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Crossfit: breves notas sobre controle, domínio e paradigma do corpo-máquina

Fidel Machado 27 de dezembro de 2019

Para o fim aqui proposto, trabalharei de forma mais direta com o Crossfit, pois este surge como um aglutinador e catalisador de uma série de discursos. Adianto que não há um motivo fundante ou essencial pela escolha da prática nem tampouco o que aqui discorrerei é específico dela. Todavia, percebo uma certa recorrência de falas e um modo de lidar com o corpo e o movimento que se aproximam do paradigma do corpo-máquina e, por esse fator, despertou meu interesse e gerou o questionamento: há alguma relação entre o paradigma do controle e domínio do corpo com a produção de determinadas promessas crossfiteiras? Com um caráter, declaradamente, ensaístico e exploratório, tentarei nos próximos parágrafos brincar e perspectivar o Crossfit a partir dessa problemática.

No interior de uma sociedade produtivista com traços, marcadamente, imediatistas, se construiu o binômio do sujeito geral e do fracasso individualizado. O primeiro exemplo é um modelo a ser, insanamente, atingido, pois os signos de sucesso, felicidade e afins são seus atributos. Como contraponto, o fracasso individualizado representa esse sujeito particularizado, culpabilizado e, portanto, derrotado haja vista que seu esforço não foi suficiente para atingir a ilusória ideia do sujeito geral. Parece-me, diante desse binômio, que há uma possível correlação com o aumento assustador e alarmante das doenças psíquicas, como transtornos, distúrbios de percepção, depressão ou ansiedade. Penso que como efeito das demandas impostas e do empresariamento desse sujeito há uma redução da capacidade crítica e argumentativa para facilitar possíveis cooptações em certos discursos e assim o cumprimento das metas seja realizado de forma passiva e rentável.

Na esteira dessa discussão, o Crossfit se adequou de forma singular ao ritmo frenético da sociedade contemporânea. Os estímulos sempre variados, a diversidade de movimentos, a busca pelos recordes pessoais e o incentivo constante para a dedicação e o esforço são algumas dessas características que refletem algumas demandas sociais. Fora isso, há uma relação de amor e ódio com o cronometro e um certo fetiche com o tempo, com a mensuração das cargas e com os números. Ademais, promessas, como realizar movimentos complexos em tempo recorde, tornar-se atleta em um período meteórico, emagrecer ou ficar forte instantaneamente ou, como contraponto, não realizar ou praticar a modalidade, pois ela lesiona, são recorrentes no interior desse campo.

Praticante de Crossfit ajusta a carga. Foto: Victor Freitas/Unsplash.

De acordo com o argumento aqui apresentado esses discursos parecem dialogar com uma certa pretensão de controle, domínio absoluto e de uma intervenção precisa no corpo. Como artifício ilustrativo que reforça tal diálogo, tenho escutado, reiteradamente de praticantes, professores, nutricionistas, osteopatas e demais profissionais, falas, como: “cuidando da máquina”, fortalecendo as peças”, “testando a máquina”, “alinhando e balanceando”. Teria toda essa lógica de controle, domínio e mensuração alguma relação com paradigma do corpo máquina? Todo esse investimento corporal estaria a serviço de qual ideário de corpo? Seria essa semelhança e essa adequação uma possível explicação para o sucesso do Crossfit em escala mundial? Para não ser incoerente, afirmo que não tenho como objetivo a produção de categorias totalizantes e universalistas. O que aqui venho apresentar é uma inquietação a partir da escuta reincidente da fala de alguns profissionais e praticantes da modalidade e uma possível aproximação desses discursos com paradigmas sobre o corpo. Desse modo, ratifico que essa não é a visão de todos os profissionais nem tampouco a visão única do Crossfit.

A tentativa de domínio da natureza por meio da racionalidade científica, forma típica de conhecimento do século XIX, subsidia alguns processos e pensamentos. Nesse sentido, a objetividade da Física, da Química e da Biologia estruturava uma certa forma de pensamento que inspirou e estimulou uma certa ânsia investigativa sobre o corpo. Tal forma de pensar culminou na concepção do corpo como objeto físico, como máquina. O corpo, por sua vez, é definido a partir de um sistema de alavancas e engrenagens que, para o seu funcionamento, gera um gasto calórico que precisa ser reposto. Essa forma de se conceber o funcionamento corporal visa o rendimento e o cuidado do corpo se reduz a manutenção de suas partes.

Para Denise Sant’Anna (2001), desde o século XVI há uma certa tendência associativa entre os corpos e as máquinas. Nos séculos subsequentes preponderou um certo protagonismo dessa relação que ganhou certa envergadura e notoriedade mais simbólica no século XIX. O interesse em dominar, controlar e intervir no corpo desperta o interesse de vários profissionais, como médicos e educadores e a ciência se apresenta como método e ferramenta. Segundo Góis Jr.; Soares; Terra (2015) na virada do século XIX para o século XX, essa ideia de corpo-máquina está mais solidificada e exerce forte influência em outras práticas. Um corpo máquina atenderia as demandas e as imposições sociais, como uma certa pureza e pasteurização. Ademais, ele é mais produtivo e moralmente eficaz. Essa representação ancora-se numa concepção econômica, pois sob essa égide o corpo é pensado a partir daquilo que produz e, portanto, sua estrutura é comparada às peças de uma máquina.

