119.8

Corinthiano até a morte

Plínio Labriola Negreiros 8 de maio de 2019

Entre as muitas histórias sobre as múltiplas emoções relacionados ao ato de torcer por uma equipe de futebol, há uma que sempre me vem à lembrança. Um torcedor corinthiano estabeleceu um ritual aparentemente estranho: em jogos decisivos do clube, durante a partida, saía com seu automóvel e trafegava por quase duas horas escutando música em alto volume, a partir de fitas-cassetes e nunca por meio do rádio. Apenas tomava conhecimento do resultado da partida algum tempo depois. Tal procedimento decorria de uma história trágica. Quando menino, tal torcedor teve seu pai morto, nos seus braços, quando os dois viam, no estádio, o Corinthians jogar. Mortes em campos de futebol talvez sejam menos raras do que possamos imaginar. Isso vem desde as origens do futebol?

Com o intuito de esboçar uma resposta, reproduzo uma pequena notícia de jornal, publicada no dia 22 de abril de 1918, uma segunda-feira, no Diario Español, então o único periódico diário em castelhano publicado no Brasil e produzido na cidade de tantos estrangeiros, com forte presença dos espanhóis.

Capa do Diario Español de 22 abr. 1918. Foto: Plínio Labriola Negreiros.

 

Lamentable desgracia

Ayer por la tarde, en el campo del Esport Club de los Corinthians, sito em Puente Grande, falleció repentinamente nuestro excelente compatriota Castor Espinosa, joven de 25 años, casado, empleado de la importante casa comercial de esta capital Ortiz & Comp.

Motivó tan lamentable acidente el entusiasmo de que de hallava poseído Castor, al ver que Corinthians ganaba la partida que se disputava, en la que alcanzó colossal triunfo.

Puedo comprenderse la emoción de que se hallava poseído si se tiene em conta que Castor Espinosa era uno de los más entusiastas elementos de la mencionada asociación.

La inesperada morte, en tales circunstancias, causó profunda impresión.

Castor Espinosa gozaba de grandes simpatias.

El enterro de sus restos se efectuará esta tarde, á las 4, y será uma gran manifestación de duelo.

El cadáver se halla expuesto en la casa de finado, villa Godinho, n. 15.

La bandera del Corinthians, ordea en funeral, como senal de duelo.

Nuestros más sentidos pésames á la família del finado, al proprietário de la casa en que prestaba sus servicios D. Manuel Ortiz, y a al S. C. Corinthians, del que forma parte numerosos españoles.

Há cem anos, no que se tornou o primeiro estádio efetivo do Corinthians Paulista – o primeiro campo, o do Lenheiro, cumpriu mais um papel de espaço de treinamento e de partidas do futebol varzeano –, o da Ponte Grande, em terreno concedido pelo poder público municipal paulistano, foi inaugurado em março de 1918. O gramado do primeiro estádio corinthiano contou com o trabalho dos jogadores e dos sócios. Foi o estádio corinthiano até a inauguração do Parque São Jorge, em 1928.

Segundo informa o Almanaque do Corinthians, de Celso Unzelte[i], no dia 21 de abril, um domingo, a partida foi contra o Ypiranga, o clube fundado no Bom Retiro venceu por 3 a 0, com tentos de Jacyntho, Bororó e Neco. Mas, é citado como local da partida o estádio da Floresta, que ficava na mesma região da Ponte Grande. É possível que o periódico, que não era especializado em esportes, tenha feito confusão. Talvez confirme o equívoco do periódico dos espanhóis o fato de que, no segundo turno do campeonato Paulista de 1918, a partida contra o Ypiranga se realizou na Ponte Grande. Ou seja, a partida em análise teve mando do Ypiranga, por isso deve ter sido realizada na Floresta. Mas, a questão central é morte do jovem espanhol Castor Espinosa.

Sabemos que se tratava de uma pessoa casada e funcionária de uma empresa ligada ao comércio e dirigida por cidadão espanhol, o sr. Manuel Ortiz, importante liderança da comunidade espanhola em São Paulo. Além disso, Castor Espinosa era conhecido pela sua forte ligação ao Corinthians. Provavelmente um sócio. Essa condição poderia significar também praticante de algum esporte e ser torcedor. Na notícia, é apresentado como um torcedor bem entusiasta.

