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Conversando com ex-jogadores da Seleção: Antônio Wilson Honório (Coutinho)

São Paulo, Museu do Futebol.

Depoimento de Antônio Wilson Honório (Coutinho).

Gravado no Museu do Futebol, a 13.08.2011.

Tempo de duração: 1h50min.

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Coutinho com Clarissa Batalha na entrevista realizado no Museu do Futebol. Foto: Museu do Futebol.

O depoimento de Coutinho foi gravado uma semana depois da entrevista concedida por Pepe. Como ambos foram jogadores do mesmo time, o Santos F. C., com alguns anos de intervalo entre um e outro, a sequência de gravações foi bastante estimulante para reflexões comparativas. Antes de tecer comparações entre Coutinho e Pepe, cumpre assinalar um dado mais geral do conjunto de entrevistas: a origem dos jogadores. Não especificamente a origem social, mas aquela que diz respeito à procedência ou à região de nascimento de cada um deles.

Durante os anos 1980, de maneira mais precisa, a partir da Copa de 1986, a diversidade de afiliações clubísticas dos jogadores se mostra mais forte entre os jogadores da Seleção Brasileira. Até então, a maioria dos atletas era recrutada dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo, o que se depreende da listagem dos convocados de cada Copa. Um ou dois jogadores vinham de clubes do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais ou, em menor frequência, do Nordeste. Isto fazia com que os clubes que estivessem em boa fase acabassem por servir de base ao plantel da Seleção brasileira.

Um dos exemplos mais notórios neste sentido foi o selecionado da Copa de 1950, cujo time-base era formado por oito atletas do Vasco da Gama, então alcunhado pela imprensa como “Expresso da Vitória”. Nas décadas seguintes, Santos e Botafogo conformariam várias das equipes que representariam a vitoriosa camisa verde e amarela, com os títulos de 1958 e 1962.

O ponto que se quer chegar com esse preâmbulo é o lugar de origem dos jogadores. Com base no levantamento dos jogadores que disputaram as Copas do Mundo, se averiguamos a lista entre os anos 1930 e 1980, é possível constatar uma incidência considerável de atletas nascidos no estado de São Paulo, em suas mais diversas regiões. Isto não impede que se observe a existência de jogadores nordestinos ou sulistas – a exemplo do pernambucano Ademir Menezes (Queixada), Mengálvio ou Ado (os dois últimos, catarinenses).

Se não se trata de naturais do estado, são frequentemente jogadores que irão migrar para cidades do interior paulista, ou mesmo para a capital, a fim de atuar em um clube de expressão regional que lhes permita ascender aos times mais afamados, como então era o Santos Futebol Clube. Enquanto o Rio de Janeiro recebe jogadores em função de sua centralidade política e cultural – há autores que falam em “capitalidade”[1] – uma conjectura para a força econômica do futebol, dos clubes e dos jogadores de São Paulo, ainda não explorada em termos científicos, pode ser encontrada em sua própria história. Ela deriva da própria importância do desenvolvimento regional do estado desde o século XIX, com as fazendas de café do Oeste paulista.

No caso do ex-jogador Coutinho, trata-se de um caso típico de atleta com origem nas classes populares, egresso do interior de São Paulo. Ele consegue chegar projetar-se em um time local e, através dele, numa situação descrita como fortuita, alcança a “vitrine” do futebol profissional, radicando-se na cidade de Santos. A própria presença de grandes clubes nas cidades já foi um fator contributivo para a visibilidade dos jogadores locais. A narrativa de Coutinho vai confirmar esta observação, ao relembrar que o convite para fazer teste no Santos foi feito no intervalo de um jogo preliminar, onde atuava pelo time da cidade, antes da partida principal, disputada pela equipe santista.

