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Croácia vs. Brasil: análise de duas situações públicas e coletivas de vivência do jogo

Gabriel Moreira Monteiro Bocchi 15 de dezembro de 2022

Amanheci na sexta-feira, 09/12/2022, sem saber em que local assistiria ao jogo das quartas de final da Copa do Mundo entre Croácia e Brasil, que ocorreria a partir do meio dia. Decidi, ao longo da manhã, que não assistiria ao jogo em “um local”, mas sim em dois.

Como é de praxe em jogos da seleção brasileira nas Copas do Mundo, telões foram instalados em distintos pontos das mais variadas cidades brasileiras. Moro em Mogi das Cruzes/SP – município no extremo leste da Grande São Paulo – e dois locais públicos com acesso gratuito a telões me chamaram a atenção nos jogos anteriores da seleção.

O primeiro local, onde assisti ao primeiro tempo da partida, é o Largo do Rosário (popularmente conhecido como “Praça da Marisa”, em razão de haver ali uma grande loja de roupas) em uma microrregião do centro que concentra outras grandes lojas de móveis, eletrodomésticos, roupas e afins.

O segundo local, onde assisti ao segundo tempo, a prorrogação e os pênaltis, a unidade do SESC que há na cidade, inaugurado há cerca de um ano. Localizada na região leste da cidade, a unidade é rapidamente acessível por moradores de seus entornos, bairros como Socorro e Vila Oliveira, historicamente ocupados por residências de estratos médios da população.

No intervalo do jogo, pedalei de um local para o outro, percorrendo avenidas vazias e ruas com comércios fechados – algo que, na leitura de Edison Gastaldo, no vídeo “Ritos da nação”, indicaria para um “Fato social total brasileiro”.

Mais do que serem apenas “dois locais distintos” para acompanhar o jogo, a presença com olhar atento e câmera do celular, permitiu criar um breve vídeo com imagens e descrições que indicam para similaridades e diferenças nas formas de torcer, oferecer estruturas para um evento público (para públicos distintos) e, evidentemente, se pensar a sociedade. 

O vídeo pode ser visto em minha página de instagram, e, adiante, aprofundo, em um texto descritivo e comparativo entre as duas situações distintas, alguns aspectos daquele começo de tarde quente em que as características geográficas e sociais da cidade de Mogi das Cruzes permitiram pensar um pouco sobre o Brasil – o país, a seleção, as culturas, as desigualdades.

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Um primeiro ponto que merece atenção são as diferenças estruturais nos dois locais. Na região central a estrutura oferecida pela prefeitura municipal aos torcedores era composta por um telão, um palco (com shows de samba e pagode antes e após os jogos do Brasil) e oito banheiros químicos (distribuídos quatro em cada uma das laterais da praça em formato de quadrilátero). Sombras eram acessíveis apenas nas laterais do Largo do Rosário, proporcionadas por árvores, no entanto, em tais pontos a visão do telão era parcial, encoberta por tendas de vendedores ambulantes. No início do jogo o termômetro de meu celular indicava 33º, e, assim como a grande maioria dos presentes, assisti ao jogo em pé e sentindo a pele queimar.

Já no SESC, uma estrutura de tendas fixadas em um gramado (onde frequentemente ocorrem apresentações musicais e teatrais) proporcionava uma vasta área sombreada de frente para o telão. Também não era necessário assistir ao jogo em pé, visto que centenas de cadeiras de praia foram espalhadas abaixo das tendas. Os banheiros e bebedouros da unidade estavam à disposição para os torcedores daquela ocasião, enquanto no centro o acesso a banheiros dependia de uma longa e confusa fila nos banheiros químicos, do acesso a uma lanchonete em uma das laterais da praça ou do deslocamento para bares distantes do telão.

Permanecer de duas a três horas assistindo um jogo de futebol atrai, quase como uma “necessidade”, práticas de consumo. Cervejas, água, picolés, alimentos salgados. Próximo ao telão do centro da cidade, vendedores ambulantes com pontos fixos ofertavam distintas opções de produtos – lanches, pipocas, açaí, milho e derivados, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, roupas e objetos em verde e amarelo. No SESC as opções de consumo eram limitadas pelo cardápio da “Comedoria” (lanchonete) da unidade, com salgados, bebidas e doces vendidos com preços acima dos praticados, por exemplo, nas lanchonetes da região central. 

Sobre o consumo de tais produtos durante o jogo, dá-se destaque às “adegas”. Comércios montados em pequenos imóveis, em que os consumidores não têm acesso ao interior, uma vez que são fechados por grades rentes ao limite entre a calçada e o imóvel, e que vendem, sumariamente, bebidas, itens de tabacaria e petiscos ultraprocessados. Nos quarteirões ao redor da Praça da Marisa há alguns destes comércios, assim como a poucos metros da entrada do SESC há uma adega.

