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Contos de Futebol no Brasil – Parte I

Na célebre obra Gol de letra: o futebol na literatura brasileira, publicada em 1967, Milton Pedrosa enumera os títulos de alguns contos publicados desde as primeiras décadas do século XX, no Brasil, em que o tema do futebol “tem sido aproveitado algumas vêzes”:

Encontramo-lo em “A doença do Antunes” e “Herói”, de Lima Barreto, em “O 22 do Marajó”, de Monteiro Lobato; em “Gaetaninho” e “Corinthians 2 x Palestra 1”, de Antônio de Alcântara Machado. Aníbal Machado escreveu “O Defunto Inaugural”, Breno Aciole deixou-nos “Jaguaré”; de Orígenes Lessa é “Esperança F. C.”; Dias da Costa é autor de “De tarde e domingo”; Edilberto Coutinho tem “Nuvem Bárbara”; Silvio de Castro, “A grande partida”; Paulo Coelho Neto, “O torcedor”; de Vasconcelos Maia é “Largo da Palma”, e assim outros, cujo número não atinge meia centena. Na maioria dos casos nem sempre o futebol constitui o centro da história. […] (PEDROSA, 1967, p. 14)

Gol de Letra
Detalhe da capa do livro Gol de Letra

Outro nome de destaque, quando o assunto é a relação entre futebol e literatura no Brasil, é Ivan Cavalcanti Proença, autor da obra Futebol e palavra (1981). Poucos mais de uma década após a publicação de Gol de letra por Milton Pedrosa, Ivan Cavalcanti Proença identificava uma matéria do Jornal do Brasil, de 1970, na qual alguns célebres nomes da literatura brasileira foram listados:

O Jornal do Brasil, em 1970, publica página dupla inteira sobre este encontro das Letras e do esporte das massas no Brasil. Lembra a escassez, até certo ponto paradoxal, de publicações sobre futebol e divide a reportagem em “Os títulos” e “O tema: ignorado” […]. A seguir, sob o título “Quem fala de futebol” enumera Lima Barreto, Coelho Netto, Oswaldo Dias, Da Costa, Macedo Miranda, José Lins do Rego, Drummond, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, João Saldanha, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, José Conde, Mário Filho, Mário de Andrade, António de Alcântara Machado, Marques Rebelo […]. (PROENÇA, 1981, p. 10)

Naquela oportunidade, Ivan Cavalcanti Proença já destacava a atuação de alguns contistas, entre eles, aquele que seria o primeiro escritor brasileiro a receber o prestigioso prêmio latino-americano Casa de Las Américas justamente por um livro de contos de futebol: “Alguns escritores vêm se interessando por esse assunto e, exemplo, o jornalista e contista Edilberto Coutinho, trabalhando, ao nível de contos, com temáticas específicas do futebol” (PROENÇA, 1981, p. 10). Trata-se da obra Maracanã, adeus: onze história de futebol, publicada em 1980.

Ainda sobre a coluna do Jornal do Brasil dedicada à relação entre futebol e literatura, Ivan Cavalcanti Proença relata que nela foram publicados diversos textos de autores renomados, não só de escritores, mas também de cronistas esportivos. Tais textos eram classificados por temas: “O jogador, o técnico, o clube, a bola, o pênalti, o gol, a goleada, o juiz, o torcedor, belle-époque (esta referindo-se aos líricos e domésticos estadinhos de partidas domingueiras), a tragédia” (PROENÇA, 1981, p. 10). Dentre os títulos listados pelo autor, identificamos alguns que se referem ao gênero textual “conto”: os pioneiros “A doença do Antunes” e “Herói” (1922), de Lima Barreto, publicados postumamente no volume Coisas do Reino do Jambon (1956), além de “Gaetaninho” e “Corinthians 2 x Palestra 1”, de Antonio de Alcântara Machado, publicados na obra Brás, Bexiga, Barra Funda (1927), e “De tarde e domingo” (1943), conto de Dias da Costa, todos referenciados anteriormente por Milton Pedrosa.