 Diferente de Pepe, natural da cidade portuária, filho de espanhóis comerciantes e nascido em 1935, Coutinho nasceu em Piracicaba no ano de 1943. Provém de uma família de origem bastante humilde. Ligado à lavoura de cana de açúcar, desde os oito anos de idade, Coutinho ajudou o pai no trabalho. Mais tarde, até chegaria a concluir os estudos universitários, numa faculdade em Santos, mas isto ocorre apenas graças aos proventos auferidos com a carreira futebolística.

Ainda que muito se tenha ressaltado acerca da importância das fábricas têxteis na formação de jogadores no Brasil – Garrincha, Didi, entre outros – não é esse o caso de Coutinho, formado na “várzea” e nos pequenos clubes amadores locais.

Sua trajetória é elucidativa. O depoente afirma ter trabalhado em um “engenho central”. Mais tarde, prestou serviços em uma oficina mecânica. Diz que gostava de trabalhar e conta que estudava na parte da manhã – jogava bola no colégio – e trabalhava no turno da tarde. O futebol na infância foi vivenciado de maneira por assim dizer lúdica. Lembra-se de um álbum de figurinha que tinha, das permutas que fazia com outros colegas para completá-lo. Pegava dinheiro escondido da mãe para comprar o álbum e, quando o completou, ganhou uma bola de futebol.

Entre doze e treze anos, iniciou-se no futebol e atuou em uma pequena agremiação clubística, chamada Palmeirinha do Bairro Alto. Como este, havia vários outros clubes amadores na cidade. A grande referência da cidade, no entanto, era o time do XV de Piracicaba, que tinha uma equipe profissional e que, durante anos, disputou a primeira divisão do Campeonato Paulista.

Um aspecto ressaltado em vários depoimentos – e no de Coutinho também – foi a visão negativa que existia do jogador de futebol, razão pela qual, a família do jogador também era contrária à sua vontade de ser um futebolista. Jogador de futebol costumava ser tachado de “vagabundo”, era, em suas palavras, um “marginalizado”. Por isto, os pais preferiam que ele estudasse. Recorda-se que foi estudar e fazer as lições “na marra”, ou seja, obrigado pelo pai e pela mãe.

Instado a responder sobre Copas do Mundo, assegura não ter nenhuma lembrança de 1950. Tinha então apenas sete anos de idade. Um dado curioso para uma “história da vida privada” é trazido por ele: em sua casa era proibido ouvir rádio. Não explica se há algum fator religioso ou econômico para tal prescrição, apenas deixa no ar esta informação, que parece intrigante após a chamada “Era do Rádio”. Isto decorria do fato de estarem em uma cidade do interior? A questão fica em aberto e, quando da entrevista, não houve possibilidade de aprofundamento.

Quanto ao Mundial de 1954, considera que a Copa também lhe passou despercebida, pois mal completava 11 anos. Em suas recordações, só a partir de 1957 as coisas foram “clareando” para ele. Hoje está “tudo claro”, afirma ele categórico, pois “leu, viu teipes”.

Como o depoente não se atém a cronologias ou a linhas do tempo, ao tratar de Seleção Brasileira, Coutinho imediatamente discorre seus juízos de valor sobre “o presente” do selecionado nacional. A seu juízo, no momento atual, há um retrocesso, pois ninguém mais comenta em seu cotidiano sobre a Seleção. Numa chave que lembra a “retórica da perda” – apontada pelo antropólogo José Reginaldo Gonçalves[2], acerca dos discursos sobre patrimônio cultural –, a fala de Coutinho acerca do futebol brasileiro contemporâneo sentencia: “perdeu muito a identidade. O torcedor se interessa pelo jogador do seu clube. Esse é o problema… muitos jogadores de fora, sem identificação”.

Outro elemento mnemônico importante a ser destacado no curso do depoimento de Coutinho é a lembrança da Copa de 1958. Ao ser perguntado sobre o que se recorda da mesma, diz que daquela se lembra porque já havia televisão. Tal recordação possibilita a ponderação de que, mais do que a idade, foi a presença imagética – ou de um novo aparato comunicacional – o fator acionador da memória.

