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Conversando com ex-jogadores da Seleção: José Macia (Pepe)

São Paulo, Museu do Futebol.

Depoimento de José Macia (Pepe).

Gravado no Museu do Futebol, a 05.08.2011.

Tempo de duração: 2h40min.

pepe
Pepe durante a entrevista. Foto: Museu do Futebol.

A gravação do depoimento de José Macia, o Pepe, ex-jogador do Santos Futebol Clube, foi feita uma semana antes da entrevista concedida por Coutinho (13.08). O fato de ambos terem jogado no mesmo clube e de terem participado do ataque da Seleção Brasileira, em momento muito aproximado, favoreceu bastante a comparação das trajetórias e o aprofundamento das informações.

Tal coincidência se estende aos dias de hoje, pois os dois jogadores continuam a residir na cidade de Santos. Pode-se dizer que ainda sentem a atmosfera de ligação com o clube quando eram jogadores. São reconhecidos pelos torcedores santistas e entrevistados pela imprensa local, em especial num momento de sucesso do time, que atravessa uma boa fase, depois da conquista da Taça Libertadores da América. A expectativa para o final do ano, quando a equipe disputará o Torneio Mundial interclubes, é compartilhada tanto por Coutinho quanto por Pepe, que conquistou um bicampeonato nas suas primeiras edições (1962 e 1963).

Se há diferença entre Pepe e o depoente que o antecedeu é o fato do primeiro mostrar-se mais aberto para a entrevista. Enquanto Coutinho vai ser mais sucinto nas respostas – o que pode ser percebido no tempo de duração de cada uma das entrevistas, demonstrando menos paciência e menos disposição para a fala –, Pepe mostrava-se mais à vontade para discorrer sobre sua vida, ao longo das quase três horas de gravação.

Outra diferença consistiu no fato de Pepe ser “filho da terra”. Nascido na cidade portuária, no ano de 1935, sua origem local aumenta ainda mais o vínculo afetivo com o clube e com a região. Filho de um dono de mercearia, localizada na vila de São Vicente, Pepe tem ascendência espanhola, de parte materna e paterna. O pai e a mãe se conheceram no Brasil depois de emigrar de uma província da Espanha, próxima a Vigo.

Não conheceu os avós, que ficaram na Espanha, mas conta, com alegria, da excursão do time do Santos à La Coruña, quando primos e tios foram vê-lo jogar no estádio. Emocionado, diz que os parentes o procuraram e levaram-no ao povoado em que residia sua avó materna, a seis horas de carro, ocasião na qual pode conhecê-la.

No relato, conta que a “aptidão para futebolista” revelou-se cedo, nos campos de areia da vila de São Vicente, desde os seis anos de idade. Chamava o terreno de jogo de “areião” – campo de areia com traves improvisadas de bambu. Jogava o dia inteiro, até o pai ir chamá-lo quando anoitecia. Gostava de jogar na escola e todos comentavam sobre sua habilidade.

Relembra as brincadeiras de infância – pipa, bola de gude, balão – mas a bola de borracha foi aquela que sempre o acompanhou. Gostava não apenas de jogar, como de acompanhar futebol, que ouvia naqueles “radiões” da época. O pai era um espanhol, “bravo” e “disciplinador”, que torcia para o Jabaquara. Este clube, antes da Segunda Guerra mundial, chamava-se Espanha. O pai não ia a jogos em estádios, preferia ouvir pelo rádio. Na era da TV, nos anos 60, a mercearia foi um dos primeiros estabelecimentos a ter televisão. Em razão disto, acompanhavam da loja de vendas do pai as partidas do campeonato paulista.

Apesar de o pai apreciar futebol, um aspecto ressaltado por Pepe, e reiterado nos outros depoimentos, era a má imagem que tinha então o jogador de futebol. Seu pai não queria que ele jogasse bola, pois se tratava de uma atividade associada à malandragem. O jogador era visto como malandro, aquele não queria trabalhar nem estudar. Pepe reconhece não ter sido um bom aluno, pois apenas pensava no futebol. No entanto, recorda-se de sua professora de francês, da qual guarda boas recordações.

Junto a isso, havia o desejo paterno de que desse continuidade ao seu trabalho na mercearia, como vendedor, junto com o irmão Mario, que, por sua vez, depois veio a trabalhar nas Docas de Santos.

