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Contra o Futebol Moderno – 4# FC St. Pauli

Victor de Leonardo Figols 25 de agosto de 2014

A história do Fußball-Club Sankt Pauli von 1910 de Hamburgo (Alemanha) começa como quase todas as histórias de clubes fundados no final do século XIX e início do XX. Foi um grupo de homens que se reuniu de forma oficial para praticar aquele esporte que era moda na virada do século, o futebol.

Mas diferentemente do que o nome do clube sugere, o St. Pauli é muito mais antigo. Alguns anos antes de sua origem como uma entidade exclusivamente de futebol, em 1907, a agremiação St. Pauli Turnvereins von 1862 que congregava a prática de vários esportes, decidiu colocar em seu quadro de atividades o futebol. Dentro do St. Pauli Turnvereins o futebol era apenas mais um esporte. Três anos depois o St. Pauli Turnvereins já tinha seus jogadores reconhecidos pela Associação do Norte da Alemanha de Futebol. Já em 1911, passou a participar das primeiras competições. Foi só em 1924 que o futebol se separou definitivamente do St. Pauli Turnvereins para formar o Fußball-Club Sankt Pauli von 1910.

Nos primeiros anos do clube, o St. Pauli sobreviveu na precariedade. Em 1933 conseguiu uma promoção para a 1ª divisão, mas sua permanência na elite do futebol alemão não durou muito. Com o início da II Guerra Mundial, o St. Pauli entrou em um hiato.

Com o fim da guerra, St. Pauli precisava se reestruturar, o clube teve seu estádio e sua sede social destruídos. Todavia, a reconstrução começou pela sede social, a reconstrução do estádio ficou para mais tarde. Mas não demorou muito, em 1947, o St. Pauli estava minimamente reestruturado, com sua sede e o seu estádio reconstruídos.

Em campo, o St. Pauli não era um sucesso futebolístico. Assim como fora antes da guerra, o clube brigava ora contra o rebaixamento ora para a promoção para a 1ª divisão, apenas em algumas temporadas conseguia disputar títulos, figurando entre os primeiros colocados. Comemorar títulos era uma coisa rara na vida de um torcedor do St. Pauli, e estar na 2ª divisão era comum. Mas apesar do fraco desempenho em campo, o clube possuía uma grande adesão de torcedores, principalmente na cidade de Hamburgo.

Passados 14 anos da construção do estádio, o St. Pauli resolveu mudar de casa. Em 1961 teve início a construção do seu novo estádio. A escolha do local foi o Heiligengeistfeld, um pequeno distrito no subúrbio da cidade de Hamburgo. O bairro escolhido para a segunda casa do St. Pauli era considerado uma parte obscura da cidade, onde se podia encontrar boa parte dos excluídos socialmente. Em meio a prostíbulos, sex shop e boates, o clube começou a construção do seu novo estádio. Além de ser considerado o Red Light District, o bairro era reduto de neonazistas e punks.

Três anos depois, St. Pauli inaugurou o seu novo estádio, o Millerntor-Stadion. Com capacidade para 20 mil pessoas o clube passou a mandar o seus jogos em sua nova casa. O pequeno distrito de Heiligengeistfeld, que era frequentado apenas por aqueles que eram marginalizados pela sociedade, passou a ver com frequência torcedores do St. Pauli. Aos poucos os torcedores foram se acostumando com o novo estádio e com o novo bairro, assim como o bairro foi se acostumando com a presença da torcida do St. Pauli.

Como havia acontecido no pós-guerra, em campo o St. Pauli não era um sucesso futebolístico, mas ainda assim o número de torcedores crescia. A adesão dos frequentadores do bairro foi rápida. Alguns anos depois da construção do Millerntor-Stadion, era possível identificar grupos de punks e neonazistas disputando espaço nas arquibancadas.

Na década de 1980, o St. Pauli mudaria a sua imagem, passando de um clube tradicional de bairro, para um clube de torcedores para torcedores. Nos primeiros anos daquela década, o St. Pauli entrou em uma crise financeira, e foi ameaçado de fechar. Diante dessa situação, a torcida se reuniu para salvar o clube. Em conjunto com os operários e artistas do bairro, a ala punk da torcida se reuniu para levantar fundos para o St. Pauli. O papel dos torcedores foi fundamental para evitar um fim trágico, e o papel dos punks nesse processo foi fundamental para a definição política do St. Pauli.