Em ambos locais observei pessoas se deslocando, inclusive durante o jogo, para adquirir bebidas em adegas, o que se justifica pelos preços serem inferiores aos praticados tanto pelos ambulantes instalados na praça, quanto pela comedoria do SESC. A praticidade de comprar uma cerveja sem sair de frente do telão versus a possibilidade de comprar mais cervejas por menos reais, ainda que perdendo alguns minutos da partida. 

Destaca-se também que a variedade de opções nos produtos alcoólicos também é maior nas adegas, como bebidas destiladas vendidas em grandes copos plásticos, o famoso “Copão”, presente nos dois locais de onde se acompanhou o jogo.

Outro objeto visível em ambas situações eram “coolers”, ou “caixas térmicas”, levadas por famílias e grupos de amigos. Abastecidas com gelos e latas de bebidas, conferiam autonomia frente às lanchonetes, os vendedores ambulantes e as adegas. Não por menos um dos principais patrocinadores e engajadores da Copa do Mundo é uma cervejaria – que, inclusive, tem como case de marketing um protótipo de “Torcida organizada da seleção brasileira”.

Além das diferenças nas características das duas regiões da cidade, acessadas e ocupadas com fins e por estratos sociais distintos, outros fatores observados durante o jogo permitem pensar sobre situações distintas por uma perspectiva de classes. 

Se o telão no centro da cidade estava sintonizado na TV Globo, com a narração de um exaltado Galvão Bueno, no SESC o telão retransmitia o canal pago Sportv, com uma narração moderada de Milton Leite. O modo de narrar o jogo incide nas emoções que o mesmo proporcionará aos telespectadores, e, sociologia das emoções, estas são apreendidas e praticadas de formas distintas, conforme educação familiar e formal, recortes de classes sociais, questões de gênero, raciais entre outras.

As diferenças nos modos de se lidar com as emoções, e, evidentemente, os preconceitos de classe, talvez justifiquem que no Largo do Rosário havia intenso policiamento – guarda civil municipal e polícia militar – enquanto no SESC os torcedores eram observados apenas por funcionários da unidade.

Ainda que o acesso a ambos os locais fosse gratuito, para assistir ao jogo no telão do centro bastava estar na praça, no SESC uma portaria separava a área pública da rua da área com o telão. Isto, para além das já descritas diferenças nas regiões da cidade, conferia públicos distintos a cada uma das situações.

Foto: Gabriel Moreira Monteiro

No centro havia grupos de pessoas com uniformes de trabalho em lojas, a maioria das camisas da seleção observadas eram nitidamente “não oficiais” e pessoas em situação de rua que aproveitavam da situação para vender balas, coletar latas de alumínio vazias e consumir bebidas alcoólicas em embalagens plásticas. 

No SESC não havia pessoas em situação de rua, e predominavam como vestes tanto camisas oficiais (da seleção e de clubes) como roupas coloridas, variadas, confortáveis e em nada semelhantes a “uniformes de trabalho”. Ainda com olhar no SESC, camisas da seleção com estampas nas costas com o número 13 abaixo do nome Lula, e menções a posicionamentos políticos “à esquerda”, como o símbolo do Movimento Sem Terra e a frase “Não sou fascista!”, não observadas na região central da cidade.

Se no SESC me encontrei com colegas de trabalho das áreas da educação e da produção cultural, amigos pessoais e conhecidos dos universos da música e das artes, na Praça da Marisa a única pessoa que me reconheceu foi um rapaz em situação de rua, com quem frequentemente converso, e concedo um cigarro, em frente à estação da CPTM Mogi das Cruzes.

Por fim, e também uma grande similaridade entre aqueles dois e tantos outros locais pelo país naquela tarde, pude observar a tristeza pela derrota. Após acompanhar a saída chateada das pessoas no SESC, muitas reclamando por terem “perdido a folga” que a participação brasileira nas semifinais garantiria para a semana seguinte, pedalei de volta para a praça na região central. Cenário distinto do que encontrei entre o meio dia e a uma tarde, estava já quase completamente sem torcedores, o telão já desligado, retomando suas características cotidianas de “local de passagem”, não fosse por um show de samba esvaziado, com músicas intercaladas com frases de auto incentivo coletivo ditas pelo cantor, como: “Vamos dançar, vamos dançar! Brasileiro é isso aí, pô!”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

BOCCHI, Gabriel Moreira Monteiro. Croácia vs. Brasil: análise de duas situações públicas e coletivas de vivência do jogo. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 14, 2022.
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