Futebol e Palavra

Desde então, o número de contos de futebol no Brasil aumentou significativamente, chegando a centenas, graças a escritores que se aventuraram a publicar livros autorais contendo somente contos que versam sobre futebol, como é o caso de Mayrant Gallo e O gol esquecido: contos de futebol (2014), Cláudio Lovato Filho e O batedor de faltas (2008), o saudoso Aldyr Garcia Schlee e a obra Contos de futebol (1997), entre outros. Destacam-se também antologias de contos de futebol publicadas nas últimas décadas, entre elas, Contos brasileiros de futebol (2005), organizada por Cyro de Mattos, Paixão e ficção: contos e causos de futebol (2009), organizada por Luís Pimentel, e Entre as quatro linhas: contos sobre futebol (2013), organizada por Luiz Ruffato. Há, também, antologias que reúnem gêneros textuais variados (contos, crônicas, reportagens etc.), como é o caso de A palavra é…futebol (1993), organizada por Ricardo Ramos, e Um time de primeira: grandes escritores brasileiros falam de futebol (2014), organizada por Daniel Louzada.

Todavia, conforme o pesquisador Walter Serpa destaca em artigo publicado recentemente, um nome em especial contribuiu, de maneira decisiva, para a seleção e difusão de contos de futebol: Flávio Moreira da Costa.

Flávio Moreira da Costa, falecido em 2019 aos 76 anos, foi um multipremiado escritor gaúcho que, dentre outras produções, se dedicou a organizar antologias de diversos segmentos literários. Dentre as duas dezenas de seleções, três foram dedicadas ao futebol, buscando explorar de forma emotiva a relação que o esporte tem com seus praticantes e a sociedade em geral, incluindo aqueles que acreditam não sofrerem os impactos da modalidade esportiva mais praticada no mundo. (SERPA, 2021)

As três antologias indicadas por Walter Serpa no artigo “Moreira da Costa F. C.” são: Onze em campo (1986), Onze em campo e um banco de primeira (1998) e, respectivamente, 22 contistas em campo (2006). Em seu estudo, Walter Serpa chega à seguinte conclusão, que nos permite entender que, mesmo nas últimas décadas, ainda há resistência por parte de editoras, quando o assunto é futebol:

No trajeto dessa pesquisa descobri que a produção dessa “trilogia por acaso” foi, para Moreira da Costa, não somente um trabalho, mas também uma vitória pessoal de um projeto que demorou 29 anos para ser concluído. Com a ideia de produzir uma antologia com vinte e dois contistas e realizar uma partida de “futebol literário”, o escritor encontrou grande resistência por parte do mercado editorial, que não manifestava interesse em investir num nicho tão restrito como era o da literatura esportiva nos anos 70. Coube à centenária editora carioca Francisco Alves a tarefa de publicar o projeto, mas com uma condição: por razões financeiras, o número de contos deveria ser reduzido pela metade. (SERPA, 2021)

Não podemos deixar de mencionar, também, mesmo que brevemente, obras específicas, por exemplo, motivadas pela paixão de um clube, como é o caso de Contos da colina: 11 ídolos do Vasco e sua imensa torcida bem feliz (2012), que reúne contos dos ilustres vascaínos Luis Maffei, Mauricio Murad e Nei Lopes. Também encontramos aqueles que publicaram contos de futebol em obras não dedicadas exclusivamente ao tema, como é o caso de Páginas sem glória: dois contos e uma novela (2012), de Sérgio Sant’Anna, que inclui o conto “Páginas sem glória”, o magistral livro Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos (1977), de Plínio Marcos, que inclui, entre outros contos, “Inútil canto e inútil pranto pelos anos caídos nas voltas da bola e da boleta”,  uma trilogia que reúne os contos “A peneira”, “O suborno” e “O fim”, ou na obra Raşif: mar que arrebenta (2008), de Marcelino Freire, que inclui o conto “Amigo do Rei”, e também a obra Vidas inquietas (1943), de Paulo Coelho Netto, na qual foi publicado o conto “O torcedor”.

