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Como garantir a filiação clubista em time do Nordeste?

Uma discussão que vai se tornando cada vez mais comum no Brasil é sobre a bifiliação clubista. Se antes parecia estar restrita a algumas regiões, a repercussão midiática do futebol europeu no Brasil no século XXI, com o agravamento das possibilidades estruturais e econômicas para a prática do esporte profissional, ampliou os problemas relativos a isso.

Mas como sou nordestino, queria tratar do caso local. A explicação de como esse processo se constituiu aqui está em excelente texto de Hévilla Wanderley, publicado nesta coluna em abril: “‘Misto e anti-misto’: um sintoma das desigualdades regionais no torcer do Nordeste”.

Neste texto, não seguirei seguir este caminho, já bem apresentado. Pretendo fazer um ensaio para tratar de caminhos que os clubes nordestinos poderiam seguir para formar torcedoras/es.

Ao participar, semanas atrás, de uma live no canal de Youtube “Expresso Tricolor”, com o tema “Os mistos e o desrespeito aos nordestinos”, em determinado momento optei por pensar o que poderia ser feito no cenário atual. Os elementos lá colocados fazem parte de conversas já tidas no podcast Baião de Dois e o acompanhamento de experiências enquanto torcedor.

Tratei de três pontos, que tento aprofundar aqui: senso comunitário para o torcedor; preocupação com a difusão no interior; e o que fazer com quem já torce para outro clube.

Torcida mista
Fonte: Reprodução Facebook

Como manter a torcida próxima?

O que ser torcedor/a de futebol significa para nós? Por que, independentemente de situação, seguimos nos identificando com símbolos e cores, dentre outras representações, que ajudam a também nos caracterizar para outras pessoas? Não somos nós jogando, mas nos entendemos como participantes disso. É esse sentimento que nos faz perder tempo e dinheiro com uma prática de entretenimento.

Como afirmam Santos e Santos (2018, p. 251): “a relação entre torcedores e seus clubes está sempre, em medidas variadas, mediada por um senso de propriedade ou uma noção de direito de participação, mesmo que isso não aconteça de fato”.

Entretanto, é preciso entender que o próprio formato de clube já indica uma construção histórica elitista, que acabou senda reproduzido no modelo de sócio-torcedor, em que caberia a estes apenas os benefícios mais ligados ao consumo. O comando dos clubes seguia com sócios beneméritos, remidos, contribuintes, patrimoniais etc.

Acrescente-se a isso um contexto histórico que, dentre outras coisas, é marcado pela separação das atividades do futebol dos demais esportes e práticas físicas, com “a decadência dos clubes sociais enquanto lugar da prática urbana esportiva e de lazer” (SANTOS; SANTOS, 2018, p. 254).

Em termos de participação real na política dos clubes, a partir de Internacional e Grêmio, nos anos 2000, alguns clubes permitiram o voto do sócio-torcedor. De início, para votação e, em casos mais avançados, podendo se candidatar.

No Nordeste, há casos assim em clubes como Sport, Vitória e Bahia, com este vindo após intervenção judicial que obrigou a maior participação torcedora e é um exemplo como espaço de importantes causas sociais – ver mais em Santos (2019).

Participar realmente do clube, a partir de um processo de democratização torcedora, é um dos caminhos possíveis para gerar o senso de comunidade. Ainda que este processo ainda dependa dos resultados em campo, é uma alterativa necessária.

Para isso, claro, depende-se de valores de associação que possam compreender vários tipos de perfis econômicos, o que indica ainda as possibilidades de a identificação surgir pelas idas ao estádio.

Outra questão importante é compreender que a torcida é composta por distintos grupos sociais. Não adianta nada querer que mais pessoas se interessem pelos clubes, mas manter atitudes reacionárias contra pessoas LGBTQIAP+, por exemplo, como a reação recente de conselheiro em divulgação do Sport ou em resposta a postagens das equipes sobre o dia de orgulho LGBTQIAP+, como sempre ocorre.

Esse processo pode encaminhar ainda para a maior utilização dos espaços sociais do clube por mais pessoais, pensando em diferentes atividades possíveis, sejam as sociais ou políticas. Ocupar mais vezes o clube, para além de jogos, é necessário também para incluir o entorno social de onde fica, acentuando o aspecto geográfico do sentido de comunidade social – ainda que se considere as contradições possíveis entre localização e paixão.

Torcida em outras cidades

Mesmo em estados da região em que há maior identificação clubista com os times locais, casos de Pernambuco e Bahia, as poucas pesquisas sobre torcida mostram que há uma grande diferença quanto mais se afasta da região metropolitana.