Sua lembrança mais remota de Copa do Mundo remete à de 1950, no Brasil. Tinha quinze anos de idade e, como gostava muito de futebol, lembra-se de já ter acompanhado o Sul-Americano de 1949 pelo rádio. Considerava as transmissões radiofônicas mais emocionantes que a televisão. No rádio, a pessoa precisa imaginar o jogo… Assistiam pelo rádio juntos, em grupos de dez, doze pessoas.

Mas em 1950, no jogo final contra os uruguaios, Pepe lembra-se de estar jogando bola no “areião”. A cada gol do Uruguai ou do Brasil, algum amigo ia comunicar. Define seu sentimento naquele momento através do termo uma “mini-tristeza”, para expressar o que sentiu quando soube da derrota. A escala reduzida da expressão dizia respeito ao fato de não ter ainda noção da dimensão trágica que ganhou depois aquele jogo para o país.

Pepe afirma que sua vontade era, desde cedo, ser profissional de futebol, apesar dos preconceitos que existiam. Era o seu “sonho”. Um de seus ídolos foi Canhotinho, do Palmeiras, em quem se inspirou muito. Ia assistir aos seus jogos na Vila Belmiro. Admirava a geração “extraordinária” de jogadores dos idos de 50, como Zizinho – “o Pelé da época”, como diz –, Danilo e Jair da Rosa Pinto.

Na sequência da narrativa, diz que firmou-se no time do Continental – time da ilha de São Vicente, fusão de dois clubes rivais, o Comercial e o Vila Melo – e foi fazer um teste na Vila Belmiro, junto com Cobrinha e outros jogadores. Começou no Infantil e depois ascendeu nas categorias de base até os profissionais, com 19 anos. O técnico chamava-se Lula e havia jogadores como Del Vechio e Pagão. Sua primeira convocação para a Seleção ocorreu em 1956, para disputar uma partida na Argentina. Quando se apercebeu de que jogava ao lado do grande ídolo Zizinho, exclamou: “meu Deus, que coisa!”.

Embora não tenha participado da Copa de 1954, pois contava dezenove anos e estava em vias de se profissionalizar, recorda-se da forma de atuar do time brasileiro, comandado por Zezé Moreira. Acentua o estilo defensivo do treinador. Ressalta sua inteligência, mas achava-o por demais marcador. Do seu ponto de vista, em 54 o time não jogou bem. Não chegou a ser uma grande decepção, pois faltavam recursos televisivos como os de hoje para avaliar o desempenho dos jogadores. Fato importante é que assistia das salas de cinema aos jogos da Seleção. Anos depois, pelo Santos, veio a enfrentar o Puskas, o craque húngaro que jogava no Real Madrid.

Uma vez firmado como profissional em 1955, sua entrada no Santos coincidiu com uma grande fase do clube, que se prolongou por quinze anos. Já em 55, ele fez o gol do título paulista, num jogo “extraordinário” contra o Taubaté, venceram por 7 a 6, vinte anos depois de o time da Vila Belmiro ter conquistado o último campeonato, em 1935. Considera o seu gol mais importante, pela dramaticidade do jogo.

O momento favorável levou-o à Seleção Brasileira, que tinha como técnico Flávio Costa, sendo sucedido por Oswaldo Brandão. Desde 1956, passou a ser convocado com frequência.

Lembra-se dos gols marcados no Campeonato Sul-Americano de 1957, quando o técnico era Osvaldo Brandão e, no meio-campo, tinha o Evaristo. Recorda-se especialmente de um 9 a 0 que aplicaram na Colômbia. Desde essa época, já era conhecido pela potência de seus chutes, sendo um ponta-esquerda que marcava gols.

Apesar das sucessivas convocatórias, ficava sempre surpreso e feliz com a possibilidade de representar a Seleção e de conhecer outros países, como Argentina e Uruguai. Depois, foi a vez da Europa, quando ocorreu a Copa da Suécia, em 1958. Dizia preferir jogar em países europeus a jogar na América do Sul. Em sua opinião, nos primeiros, havia menos deslealdade, o jogador europeu aceitava ser driblado sem revidar, ao passo que o sul-americano era mais violento.

Acentua a dificuldade de jogar nos anos 1960 nos campos da Argentina. Além da pressão da torcida, dentro e fora dos estádios, lembra que os gramados estavam sempre em mau estado de conservação, atrapalhando bastante a técnica dos jogadores brasileiros.