Sem dúvida, uma excelente fonte para quem deseja pesquisar sobre publicações que se relacionam com o tema do futebol é a obra Bibliofut: a literatura do futebol brasileiro (2019), de Domingos Antonio D’Angelo e Ademir Takara, uma verdadeira “mina de ouro”, “um mapa do tesouro” (STYCER, 2019, p. 10), como bem define o jornalista e escritor Mauricio Stycer, prefaciador do livro. Especificamente sobre contos, recomenda-se a seção “Letras”, da 2ª parte do livro, intitulada “Bibliografia Brasileira de Futebol”.

Para esta primeira parte da série “Contos de Futebol no Brasil”, selecionamos cinco contos que serão apresentados, brevemente, a seguir: “Amistoso” (1958), de Rachel de Queiroz, “Mindinho” (1958), de José Cruz Medeiros, “Iniciada a peleja” (1964), de Fernando Sabino, “O suborno” (1977), de Plínio Marcos, e “Escapando com a bola” (1979), de Luiz Vilela.

“Amistoso”, de Rachel de Queiroz – um conto marcado pela ironia

Originalmente, o conto “Amistoso”, da escritora Rachel de Queiroz, foi publicado em 1958. Professora, jornalista, romancista, cronista e teatróloga brasileira nascida em Fortaleza, CE, Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras em 1977. No conto “Amistoso”, a escritora apresenta a realidade comum a muitos recantos país afora: o futebol se fazendo presente como lazer e prática corporal em campos de várzea de pequenos povoados.

No conto de Rachel de Queiroz, duas equipes adversárias se enfrentam em um “Amistoso”. Inicialmente, o campo de futebol é apresentado pelo narrador onisciente em sua precariedade:

Deficiências, se as há, é no campo propriamente dito, que seria ótimo se não sofresse de uma depressão bem no seu centro geométrico, exatamente onde se costuma riscar aquele grande círculo de giz. E como essa praça de esportes se situa numa baixada, sempre que chove apresenta o aspecto de um prato fundo cheio de água – e quando não é água é lama (QUEIROZ, 2006, p. 47).

E era no campo enlameado que se realizaria o “Amistoso”.

Todavia, o título do conto, enquanto paratexto, se relaciona de maneira irônica com o próprio texto, pois o que se vê nesse “Amistoso” é uma rivalidade ferrenha que descamba para a violência. Como o narrador anuncia, “[o]s visitantes, ou adversários, convidados para aquela partida amistosa do chamado ‘esporte bretão’, chegaram festivamente num caminhão ornado de arcos e guirlandas. Sim, no começo, tudo são flores” (QUEIROZ, 2006, p. 47). Mas esse clima festivo logo se desfaz.

O conto “Amistoso” se divide em três partes. Na parte introdutória, o campo de várzea é apresentado em sua precariedade, sem vestiários e sem arquibancadas, o que desagrada o narrador, que parece interessado no aspecto rentável do jogo ao fazer a seguinte digressão: “ainda é um problema a resolver, esse da assistência em campo aberto, sem possibilidades de bilheteria” (QUEIROZ, 2006, p. 47).

A segunda parte do conto é intitulada “1º TEMPO”, em que alguns jogadores do time local e do time visitante são apresentados em ação, e a partida segue: “E o jogo vai indo muito bem, bola para lá e para cá, passe, cabeçada, chute a gol, gol! – não, gol não, passou por cima da trave” (QUEIROZ, 2006, p. 48). Os embates se tornam cada vez mais violentos: “Fecha o tempo, o juiz apita, a assistência pula a cerca e invade o campo, o pau começa a comer, mormente nas costas dos forasteiros, o juiz retira-se e se encosta à cerca, aguardando aparentemente que os ânimos serenem” (QUEIROZ, 2006, p. 48).