Embora à época a televisão não estivesse disseminada nos lares, nem fosse um objeto tão familiar, suas imagens permitem com que Coutinho seja capaz de descrever em que local exato se encontrava no momento decisivo. Este ponto também fica em questão, uma vez que não é aprofundada ou comparada a interdição do rádio em relação à assistência da televisão: teria havido resistência à entrada da televisão?

Nos relatos de muitos jogadores, o ingresso na carreira futebolística sempre depende de aspectos imponderáveis. Não basta apenas o dom e sua “lapidação”, para usar o sentido antropológico explorado por Arlei Damo em seu trabalho sobre a formação profissional de futebolistas[3]. Há elementos como a ausência de um jogador num treino, a presença de um “olheiro”, a contusão de um titular que instauram realidades em princípio improváveis ou não realizáveis.

No caso de Coutinho, sua permanência na categoria Juvenil do Santos deveu-se ao técnico do time principal, Lula. Recorda-se dos treinos e dos elogios recebidos na ocasião, ficando conhecido internamente como o “neguinho de Piracicaba”. Ficou marcado em sua memória que, após treinar e regressar à sua cidade natal, foi resgatado por um carro do Santos, quando desembarcava em Piracicaba. O fato de ser um jogador que vinha de fora fê-lo receber salário precocemente. Já com 15 anos recebia por mês.

Pouco depois, conseguiu levar a família com ele para a cidade de Santos. De início morou no clube, onde viviam também Dorval, Pelé, Dalmo, Ciro, Afonsinho, entre outros jogadores. Para que se tenha dimensão da simplicidade do futebol naquele tempo, frisa o depoente, Pelé, mesmo depois, quando voltou consagrado da Copa de 1958, continuou a morar no alojamento coletivo do clube, junto com ele e os demais colegas do grupo.

A sua afirmação no time principal ocorreu em 1957. Fixou-se na posição de centroavante, sendo conhecido por marcar gols. Sempre sublinhando o caráter aleatório e casual de sua entrada no time, Coutinho diz que ocupou o lugar do Pagão, nas vezes em que este se machucava. Reconhecido como um extraordinário jogador, algo também apontado por Pepe, Pagão fazia uma dupla com Pelé e tinha uma outra estratégia de jogo: enquanto Pagão vinha de trás e Pelé ficava na frente, com ele, Coutinho, a situação se inverteu. E este entrosamento com Pelé contribuiu muito para conquistar a vaga, pois os dois se entendiam muito bem.

Interpelado sobre o condicionamento físico da época, afirma que havia treinos no seu tempo, embora num grau menor de sofisticação e em menos quantidade do que hoje. Considerava excessivo o número de viagens que faziam e, por isto, não tinham tempo para treinar. Isto era de praxe entre os times brasileiros, mas, em função do sucesso, o Santos era mais requisitado. Algumas excursões chegavam a durar dois meses na “América”. Lembra-se de uma ao Chile, que durou um mês, período em que jogou contra o Universidade do Chile, Colo-Colo e o Universidade Católica. Em seu entendimento, o Santos divulgou muito o futebol brasileiro no exterior. Eram queridos pelo mundo afora. O pivô de tal sucesso foi Pelé, em função de sua idade e de seu comportamento em campo.

Uma vez firmado no Santos, a primeira convocação ocorreu em 1959. Lembra-se de uma briga numa disputa da Copa Roca. Ainda na reserva, Coutinho entrou no lugar do Almir Pernambuquinho, responsável pela confusão em campo. Afirmando-se no Selecionado, foi convocado para a Copa de 1962, mas teve o mesmo destino de Pepe, impedido de jogar em razão de uma contusão. Para quem havia jogado todos os amistosos, tratou-se de uma grande frustração.