Tal forma de pensar influencia diretamente na compreensão do movimento, pois produz uma racionalização extremada do corpo que permite essa aproximação de uma concepção de corpo-máquina. Isso posto, halteres, anilhas, barras e demais implementos eram extensões do próprio corpo que tornavam e propiciavam mais eficiência e economia energética na realização dos exercícios. O corpo concebido a partir de lógicas maquínicas ganha mais espaço nos discursos médicos, que, por sua vez, através de uma representação de uma racionalidade objetiva e científica, influenciavam o contexto da cultura moderna (GÓIS JR; SOARES; TERRA, 2015).

Percebo então uma certa retomada de fôlego do paradigma do corpo-máquina que já foi abundantemente defendido, criticado e refutado por várias áreas. Diversos autores da área da Educação Física e a própria Filosofia já se debruçaram sobre essa questão. Contudo, o que chamou minha atenção, foi uma certa legitimação dessa forma de pensar e, sobretudo, um reconhecimento de si como máquina. Ao meu ver, isso possui relação direta e flerta de forma muito imbricada com a ideia do empresário de si que enxerga o corpo como uma empresa. Sobre outra roupagem, penso que o argumento e a lógica que articula esses pensamentos são bem semelhantes. Uma das poucas divergências é que outrora o Estado agia de forma, mesmo que indireta, no cuidado desse corpo. Com o neoliberalismo extremado é cada um por si e o capital pelos grandes empresários e banqueiros.

Treinamento com cordas. Foto: Scott Webb/Unsplash.

Dessa forma, a busca pelo controle dessa máquina ou o investimento nela resulta em mensurações e reavaliações constantes. Não estou aqui questionando a importância das análises e avaliações realizadas. Pelo contrário, reforço a importância desse conhecimento, pois penso que este é um pilar crucial para a Educação Física enquanto área de intervenção. Porém, uma certa tara da racionalidade e obsessão com os números pode ser limitante, pois se organiza dentro de uma lógica mecânica de cálculo preciso.

Nesse cenário, o professor, muitas vezes, passa a ser apenas o treinador que é responsável para estimular e potencializar o máximo do rendimento. Penso que possivelmente a capilarização desse discurso do corpo-máquina e da redução da figura do professor ao treinador possa ser um fator predisponente para uma visão limitada e reprodutivista do Crossfit. Uma massificação e padronização dos corpos e uma certa subserviência ao movimento técnico que se expressa na realização do movimento a todo custo, na negligência das alterações e adaptações e, consequentemente, na proposição de práticas que apenas reproduzem protocolos de treino. 

Não desconsidero a importância do saber e do fazer técnico, mas defendo a autonomia e o poder criativo do ser humano que aprendeu e ensina tais técnicas para outros seres humanos. O foco que aqui proponho é descentralizar a importância do movimento bem executado para aquele ser que se movimenta e, muitas vezes, a cobrança por um padrão técnico o afasta do movimento. Não quero dizer com isso que a segurança tenha de ser desconsiderada. O que proponho é uma ampliação das formas de se compreender o movimento humano a partir da dilatação da própria dimensão do que é ser humano. Restringir e definir de maneira muito objetiva e precisa pode gerar certas limitações. Nesse bojo, o ser humano não pode estar circunscrito a dados biossociais e os movimentos apresentam-se para além da repetição de uma sequência de exercícios.

O paradigma do corpo-máquina parece possuir inúmeras relações com o corpo objeto que, por sua vez, dialoga com o empresário de si. Pelo que aqui foi exposto, talvez essas aproximações tenham em comum um certo desejo de controle e domínio. Uma forma de objetificar o corpo, torna-lo objeto e reduzir toda a sua potência à mensurações, metas, rendimentos e análises. A grande questão é simplificar a existência, a vida aos dados gerados pelo movimento e assim compreender o aluno como um número, o movimento como uma regra, a saúde como uma equação de dados universais e o corpo como uma máquina. Como já falei, não vejo problemas nas várias formas de perspectivar o corpo, mas desconfio de simplificações totalizantes. Diante dessas, não posso me furtar ao exercício da dúvida, do questionamento e, sobretudo, do efeito que tais paradigmas produzem, principalmente quando agem diretamente com o corpo e com a forma que constituímos as nossas relações. Mais uma vez reforço que não há problema em análises quantitativas e descritivas, mas a compreensão não pode se limitar somente a isso. Por fim, recorro ao alerta do filósofo francês Merleau-Ponty (1994) quando de forma muito sucinta e contundente afirma que o corpo vive, a máquina, por sua vez, funciona.


CONVERSAS COM:

GÓIS JUNIOR, E.; SOARES, C. L. ; TERRA, V. D. Corpo-máquina: Diálogos entre discursos científicos e a ginástica. Revista Movimento, v. 21, p. 973, 2015.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Educação Física e história. In: CARVALHO, Y.; RUBIO, K. (Org.). Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2001.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. Crossfit: breves notas sobre controle, domínio e paradigma do corpo-máquina. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 31, 2019.
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