Terminado o “sururu”, o primeiro tempo se encerra com o placar de 2×0 para os visitantes. Na composição da persona do narrador, observa-se certo olhar preconceituoso para os adversários, ora designados como “estrangeiros”, ora como “forasteiros”. Isso se evidencia no modo como os gols da equipe são referenciados: “[…] E o diabo do louro tornou-se proprietário do balão, marca um gol de saída, depois o seu ‘secretário’, um crioulinho ligeiro, que é uma faísca, marca o segundo tento” (QUEIROZ, 2006, p. 48).

Já a última parte do conto se inicia com a frase “2º TEMPO que não houve, segundo passo a expor”, pois instaurou-se uma verdadeira confusão entre assistência, policiais, dirigentes e jogadores. “O tempo fechou outra vez”. Ao final, quase nada restou: “no campo, completamente deserto, uma garça vinda do Jequiá sobrevoava o alagado, bicando restos de flores do buquê ofertado pelos visitantes” (QUEIROZ, 2006, p. 49). Nesse conto de Rachel de Queiroz, publicado em 1958, é transmitida uma imagem do futebol associada à prática amadora nos anos 1950, em campos de várzea precários, e à violência de jogadores e torcedores.

Rachel de Queiroz
Posse de Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras, em 1977. Foto: Wikipédia

“Mindinho”, de José Cruz Medeiros – memórias póstumas de um ex-jogador

O conto “Mindinho”, do escritor, contista e ensaísta paranaense José Cruz Medeiros, foi publicado originalmente em 1958. Autor de livros de contos como Pinheiros (1956), Bicho carpinteiro (1958), Uns contos por aí (1969) e A hora nona (1981), José Cruz Medeiros instaura um narrador em primeira pessoa, ex-jogador, que narra suas “memórias póstumas”. De início, a epígrafe do conto anuncia o próprio estado do narrador: “Os mortos não estão mortos, porém vivos” (Alfred Tennyson, poeta inglês) (MEDEIROS, 2005, p. 105). Assim, anuncia o narrador-personagem e ex-jogador de futebol:

A turma prefere o domingo, que é o dia da vitória. Eu não; comigo é na quarta-feira. É quando me levanto contente, satisfeito da vida. Tudo muito claro, os passarinhos vêm comer as migalhas de pão que eu atiro no quintal… Ou será ilusão? Porque foi, justamente, numa tarde de quarta-feira, belíssima, que eu morri. Morri de pneumonia, uma febre violenta que em três dias me botou estirado. […] (MEDEIROS, 2005, p. 105).

Conforme bem aponta Diana Simões, “[v]ozes defundas têm sido usadas durante séculos para contar histórias desde a herança grega dos ‘Diálogos dos Mortos’, de Luciano de Samósata (século II d.C.), passando pelas ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, do Brasileiro Machado de Assis (1981), até os nossos dias” (SIMÕES, 2019, p. 50). O conto “Mindinho” se insere nessa linhagem.

Da perspectiva de um morto, o protagonista Mindinho narra sobre detalhes de seu próprio velório, como um autêntico duplo de si: “Contemplei o meu corpo no caixão e notei, logo, o profundo contraste que existia entre o pano preto que o revestia e a cor branca de cera, em minhas mãos” (MEDEIROS, 2005, p. 106). Não falta nem mesmo a narrativa sobre detalhes do sepultamento: “uma das cordas escorregou e o caixão, embicando perigosamente para baixo, foi jogado violentamente contra o raso da cova, e assim fiquei eu à espera dos vermes” (MEDEIROS, 2005, p. 108). E o duplo contempla a própria cova sobre sua situação “limiar”: “Luzes estranhas davam conta de que me encontrava no limiar de uma nova existência, sem nada compreender desse mundo fantástico e irreal, feito do impossível e do imponderável” (MEDEIROS, 2005, p. 108).