É possível perceber um certo ressentimento pela falta de “sorte” na Seleção, algo que também pode ser percebido no depoimento de Pepe, seu colega do Santos. Descreve um relato muito semelhante ao de José Macia: o tratamento médico inadequado por parte da Comissão Médica deixou-o com o joelho queimado, o que considera uma falha em potencial dos supervisores. Ainda em tom de crítica, afirma que “era tudo na base do ferro e do fogo”. Lembra de os médicos terem colocado sua perna no forno, sem que conseguisse se recuperar.

Dentre as lembranças evocadas sobre a Copa de 1962, o entrevistado refere-se à concentração em Campos do Jordão, 25 dias antes da Taça se iniciar. Chegaram ao Chile, mais precisamente a Viña Del Mar, uma semana antes do início. Recorda-se do ambiente de brincadeira e de descontração entre os atletas. Qualifica o ambiente de “sincero”. Isto permaneceu ao longo do torneio e isto não impedia que julgasse o “time bem adulto”.

Lembra-se do jogo contra o México, que considerou fácil, e da partida contra a Inglaterra, que lhe pareceu bem difícil. Nas suas lembranças, um jogo “complicado” ocorreu contra a Tchecoslováquia, vencido graças ao goleiro tcheco, que falhou na final. Há uma convenção entre os jornalistas, que parece ser repetida pelos atletas. Trata-se da ideia de que há determinados jogos cuja vitória se deve a uma única pessoa[4].

No caso de 1962, o jogo contra a Espanha, ganho de virada, foi creditado a Amarildo, que, segundo Coutinho, “se deu bem” e tornou-se titular a partir daí. Para Coutinho, aquela seria “a sua Copa”, daí a sensação de que ela foi tão frustrante para ele.

As circunstâncias que o afastaram dos jogos têm uma consequência no depoimento. A ausência de Coutinho dos gramados faz com que a narrativa sobre as Copas do Mundo empalideça frente à narrativa clubística. Ou seja, destaca mais o Santos nas ocasiões em que este triunfou. Lembra-se que, ao jogar no Maracanã pelo Mundial de clubes em 1962 e 1963, sentia que aquele era o “palco que a gente gostava”. “Contra o Milan foi a coisa mais bonita que ele já viu”, afirma, em referência ao apoio dos torcedores do Rio para os jogadores santistas, quando o time brasileiro sagrou-se Campeão do Mundo.

Ao contrário da maioria dos jogadores que o precederam nos depoimentos, o fim da carreira não procura ser mitificado. Quer isto dizer que as circunstâncias de seu encerramento não procuraram ser glamourizadas. O depoente afirma que as sucessivas contusões o indispuseram para a prática futebolística. Sem uma “metanarrativa” que justifique a decisão de parar ante o desejo de jogar na Seleção, afirma que simplesmente cansou de atuar. Passou a não aceitar mais as convocações.

Nesse sentido, parece sintomático o fato de não ter se transformado em treinador de times profissionais ou de grandes clubes. A conversão em técnico foi um aspecto tratado em todas as experiências das entrevistas anteriores. Trata-se quase de uma maneira de o personagem continuar a existir naquele meio, uma forma de permanecer em evidência. O desencanto com o universo do futebol, expresso num certo tom de desprezo que parece manifestar, faz do relato de Coutinho um depoimento diferenciado no conjunto investigado.

[1] Ver as historiadoras Margarida de Souza Neves e Marly Motta.

[2] Cf. GONÇALVES, J. R. dos S. “A retórica da perda”. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002.

[3] Cf. DAMO, A. “Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França”. São Paulo: Aderaldo & Rothshild Editores, 2007.

[4] A título de exemplo, veja-se a enciclopédia do jornal O Lance sobre a história das copas, onde tal característica pode ser identificada em diferentes passagens.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Conversando com ex-jogadores da Seleção: Antônio Wilson Honório (Coutinho). Ludopédio, São Paulo, v. 90, n. 4, 2016.
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