Corpos nos gramados, papelões nas arquibancadas
Agora que muitos decidiram que sairão de casa porque já não aguentam mais, e que a hashtag #ficaemcasa já não funciona como antes, CBF, federações e clubes deliberaram, arbitrariamente, que também é hora de voltar.
Em tempos de futebol neoliberal, nos quais a inovação é um dos imperativos em quase qualquer contexto de trabalho, é irônico, porém já esperado, que clubes estejam levantando discursos pela conservação do que é “inconservável”: as formas anteriores de pensar o futebol e seus negócios.
Seguindo a tendência da modernização conservadora nesse âmbito, planos de torcedores digitais são lançados como uma das alternativas para suprir a ausência de renda da bilheteria. Com isso, o discurso do engajamento de torcedores em atos de consumo como forma de participação é levantado, mais uma vez. E assim, a utopia da torcida fiel contribuinte, que financia parte das despesas, mas não se envolve nas questões políticas do clube, vai se tornando cada vez mais concreta (ou de papelão, quem sabe, em breve, holográfica).
No caso belo-horizontino, que, como em outras localidades, acompanha a tendência de alguns dos principais centros esportivo-econômicos do futebol no planeta, tentando simular alguma experiência de “normalidade” entre torcida e clube/jogadores, algumas “alternativas” já vêm sendo implementadas. O Atlético está cobrando 130 reais para colocar o seu boneco personalizado na arquibancada. O América oferece o Torcedor Digital no telão do Independência. E o Cruzeiro, para o qual já era urgente pensar uma perspectiva de recuperação do clube, mesmo sem pandemia, também vende seus ingressos virtuais.

Mas a quem contempla ou conforta a presença dos torcedores/as de papelão e digitais? Será uma mera “venda de indulgências” na qual torcedores/as compram o seu lugarzinho no céu estádio? Não sei. Mas há, ao menos, um efeito importante a se pensar nessa efetiva e sanitariamente “justificada” substituição de torcedores/as nas arquibancadas – a radicalização da ideia da transformação de torcedores/as em consumidores/as, que se fazem presentes nos jogos em formas mais controláveis e pacíficas.
Por outro lado, essas supostas soluções não parecem ser pensadas para preservar a vida de jogadores e outros trabalhadores, dos quais se cobra que estejam sempre inovando, se arriscando e sorrindo (de máscara), como se nada mais pudesse ser feito. Nem clubes, nem federações e nem a mídia especializada de grande porte parecem interessadas em debater esse “elefante na sala”. Questões que nos levem a pensar em alternativas para que jogadores, técnicos e outros trabalhadores fiquem em casa, e para que jornalistas não precisem anunciar a morte de colegas em meio aos gols da rodada.
Em um outro lado da história, nessa volta aos gramados, há certas incertezas por parte de torcedores/as, em meio a sentimentos ambíguos em relação às partidas de seus clubes. Se não demonstrarem que estavam sentindo falta, podem ser considerados, por si mesmos/as ou por outros/as, como menos torcedores. E aí, de forma mais ou menos conscientizada, comemoram gols nas redes sociais e se desculpam em seguida. Num misto de quererem expressar sua paixão, mas também pontuar que (muitos) consideram que aquilo não deveria estar acontecendo.
Para quem não pode parar, alguns processos ligados às idas e vindas para casa já estão mais ou menos assimilados e automatizados. Alguns questionamentos, apaziguados. Muitos de nós já não aguentamos mais pensar o futebol em tempos de pandemia – talvez ninguém aguente mais a temática “pandemia” associada ao que quer que seja, na verdade. Mas, por mais que seja incômodo, ainda devemos conversar sobre ela.