Na sequência do conto, em um diálogo inusitado travado entre o narrador e um filósofo chamado Camargo, falecido em 1868, surge o tema do futebol:

─ E o que fazia, antes de vir para cá?

─ Futebol – respondi com certo desalento. O senhor sabe, eu sou o Mindinho – insisti. (MEDEIROS, 2005, p. 109)

E após conversar com o filósofo morto, sem ser reconhecido como Mindinho, craque do rubro-negro, colocou-se a caminho para assistir ao clássico contra o Vasco da Gama, pois era um domingo:

Vi, então, que podia me locomover à vontade. Comecei a flutuar como num tapete mágico, ao sabor do meu desejo. Como uma criança, que principia a andar. Dentro de breves instantes, eis-me a rever as paisagens de minha predileção: Laranjeiras, Cosme Velho, a Barra da Tijuca (MEDEIROS, 2005, p. 110).

No conto “Mindinho”, destaca-se a personagem Piúca, ex-companheiro de Mindinho na zaga do Flamengo, que era amante de sua mulher. O jogo em si ganha expressão através de descrições, sem um ritmo mais dinâmico, até mesmo porque o narrador-espectro interfere no ritmo de Piúca dentro de campo, tornando-o lento em sua movimentação, a ponto de o Flamengo ser derrotado pelo placar de 6×0, todos os gols por falha de Piúca. Ao final do conto, Mindinho assevera:

Você se lembra dessa lavagem do Flamengo? A gente não esquece. Todo mundo botou a culpa no Piúca, uma desmoralização completa. Que continue a viver com a minha mulher. E dizia-se meu amigo, o miserável! Mas está frito: Lea não dá pelota para quem não for cartaz… E, se der, agora já não tem importância (MEDEIROS, 2005, p. 112).

Assim, movido por sede de vingança, Mindinho agiu com o intuito de arruinar a carreira de Piúca, mesmo tendo remorso, pois, com isso, provocou a derrota de seu time de coração. Mas ver o ex-companheiro de clube e amante de sua mulher fracassar na partida lhe dava prazer: “Como eu me babava de gozo!” (MEDEIROS, 2005, p. 112) Entretanto, ao final de sua narrativa póstuma, permanece a situação irreversível de estar morto, pois a vingança não lhe restitui a vida.

Fernando Sabino
Fernando Sabino. Foto: Wikipédia

“Iniciada a peleja”, de Fernando Sabino – o torcedor da seleção

O conto “Iniciada a peleja”, do escritor, jornalista e editor brasileiro Fernando Sabino, foi publicado originalmente em 1964. Autor de obras como A marca (1944), O encontro marcado (1956), O homem nu (1960), O grande mentecapto (1979), e Amor de Capitu (1998), Fernando Sabino elege como espacialização do conto “Iniciada a peleja” a sala de reunião da diretoria de um banco. Um narrador em terceira pessoa, onisciente, extradiegético, tem seu discurso entrecruzado com as falas e pensamentos das personagens, e com a narração de uma partida de futebol, que está ocorrendo no mesmo momento em que se realiza a reunião.

As personagens do conto “Iniciada a peleja” são todas diretores de banco e permanecem inominadas, sendo que a personagem principal leva um rádio de pilha à reunião, pois desejava ouvir a transmissão de uma partida da Seleção Brasileira na Europa, um amistoso contra a equipe italiana da Fiorentina, em 29 de maio de 1958, como preparação para o Mundial da Suécia:

Justamente na hora do primeiro jogo de nosso selecionado na Europa, realizava-se uma reunião da diretoria do banco, a que ele não poderia deixar de comparecer. Não teve dúvidas: arranjou emprestado um radiozinho transistor, com dispositivo de se adaptar ao ouvido para audições individuais, meteu-o no bolso e bateu-se para a reunião. (SABINO, 1993, p. 58)