Sob o comando da torcida, o clube retornou à Bundesliga Alemã (1ª divisão), em 1988. Além disso, St. Pauli viu a sua torcida crescer mais, atingindo uma média de público de 20 mil torcedores por jogo. Diante do sucesso crescente, os dirigentes do St. Pauli perceberam a importância da torcida para a manutenção da vida cotidiana do clube, e passaram a se reunir com a torcida. Aos poucos o St. Pauli passou a ser dos torcedores para os torcedores.

De volta à 2ª divisão, as mudanças no clube continuaram. Em 1990, St. Pauli reformulou o seu estatuto, uma das definições foi expulsar a ala neonazista da torcida. Assim, o St. Pauli foi o primeiro clube alemão a banir neonazista de sua torcida.

As mudanças profundas na definição política do St. Pauli se devem aos punks e sua ideologia anarquista, mas também a setores da esquerda (como os comunistas), que passaram a enxergar a experiência do St. Pauli com bons olhos. Anarquistas e comunistas passaram a frequentar não só as arquibancadas, mas também a direção do clube.

Ilustração: Felipe de Leonardo – felipedeleonardo.com.

No final dos anos 1990, já era possível ver nas arquibancadas manifestações contrárias ao neonazismo e ao racismo. Enquanto que na direção, um travesti presidia o clube e levantava a bandeira contra o sexíssimo e contra a homofobia. Além de pensar as contradições sociais, a torcida passou a questionar as contradições do futebol. Por volta dos anos 2000, a torcida passou a questionar o futebol mercantilizado.

O futebol moderno que surgiu no final da década de 1990 acentuou ainda mais a distância de um pequeno e tradicional clube de bairro (como o St. Pauli), em relação a um grande e rico (como o FC Bayern München). Ao poucos, a torcida começou a discutir esse futebol mercantilizado.

A torcida passou a questionar a exploração publicitária em seu estádio, propagandas que iam de encontro à ideologia defendida pelo clube. Assim, o St. Pauli foi se posicionando contra o e futebol moderno, e transformando em um dos maiores exemplos de resistência no futebol.

Em 2012, o então vice-presidente do St. Pauli, George Bernd, definiu a importância da torcida para o clube, afirmando que o St. Pauli era efetivamente dos torcedores, e não de um único dono cheio de dinheiro. Para Bernd, o St. Pauli é possuí mais de 15 mil sócios-proprietários.

De fato, o maior patrimônio do St. Pauli é a sua torcida e depois o seu estádio. Enquanto alguns clubes se orgulham dos títulos conquistados e de um passado glorioso – a maior título conquistado pelo St. Pauli foi o de campeão da 3ª divisão –, o St. Pauli se orgulha de sua torcida, que o salvou de ser extinto e mudou os seus rumos.

Em um dia de jogo, nas arquibancadas do Millerntor-Stadion é possível ler em letras garrafais Kein Fußball den Faschisten (“Sem futebol para fascista”), é possível ver a bandeira anarquista e a bandeira LGBT, além de ouvir os gritos da torcida contra o fascismo, mas também contra o futebol moderno.

* * *

Chegamos ao final da série Contra o Futebol Moderno. Após passarmos por quatro textos, observando em detalhe as experiências de três clubes – Clube Atlético Juventus, FC United of Manchester e FC St. Pauli – podemos fazer algumas considerações sobre o movimento contra o futebol moderno. A partir dos três exemplos vistos, é possível dizer que é um movimento primordialmente das arquibancadas, isto é, dos torcedores. Assim, o papel do estádio é fundamental para esse grupo de torcedores se manifestarem. Os clubes em que esse movimento tem força são na maioria das vezes de pequenos e de médio porte, e alguns deles jogando as divisões inferiores.

Também se deve considerar que ao se colocarem “Contra o futebol moderno”, defendendo as tradições dos clubes, os torcedores podem ser vistos como conservadores. Mas dentro da lógica mercantil do futebol globalizado ser contra esse modelo imposto, propondo vias alternativas, é uma atitude revolucionária.

Por fim, por mais que os clubes queiram se inserir na lógica mercantil do futebol globalizado, os dirigentes devem ter sempre em mente que a torcida é o maior patrimônio que um clube pode ter. Os torcedores são maiores que qualquer investidor ou dirigente, maiores que qualquer quantia em dinheiro, maiores que qualquer patrocínio na camisa. Assim, antes mesmo de tratar os torcedores como consumidores, os dirigentes devem tratar os torcedores como torcedores.

Esse texto foi originalmente publicado no blog O Campo e cedido para publicação nesse espaço.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Contra o Futebol Moderno – 4# FC St. Pauli. Ludopédio, São Paulo, v. 62, n. 7, 2014.
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