Graças ao futebol, como jogador e treinador, afirma ter conhecido mais de sessenta países. Relata o sentimento de orgulho ao ser convocado para a Seleção Brasileira. Conta que sua casa, primeiro ainda morando com seus pais, depois já com sua esposa, virava uma festa todas as vezes que era anunciada a sua convocação. Sentia-se recompensado em poder agradar os pais.

Na primeira convocação, estava de férias em Lindóia, quando soube, através de um telefonema vindo do clube, que seu nome estava na lista do técnico Flávio Costa. Como passou a ser constantemente chamado para a Seleção, teve dificuldade, durante o depoimento, de lembrar e/ou diferenciar os anos das convocações.

A particularidade das suas recordações na Seleção, em especial durante as Copas do Mundo, diz respeito aos percalços enfrentados pelo jogador, seja no torneio de 1958 seja no de 1962. Ao ser perguntado sobre as Copas, afirma não ter tido sorte: “Me é desconfortante falar sem ter jogado”.

Na Suécia e no Chile, Pepe iria se contundir na fase preparatória, o que o afastou da participação direta nas partidas, tendo sido substituído por Zagallo. Ainda que tenha integrado o elenco e vivenciado a experiência da vitória nas duas edições, colocando um termo na discussão sobre a incapacidade nacional para a conquista de títulos, seu ponto de vista é ressaltado por um sentimento de frustração com o afastamento do campo de jogo.

Em 1958, a contusão ocorreu no período de treinamentos, quando a equipe se preparava na Itália. Foram disputadas partidas com clubes de expressiva força nacional, como a Inter de Milão e a Fiorentina. Num desses jogos amistosos e preparatórios, Pepe levou um chute por trás e torceu o tornozelo. De nada adiantou o tratamento recebido pela comissão médica brasileira.

Ao contrário, destaca alguns métodos antiquados, como colocar toalha quente nas suas pernas. Conta que, ao regressar para o Santos, foi advertido pelos médicos do clube de que chegou a ficar com queimaduras de terceiro grau: “Fui torrado”. Na Suécia, o resultado foi ter de contentar-se com a condição de espectador, sem poder mesmo ter disputado a posição com Zagallo.

A disputa com Zagallo ocorreu nas duas Copas, embora em ambas Pepe não possa ter chegado a efetivamente disputar a posição. Diz que havia uma diferença considerável entre ele e Zagalo. Ela consistia no fato de os dois ocuparem a mesma posição, mas desempenharem funções diferentes: Pepe era um ponta-esquerda mais avançado, era veloz e forte, chutava em gol e era, por isto, artilheiro; Zagalo era um ponteiro mais recuado, que compunha com o meio de campo e que desempenhava um bom papel na meia cancha. Em contrapartida, não marcava tantos gols[1].

Assim, a escalação de um atleta ou outro, segundo seu raciocínio, não se dava em função da superioridade ou inferioridade dele ou do Zagalo, mas das opções táticas dos técnicos: na Copa de 58, o técnico era o Vicente Feola; na de 1962, foi Aimoré Moreira que, segundo Pepe, montava um esquema mais ofensivo, o que o favorecia. Nesta última edição, havia também o jogador Germano, do Flamengo, um “crioulinho saltitante”, ponta que jogava muito bem, mas que não chegou a ser convocado.

De todo o modo, em nenhuma das duas ocasiões, Pepe teve oportunidade concreta de disputar a posição, em virtude da contusão sofrida. Diz ter sofrido muito com isto, pois queria jogar “de qualquer jeito”.

Destarte, se suas reminiscências da Copa são marcadas por esse sentimento de frustração diante de sua limitação física, os comentários sobre a estrutura organizativa são mais objetivos. Pepe enfatiza a mudança na organização administrativa, que ocorreu com a chegada de Paulo Machado de Carvalho (“o marechal”), “grande chefe”, à chefia da delegação da Seleção, graças à sua nomeação por João Havelange, presidente da CBD. Segundo Pepe, Paulo Machado tratava todos muito bem, liberava-os nas folgas e, por causa disto, não houve problemas de indisciplina ou de relacionamentos. Lembra-se, no entanto, de Carlos Nascimento, um auxiliar de Paulo Machado, este sim que fazia “cara feia”, sendo bastante disciplinador.