Pode-se imaginar que, para a época, um rádio portátil transistorizado era uma grande novidade tecnológica. Um dos diretores, ao ver os fones de ouvido, achou que o colega tivesse ficado surdo e que estava usando um aparelho auditivo. Desenvolve-se, então, ao longo do conto, um efeito de simultaneidade entre jogo e reunião, sendo que o jogo se faz presente pela transmissão radiofônica e pelas exclamações da personagem:

[…] Didi passa para Mazzola, este para Pepe, Pepe novamente para Mazzola. Proposição de um dos diretores sobre o incremento do crédito agrícola. Escapada de Garrincha pela direita. Estamos certos de que nossos colegas aprovarão medidas que permitam a imediata normalização das operações. (SABINO, 1993, p. 58)

Desse modo, o diálogo entre os diretores é entremeado de exclamações do colega que ouve a transmissão da partida pelo radinho de pilha:

─ Aprovado.

─ Aprovado.

─ Impedimento.

─ Como?

─ Nada não. Aprovado. (SABINO, 1993, p. 58)

Assim, ao ouvir, simultaneamente, a transmissão da partida e os argumentos de seus colegas diretores na reunião do banco, a personagem principal parece misturar em seu pensamento ambos os discursos: “A dívida será computada no ano imediatamente posterior à safra liberada. Cobrada a falta. Defesa es-pe-ta-cu-lar de Gilmar!” (SABINO, 1993, p. 59). Enfim, os gols da seleção vão sendo marcados e o diretor com o radinho não se contém e comemora, despertando a curiosidade dos demais diretores que querem ouvir a transmissão: “Ao fim, os diretores, esquecidos do que dispõe a Lei nº 2.697, sobre a concessão de crédito agrícola em face da safra liberada no ano interior, congratulavam-se, entusiasmados: havíamos vencido por quatro a zero” (SABINO, 1993, p. 60).

Por fim, a reunião se encerra em clima de confraternização entre os diretores, de modo que o conto de Fernando Sabino transmite uma imagem do futebol associada à identidade nacional e ao caráter passional dos torcedores.

Plinio Marcos
Plinio Marcos. Foto: Wikipédia

“O suborno”, de Plínio Marcos – uma dicção narrativa sui generis

O conto “O suborno”, do escritor, ator, dramaturgo e jornalista brasileiro Plínio Marcos, foi publicado originalmente na obra Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos (1977). Poucos sabem que o autor de peças de teatro magistrais como Barrela (1958), Dois perdidos numa noite suja (1966) e Navalha na carne (1967), na adolescência, sonhava em se tornar jogador de futebol, e até mesmo chegou a jogar na equipe juvenil da Portuguesa Santista e do Jabaquara.

O conto “O suborno”, sem dúvida, é um dos principais textos da série literária brasileira que têm por tema o futebol. Sua marca distintiva é a narrativa, que mais se assemelha a uma locução radiofônica que aumenta a intensidade do momento narrado:

Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos trinta, aos trinta e cinco, aos quarenta, aos quarenta da fase final, zero a zero aos quarenta minutos da fase final de um jogo decisão de título, decisão de título da segunda divisão, da maldita segunda divisão, zero a zero, zero a zero, zero a zero aos quarenta minutos, cinco pra acabar, e a bola rolando, rolando, rolando e atrás dela músculos, nervos, sangue de vinte e dois homens, de vinte e dois homens desesperados, jogando o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens desesperados, jogando o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens rolando suas vidas atrás da bola, da bola miúda da segunda divisão, da segunda divisão do futebol do absurdo, vinte e dois absurdos profissionais dançam uma estanha dança que milhares de olhos seguem atentamente a cada lance, a cada lance, a cada lance. (MARCOS, 2006, p. 22)