Precisamos considerar, claro, que, como mostram os campeonatos estaduais, clubes de capital tendem a hegemonizar os torneios e tratar as equipes do interior de forma subalternizada nas decisões sobre torneio e divisão de cotas, reproduzindo o modelo nacional. Além de momentos como os de ASA (AL) e Itabaiana (SE), talvez só na Paraíba haja outra cidade que dispute de igual para igual, Campina Grande.

Há casos em que esses privilégios significam diminuição de jogos ou a menor ida de equipes para fora da capital – quando visitante pode atuar na região metropolitana. Assim, há poucos momentos de contato durante o ano, que se junta à falta de transmissão de jogos em TV aberta especialmente nos campeonatos nacionais.

É necessário tratar melhor da presença dos clubes em outras cidades, considerando especialmente locais em que mal há torcida para o time da cidade – nestas situações, ainda mais difíceis, o sentimento comunitário do tópico anterior seria ainda mais necessário, considerando as dificuldades de sobrevivência.

Eu lembrava das embaixadas do Bahia, com algumas atividades dos clubes sendo realizadas no interior, mas com a possibilidade disso também para quem não mora no estado. Conheci na live as ações de Ceará e Fortaleza antes da pandemia e tentei mais informações.

Ceará  Vozão
Fonte: Sócio do Vozão

No programa de sócio-torcedor dos cearenses há uma afiliação exclusiva para quem não mora na região metropolitana, o “Consulado Alvinegro” e o “Leão do Interior”, respectivamente. Nesses casos, há benefícios ligados ao consumo, com destaque para a ida ao estádio.

A criação de aplicativos digitais de sócios, que já eram tratados por Bahia e Ceará antes da pandemia, se mostraram ainda mais fundamentais neste período sem torcida no estádio. Mais ações precisam seguir a ser feitas para aproximar o clube da torcida em potencial e mais distante.

O que fazer com o “misto”?

Pesquisa anunciada pelo Ibope/Repucom em 2018 diferenciou a autoidentificação torcedora em dois níveis: 1ª e 2ª (“simpatizantes”) opções de torcida.

Os efeitos da bifiliação clubista ficaram mais bem apresentados que em outras pesquisas, de maneira a ver a proporcionalidade entre primeira e segunda escolhas. No caso do Nordeste, Náutico, Sport, Vitória, Santa Cruz e Ceará conseguiram passar de 60% na primeira opção. O máximo foi de 73%, do Timbu.

Ou seja, independentemente de críticas, os torcedores “mistos” não só existem, como na maior parte da região se identificam mais com um outro clube que com o local. O que seria possível fazer para mudar esse cenário?

Os resultados em campo ajudam, com algumas pessoas optando apenas pelo time local quando ele está em divisões superiores do Brasileiro, porém, não são suficientes, há quem se mantenha leal à paixão construída.

É a situação mais complexa, mas que as alternativas anteriores já ajudam. É necessário que se entenda o porquê de escolher o time local pode ser mais atrativo que os demais. Que o distante seja a segunda opção.

Isso, claro, não significa fazer camisas divididas ao meio, um clássico dos anos 1990. Muito menos aceitar que camisas de outros clubes, que mal têm a ver com as cores, do mandante, sejam aceitas nos estádios locais.

Avalio que é muito importante compreender a torcida em todos os seus aspectos e, para isso, é necessário fazer pesquisas constantes para entender os diferentes públicos que a compõe. A partir disso, direcionar as ações sociais e de marketing.

Nordeste Misto
Foto: Reprodução Facebook

Considerações parciais

As opções aqui indicadas mostram um processo que exige planejamento e ações mais direcionadas. Um cenário que se construiu e foi alimentado em cerca de 100 anos não irá se alterar de uma hora para outra, mas é preciso aproveitar os momentos de melhor fase dos clubes, com destaque nacional, para atuar na formação da torcida.

Num cenário que se direciona para multifiliação clubista, com concorrência ainda mais desleal com a Europa, pelo destaque midiático e pelo jogo dentro de campo, a preocupação se estende para todos os clubes brasileiros, mas aqui no Nordeste, com experiência prévia, já começamos a pensar nisto com prejuízo acumulado. Caminhemos!

Referências

SANTOS, I. S. da C.; SANTOS, A. D. G. dos. Democracia torcedora versus Vantagens consumistas: uma análise da associação clubística em tempos de futebol-negócio. MOSAICO, n. 14, v. 9, p. 246-261, 2018.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Anderson Santos

Professor da UFAL. Doutorando em Comunicação na UnB. Autor do livro "Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol" (Aprris, 2019).

Como citar

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Como garantir a filiação clubista em time do Nordeste?. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 9, 2021.
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