Um bom indicador da maior infraestrutura da delegação na Copa de 1958 é uma lembrança de Pepe. Segundo o ex-jogador santista, “já se viam os filmes dos adversários do Brasil, antes dos jogos”. A possibilidade de preparar o time com base em informações imagéticas dos adversários é uma mostra do desenvolvimento da parte estratégica e do peso da comissão técnica na preparação da equipe.

Quanto às comemorações, salienta que ele próprio invadiu o campo em 1958, depois do final da partida, fazendo uma grande festa. Ressalta como os torcedores daquele país anfitrião, a Suécia, souberam se portar com muita disciplina diante do vice-campeonato e da derrota para o Brasil. O retorno ao país também foi destacado. No voo da volta, houve escala na Itália e já tinham pessoas festejando. Em Recife, a ovação também o impressionou e, em São Paulo, um carro de corpo de bombeiros conduziu os jogadores. Políticos da época se aproximavam dos jogadores, com o intuito de aparecer. Pelé, antes desconhecido, e Garrincha foram “beijados” e “sufocados”.

A gratificação pelo título não era grande, se comparada aos dias de hoje. Lembra-se de ter ganho uma bicicleta Caloi. Indústrias de doces presenteavam os jogadores com pacotes de bala e chicletes, como uma forma de fazer propaganda em cima do prestígio dos atletas. Conta que foram muitas as promessas que receberam na época. Em tom irônico, diz que já na Copa de 1962, a premiação melhorou: ele ganhou um carro fusca (“um fusquinha”). Ele, que não tinha nem carro, matriculou-se em uma autoescola e foi aprender a dirigir.

Algumas versões correntes sobre a Copa do Chile são ressaltadas. Pepe vale-se da expressão “a Copa do Garrincha”, usual entre os jornalistas[2], para caracterizar aquele torneio. Se Garrincha não fosse, diz Pepe, era “tchau e benção”. Lembra do jogo contra os tchecos, embora não deixe de reconhecer a importância de Amarildo, decisivo na partida contra a Espanha, vencida de virada. Em suas lembranças, a Seleção Brasileira daquele tempo era composta basicamente por jogadores do Botafogo e do Santos, o que tornava o ambiente de grande camaradagem.

Em retrospectiva, sua visão é bastante positiva de sua passagem pela Seleção. Afirma que jogou um total de quarenta partidas, tendo feito vinte e dois gols. Não obstante, em razão de sua ausência nas Copas, destaca mais lembranças a respeito de sua passagem no Santos, onde era conhecido pela alcunha de “Canhão da Vila”. O clube santista vai vivenciar nos anos 1950 e 1960 uma fase áurea, com sucessivas vitórias em escala regional, nacional e internacional, tendo como referências Pelé, Zito e Mengálvio, entre outros ex-atletas que também serão entrevistados nos quadros da presente Pesquisa.

A experiência como técnico – Qatar, Japão, Portugal, Peru – também é relembrada com destaque, uma vez que percorreu vários países e treinou em diversos clubes após o encerramento de sua carreira como jogador. A sua vivência é extensiva à família como um todo – mulher e filhos – que o acompanharam. Sua aprendizagem como treinador inspirou-se em cada um dos seus técnicos que teve no decorrer da carreira, como Lula, Aimoré e Feola.

No entanto, pondera que o treinador deve adequar-se à equipe que possui. O time deve ser armado com base nas características qualitativas do elenco. A partir disto, diz, define-se o caráter ofensivo ou defensivo. Em que pese toda a experiência internacional, ressalta sua passagem pela equipe da Inter de Limeira. Em 1986, à frente deste time, sagrou-se campeão paulista, sendo a primeira equipe do interior de São Paulo a conquistar um título em âmbito estadual.

Um aspecto importante, para a reflexão sobre o depoimento oral e o registro escrito, é o fato de Pepe, em período recente, ter escrito um livro de memórias, encomendado por uma editora, sobre sua carreira. Trata-se do livro autobiográfico “José Macia, Pepe – bombas de alegria: meio século de histórias do Canhão da Vila”. Um futuro cotejo entre as duas fontes pode auxiliar numa reflexão comparativo sobre a construção da memória em cada uma dessas maneiras de evocar e construir o passado.

[1] Deve-se lembrar, no entanto, que Zagalo marcou um dos gols da partida decisiva do Brasil contra a Suécia, em 1958.

[2] Cf. HEIZER, T. “O jogo bruto das Copas”. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Conversando com ex-jogadores da Seleção: José Macia (Pepe). Ludopédio, São Paulo, v. 89, n. 7, 2016.
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