Tal narrativa é uma marca de Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos, par além do tema do futebol. A metáfora do jogo da bola e do jogo da vida se faz presente ao longo de todo o conto, sendo que o ápice da tensão é atingido com a marcação de um pênalti:

[…] Um jogador fica caído na área do adversário. O juiz apita, apita, apita pênalti. Zero a zero aos quarenta minutos da fase final do jogo decisivo do campeonato da segunda divisão, da maldita segunda divisão do futebol do absurdo. O juiz apita, apita, apita Pênalti. (MARCOS, 2006, p. 23)

No conto “O suborno”, destaca-se duas personagens: um jogador veterano, em fim de carreira, que vai bater o pênalti, e o juiz, sobre o qual recai a suspeita de arbitragem comprometida por corrupção:

[…] E ele, ele, o veterano em fim de carreira, ele que teve tantas glórias, ele que tem muita experiência, ele é que tem que cobrar o pênalti. Um pênalti, um maldito pênalti, apitado por um juiz que ele sabe, […] apitou pênalti, pênalti, faltando cinco minutos para o fim do jogo, porque estava pago, pago pra influenciar no resultado. Pago, muito bem pago para apitar o pênalti, só pago, muito bem pago, o juiz apitou, apitou o pênalti. (MARCOS, 2006, p. 23)

A engenhosidade da instância narrativa como uma espécie de locutor potencializa toda a tensão que envolve o lance, incluindo o jogador veterano, que havia sido igualmente subornado: “[…] ele o mais experiente. Ele, que por ser já um veterano, ele, justamente ele, que por ser o mais experiente, recebeu dinheiro, muito dinheiro, dinheiro para não marcar nem aquele gol, nem nenhum outro gol naquele jogo” (MARCOS, 2006, p. 24). E não falta o agente do suborno: “o repelente abutre imaginador de repelências”. Ao final, o veterano erra o pênalti, decretando a perda do campeonato por parte de seu time: “Os adversários se abraçam, ele errou. Seus companheiros choram, ele errou. Chora o técnico, choram os diretores, ele errou. Mas não queria errar, Não queria. Ele Chora. Chora. Chora. Chora.” (MARCOS, 2006, p. 26).

Todavia, as últimas palavras proferidas pelo “repelente abutre imaginador de repelências” dão a entender que tudo não passou de encenação por parte do jogador veterano: “― Você chora, chora, chora como um artista. Te vendo chorar assim até eu, até eu, chego a pensar que você errou sem querer.” (MARCOS, 2006, p. 26). Portanto, em sua constituição temática, o conto “O suborno” transmite uma imagem do futebol envolta em falcatruas e violências.

“Escapando com a bola”, de Luiz Vilela – um conto trágico

O conto “Escapando com a bola”, do filósofo, jornalista, escritor, romancista e contista mineiro Luiz Vilela, foi publicado originalmente na obra Lindas pernas (1979). Autor de livros de contos como Tremor de terra (1967), sua obra inaugural, No bar (1968), O fim de tudo (1973), e O violino e outros contos (1989), Luiz Vilela dedica-se ao tema do futebol no conto “Escapando com a bola”, investindo, para isso, em uma instância narrativa em 3ª pessoa, com traços de onisciência, que apresenta duas personagens: uma que permanece inominada no início do conto, tratada às vezes por “ele”, às vezes por “eu”, e a segunda personagem, nomeada como o “outro”, ou por seu apelido: “Canhoto”.

