152.3

Considerações sobre a tese da secularização do esporte

Caio Pedron 2 de fevereiro de 2022

É lugar comum nas críticas que se apresentam sobre o futebol a ideia da perda do seu encanto promovida por uma racionalização completa do esporte que se expressa em diferentes momentos do jogo, por exemplo: na substituição da irreverência do drible pelo desempenho tático e funcional; no abandono da provocação e na pasteurização das comemorações dos atletas; na crítica aos “novos” cronistas esportivos e sua ênfase na análise de desempenho e, por fim, até mesmo com o VAR – epitome da tecnologia racional aplicada diretamente ao jogo – que é acusado de “roubar” a epifania do gol por uma espera angustiante e muito pouco redentora.

Os inúmeros protestos que decorrem dessas opiniões nos direcionam para uma pergunta sociológica: pode o futebol encantar a vida? Questão teórica que já foi posta em discussão lá pelos idos da década de 90 no clássico livro “O que é a Sociologia do Esporte” da não menos exemplar coleção Primeiros Passos. Nesta pequena obra prima, Ronaldo Helal (1990) nos apresenta uma releitura da teoria da secularização e da racionalização que deriva do universo teórico-conceitual proposto na sociologia da religião de Max Weber (1864-1920), aplicando-a, analogicamente, ao caso do esporte e, tomando como exemplo maior, o futebol. Com muita astúcia o autor propõe um paradoxo que inverte a lógica tradicional do processo de secularização, pois:

Quanto mais o esporte se profissionalizava e se tornava popular, mais próximo ele ficava da esfera do sagrado. Estamos diante de um interessante paradoxo, pois ao se afastar do amadorismo e adentrar no domínio do profissionalismo, reconhecidamente um domínio racional e técnico e, portanto, profano, o esporte tende a se sacralizar (HELAL, 1990, p.37-38).

O contraditório se expressa no diagnóstico de que foi a racionalização do esporte – sua maior organização, institucionalização dos clubes e federações, desenvolvimento técnico, profissionalização, circunspecção da prática esportiva em espaços simbólicos destacados da vida rotineira –  que produziu o efeito específico de encantamento proporcionado pela experiência de assistir ou jogar o futebol.

Torcida
Foto: Fabio Soares/ Futebol de Campo

É exatamente nesse ponto que parece radicar o gritante conflito entre esta proposta e a tese original do desencantamento do mundo mágico religioso, pois esta segunda advoga que o mundo foi paulatinamente despovoado do caótico universo de entidade, espíritos, demônios, deuses e tantas outras criaturas (PIERUCCI, 2005, p.85), substituindo-se a eficácia técnico/prática do ritual mágico por uma condução de vida orientada eticamente para a busca da salvação individual em um outro mundo, um reino governado por um único Deus de vontades inacessíveis e que pouco interferiria nas ocorrências mundanas.

Primeiro o cosmo se desmagificara e, só em um segundo momento, seria secularizado pelas crenças científicas e racionais que desalojariam a conduta religiosa do centro de significação social para a dimensão subjetiva da personalidade autônoma de cada indivíduo. Portanto, um processo de paulatina dessacralização que, exatamente por isso, se contrapõe a prática esportiva moderna, esta, por sua vez, nasceu no amadorismo dos clubes da elite aristocrático-burguesa e foi sendo incorporada ao gosto popular, profissionalizada, tornada pública, para, somente após esse desenvolvimento racional, ganhar um status simbólico ritual.

A aparente contradição entre os dois processos de secularização pode ser rapidamente superada se prestarmos um pouco mais de atenção na teoria de Max Weber, especificadamente, em sua famosa “Consideração Intermediária” (2016). Nela o autor apresenta uma teoria do conflito entre as esferas de valor seculares e a religiosidade, sendo que existiriam seis esferas de valor mundanas: econômica, doméstica, política, estética, erótica e a religião, das quais as três primeiras estariam mais vinculadas as ordens racionais do mundo e as três últimas possuiriam um potencial irracional digno de competição para com as experiências místicas das religiões mundiais[1].

Através das esferas erótica e estética seria possível experimentar uma espécie de salvação intramundana, uma saída de emergência do cotidiano racionalizado que conectaria o homem a sua animalidade primitiva. Sob este ângulo, a contradição poderia ser superada, pois o esporte seria considerado mais uma dentre essas irracionais orbitas mundanas, ou ainda, tomado como um campo de disputa onde diferentes valores das esferas seculares se digladiavam, por exemplo: o valor econômico do dinheiro, do lucro e da calculabilidade em choque com a valoração política da identidade nacional, do estilo de jogo brasileiro, ou então, em tensão com a experiência de sublimação artística do drible, do passe milimétrico, do gol de placa.

Torcedor
Foto: Fabio Soares/ Futebol de Campo

Inclusive, essa segunda possibilidade de interpretação da teoria do conflito dos valores weberiana poderia ser aplicada a ideia de pêndulo entre sacralização e racionalização do esporte, pois deste modo o futebol poderia possuir períodos de maior ritualização sacramental e outros no qual há uma dessacralização progressiva, em uma relação de amálgama que as vezes produz reverberações conjuntivas e, por outras vezes, pontos de tensão entre razão e sentimento. Abaixo segue um esquema das temporalidades propostas na leitura de Helal (1990, pp.35-44) do futebol:

Tempo[1]

Direção/título

Característica

1895-1920

Período predominantemente secular

Invenção do esporte, desenvolvimento e consolidação da prática amadora do futebol em clubes de elite e, só depois, em associações comerciais e outros agrupamentos sociais menos exclusivistas.