Uma rápida leitura das outras poucas edições disponíveis para consulta do Diario Español mostra menos preocupação com o futebol e as outras atividades esportivas e muita atenção a todas as questões que envolviam os espanhóis no estado de São Paulo e em outras regiões brasileiras. Ou seja, o que estava em jogo era ligação dos espanhóis com o Corinthians Paulista. Era uma presença importante desde a fundação em 1910, mas é provável uma acentuada presença dessa nacionalidade quando parte da comunidade italiana vinculada ao Corinthians migra para o Palestra Itália, fundado em agosto de 1914. Em alguns momentos, matérias, notícias e notas reforçam as ligações entre o Corinthians e os espanhóis. Interessante como o clube do estádio da Ponte Grande não é tratado como um clube de espanhóis, mas como um clube com a forte presença desse grupo nacional, mas com marcante presença de outras nacionalidades. Ainda no Diario Español, uma informação relevante sobre o “clube dos pretos e dos espanhóis”, conforme publicação de 25 de outubro de 1918:

El popular Club Corinthians, dedicado ao “foot-ball”, compuesto em su casi totalidade de obreiros, ha abierto una subscripción a favor de la Cruz Roja Brasileña.

Aponta-se para duas questões importantes: o recorte social do clube e a solidariedade corinthiana com as vítimas da terrível epidemia de gripe espanhola, que atingiu São Paulo de forma avassaladora. Os seus efeitos obrigaram a uma paralisação de dois meses no Campeonato Paulista.

Paralela à articulação Corinthians-espanhóis, há um torcedor apaixonado. A extrema emoção foi fatal. Seria ele o primeiro dos corinthianos a morrer por conta dessa emoção? As outras agremiações esportivas da cidade também já tinham seus representantes nesta lista mórbida, mas reveladora de uma paixão imensa? Na memória corinthiana existem muitos exemplos da paixão que deriva para a morte. Na considerada primeira invasão corinthiana, realizada para a cidade de Santos, litoral paulista, no início de 1931, milhares de torcedores acompanharam a goleada corinthiana em cima do Santos e a conquista do tricampeonato paulista, o segundo do já alvinegro do Parque São Jorge. Das estações de trem do Brás e da Luz, foram 80 vagões lotados de torcedores. Há relatos de que, na volta, como forma de comemoração, muitos voltaram sem camisa no alto dos vagões, o que resultou em muitas mortes por pneumonia e tuberculose. Na outra invasão, a de 1976 ao Rio de Janeiro, muitos acidentes nas estradas que levavam ao Maracanã e algumas mortes. Estas, de várias formas, se associam ao torcedor apaixonado.

Plano funerário do Corinthians foi lançado em 2013. Foto Divulgação.

Por fim, é necessário destacar algum muito comum hoje, mas talvez bem raro há um século: a presença da bandeira do Corinthians no velório do jovem comerciário espanhol. O que hoje já se tornou objeto de mercantilização, vide funerais e homenagens póstumas organizados por alguns clubes, era a essência de uma paixão que havia tomado conta dos espaços urbanos. Que servia como uma ferramenta para re-enraizar inúmeros sujeitos expulsos dos seus territórios. O clube esportivo, especialmente ligado ao futebol, às devoções de santos das regiões de origem, entre outros mecanismos, deixava menos dura a vida em uma cidade que oferecia privilégios para uma minoria e minguados direitos para a massa de trabalhadores.


[i] Em uma conversa, o jornalista Celso Unzelte apresentou-me a riqueza do Diario Español por comprovar as ligações do Corinthians com a comunidade espanhola em São Paulo. Assim como me alertou para um olhar atento para os periódicos da comunidade italiana, inclusive por revelarem a rivalidade entre as equipes do Corinthians e do Palestra Itália. Celso, obrigado pela dica.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Corinthiano até a morte. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 8, 2019.
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