Há um evento que unem ambas as personagens, outrora jogadores de futebol: uma lesão decorrente de entrada faltosa do “ele” sobre o “outro”, conforme atestado na seguinte passagem do conto, em que “ele” encontra o “outro” em um bar, após seis anos do ocorrido, e procura se desculpar:

─ De vez em quando eu pensava: “Gente, e o Canhoto? O que será que ele anda fazendo?” Eu sempre procurava ter notícias suas, mas ninguém sabia direito. Na época, quando aconteceu a coisa, eu acompanhei tudo: a operação, o tratamento, depois a complicação que houve, a conversa de uma outra operação, as dificuldades financeiras do clube e as suas; acompanhei tudo. O dia que eu soube que você não poderia mais jogar, eu fiquei muito triste; muito triste. Torci para que não fosse verdade, para que ainda houvesse jeito para… Eu torci… (VILELA, 1998, 147)

Todavia, o “outro”, demonstrando intensa raiva pouco interage no diálogo, tornando-o quase um monólogo, em que a perspectiva do narrador em 3ª pessoa se confunde com a da personagem “ele”. Aos poucos, o leitor vai descobrindo toda a complexidade da trama, em que o “ele” rememora os eventos do passado, tomado por sentimento de culpa pelo ocorrido e por ver o “outro” ali no bar, buscando refúgio na bebida, conforme evidencia outra passagem do conto “Escapando com a bola”: “─ Desculpe, Canhoto; me desculpe estar aqui falando essas coisas. Eu sei que não é agradável para você, eu sei. […] Mas dessa vez eu precisava vir, eu precisava falar com você. Há seis anos que isso está atravessado na minha garganta…” (VILELA, 1998, p. 147). E a personagem “ele” rememora a cena trágica, da qual procura se livrar:

─ […] Você lembra: nós tínhamos de ganhar aquele jogo, tínhamos de ganhar de qualquer jeito, era decisivo pra nossa classificação. Faltavam só três minutos pra terminar, a torcida já comemorava: quando vi você escapando com a bola naquele contra-ataque, nossa defesa toda batida, eu fiquei louco; eu vi que ali não tinha erro. Eu só tinha um recurso: te parar; não havia outro jeito. E aí eu fui; fui pra valer. Mas eu não tinha intenção de… Eu não sou violento, nunca fui. Você vê: eu era o capitão do time, o cara mais controlado. Mas àquela hora… (VILELA, 1998, p. 147-148)

Na sequência do diálogo monologal, o “ele” revela ao “outro” que o remorso pelo ocorrido teria comprometido também sua carreira, a qual, após ascensão, caíra em declínio, quando foi parar em uma equipe do interior, de pouca expressão. Entretanto, para “Canhoto” era impossível perdoar: “‛– Não há perdão para isso.’ O outro então se levantou e, sem se despedir, foi caminhando rumo ao balcão, puxando uma perna. Pagou e saiu do bar.” (VILELA, 1998, p. 150). Assim, no conto “Escapando com a bola”, Luiz Vilela ficcionaliza algo de trágico ao qual todo jogador de futebol está exposto: a lesão fatal. Cada um a sua maneira, estavam atrelados pela memória àquele evento, sendo que um trazia visível em seu corpo a marca da tragédia, enquanto o outro – cujo nome é revelado posteriormente: Tiago – trazia um trauma, uma “ferida” em sua mente, agravada por incessante lembrança: “Então devia também arrastar aquele arrependimento pela vida afora, como o outro arrastaria a perna.” (VILELA, 1998, p. 150)

Luiz Vilela
Luiz Vilela no Parque Municipal de Belo Horizonte, nos anos 1960. Fonte: Luiz Vilela / Arquivo Pessoal

Referências Bibliográficas

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BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Herói. In: BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Coisas do Reino do Jambon. São Paulo: Brasiliense, 1956.

COELHO NETTO, Paulo. O torcedor. In: COELHO NETTO, Paulo. Vidas inquietas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1943.

COSTA, Dias da. De tarde e domingo (1943). In: PEDROSA, Milton. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 55-60.

COSTA, Flávio Moreira da (org.). Onze em campo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

COSTA, Flávio Moreira da (org.). Onze em campo e um banco de primeira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998.

COSTA, Flávio Moreira da (org.). 22 contistas em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Contos de Futebol no Brasil – Parte I. Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 8, 2021.
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