1930-1970

Período predominantemente sagrado

Consolidação do futebol como esporte de massas, profissionalização dos atletas, organização dos clubes e das instituições promotoras dos eventos (CBD, CBF, FPF, FIFA, COMEBOL) e consolidação do estádio como espaço apartado da sociedade no qual o jogo se desenrolava. Profusão de experiências simbólicas e rituais das torcidas, ênfase no papel mitológico das vitórias e dos atletas que são concebidos como heróis de verdadeiras epopeias.

1980 até agora

O novo período predominantemente secular

A lógica de desenvolvimento e profissionalização do esporte somada aos desenvolvimentos técnicos e tecnológicos produzem uma situação de desencanto na qual jogadores não ficam muito tempo nos clubes e, muitas vezes, atuam em vários rivais; a conduta dos atletas passa a ser menos provocativa e mais austera; a ênfase no desempenho e nas vitórias substitui a beleza estética e o ideal de estilo de jogo brasileiro; a revisão tecnológica do lance impede a efusão dos “espíritos animais” na comemoração do gol e deixa, muitas vezes, a torcida apreensiva até a decisão final da arbitragem.

Seria ainda mais interessante pensarmos em um movimento contínuo no qual a racionalização reforça alguns aspectos sacramentais que, por sua vez, potencializam, através do consumo do esporte, uma mercantilização progressiva do jogo institucionalizado: ora salientando ao público esse lado mais racional ora o potencial emocionalista. Essa é a ideia levantada pelo próprio autor (HELAL, 1990, p.44) quando afirma a existência de uma ambiguidade constitutiva no jogo moderno, entre a razão que quantifica, especializa, formaliza e calcula todos os pormenores do jogo e a paixão que promove uma experiência de êxtase entre torcedores, jogadores, técnicos e até mesmo repórteres e narradores que as vezes abandonam sua pretensa objetividade para se deixar encantar por uma jogada bonita ou por um golaço.

Goleiro
Foto: Pierro de Marchis/FACIS 1966.

Por tudo isso que foi discutido acima é possível afirmar que a analogia entre a teoria da secularização (religiosa) e o esporte continua sendo pertinente para o tratamento dos fenômenos “mágicos”, rituais e simbólicos que ocorrem durante uma partida de futebol. Creio que o aprofundamento de uma perspectiva weberiana da sociologia do esporte permita não só o aperfeiçoamento da analogia entre secularização religiosa e futebolística como, também, possibilidades de interpretação das transformações históricas e da racionalização do esporte mais popular do mundo.

Notas

[1] Em sua sociologia das religiões Weber deu preferência para aquelas que ele colocou sob a alcunha de religiões mundiais e são elas: confucionismo, taoísmo, cristianismo, hinduísmo, islamismo e budismo. Weber também trata da religião judaica porque pretende partir dela para explicar as outras duas religiões do livro (cristianismo e islamismo) que possuem em sua origem um vínculo com o judaísmo.

[2] A temporalidade não é passível de ser abordada de uma forma unilateral, por exemplo: escolhi 1895, pois foi nesse ano que a primeira partida oficial de futebol foi registrada no Brasil. A escolha do termo predominante no título de todos os períodos de sacralização/secularização é bastante acertada, pois o processo histórico é muito mais acidental e um tanto menos unilateral do que qualquer sistematização possa determinar. Portanto, há momentos em que o jogo encanta e encantou anteriores a profissionalização – a beleza estética do jogo de Arthur Friedenreich ou “balé” de passes Húngaro em contraposição à força inglesa – e, também, posteriores a ela, como é o caso da geração de ouro brasileira nos anos de 82 e 86 que encantou o mundo mesmo sem conseguir vencer o mundial. Quando se trata de sistematizar sociologicamente a história é necessário procurar por tendências de desenvolvimento e direção, por possibilidades, probabilidades e adequações, ao invés de necessidades e determinações.

Referências

HELAL, Ronaldo. O que é sociologia do esporte. São Paulo, SP: Brasiliense, 1990.

MARCHIS, Pierro. Gol do jogador De Paoli da Juventus em partida do pré-campeonato contra a Biellese. Museu/Ludopédio. Acesso em 27/01/2022.

PIERUCCI, Antônio Flavio de Oliveira. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. 2. ed. São Paulo, SP: USP: Editora 34, 2005.

SOARES, Fabio. O Poder das torcidas. Futebol Arte/Ludopédio. Acesso em 27/01/2022.

SOARES, Fabio. Soltando o Grito de Campeão. Futebol Arte/Ludopédio. Acesso em 27/01/2022.

WEBER, Max.  Parte III – Religiões Mundiais – Uma consideração intermediária: Teoria dos Estágios e direções da rejeição religiosa do mundo. In: WEBER, Max. Ética Econômica das Religiões Mundiais: Ensaios comparados de sociologia da religião. Vozes, 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Caio Pedron

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Palmeirense de coração e apaixonado pelo futebol.

Como citar

PEDRON, Caio. Considerações sobre a tese da secularização do esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 3, 2022.
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