950.

[9] Cf. “Leônidas e Ariston querem brilhar como técnicos”, A Gazeta Esportiva, 1 de abril de 1950.

[10] Ribeiro, André (1999) O Diamante eterno: biografia de Leônidas da Silva. Rio de Janeiro: Gryphus, p.233. O próprio jogador parecia corroborar esta interpretação, em uma entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, em 11 de maio de 1980, quando questionado por que “fracassou” como técnico: “Por causa do meu temperamento. Apesar de dizerem que eu era genioso, indisciplinado, como jogador, eu sabia acatar ordens. Então, quando eu passei a ser técnico do São Paulo, dirigindo o ´time da perua` [um time sem craques que realizava amistoso], os cobras não aceitaram um regulamento… Eu tentei impor a ordem e me boicotaram”. Os “cobras” em questão eram Rui, Bauer e Noronha.

[11] Bastide, Roger; Fernandes, Florestan (2008) Brancos e Negros em São Paulo. 4ª ed. São Paulo, Editora Global, p.161.

[12] Cf. “As histórias de Leônidas, o Diamante Negro”, O Estado de S. Paulo, 11de maio de 1980.

[13] Bastide, Roger; Fernandes, Florestan (2008) Brancos e negros em São Paulo. 4ª ed. São Paulo, Global, pág.179.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O comandante negro. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 7, 2017.
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