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Cultura, Identidade e Futebolização na Croácia

Rodrigo Koch 24 de junho de 2022

Este artigo integra a série Cultura, Identidade e Futebol (KOCH 2022a, KOCH 2022b, KOCH 2022c, KOCH 2022d, KOCH 2022e), como parte final do período de pós-doutorado (Institut de Creativitat i Innovacions Educatives de la Universitat de València), no qual observo e faço breves análises das condições da Futebolização (KOCH 2020) em território europeu. Mantenho como ferramentas metodológicas – neste estudo – a observação e as fotografias. Neste texto, mergulho nas produtividades da Futebolização na Croácia – atual vice-campeã mundial – onde estive nos meses de maio e junho de 2022, por cerca de 35 dias. Os olhares para o fenômeno se deram nas duas principais cidades do país – Zagreb e Split –, que por sua vez também abrigam as duas principais equipes croatas: GNK Dínamo Zagreb e HNK Hajduk Split.

Croácia

A Croácia (Hrvatska, no idioma croata) está situada nos Balcãs tendo como fronteiras ao norte a Eslovênia e a Hungria, a nordeste a Sérvia, a leste a Bósnia-Herzegovina e ao sul Montenegro. É banhada a oeste pelo Mar Adriático – constituindo fronteira marítima com a Itália.

O território croata foi habitado durante todo o período pré-histórico, tendo fósseis de neandertais encontrados no norte do país, na região de Krapina. Também objetos remanescentes de várias culturas neolíticas e calcolíticas foram encontrados em todas as regiões da nação. Sem ignorar toda a história que constituiu a Croácia, me permito dar um salto nesta cronologia até a Modernidade – período em que o futebol foi regulamentado e se tornou esporte de massa no planeta.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial, o território da atual Croácia se tornou parte do Estado (ou Reino) dos Eslovenos, Croatas e Sérvios, conhecido como Iugoslávia. Depois da invasão pela Alemanha nazista em abril de 1941, a Iugoslávia foi desmembrada e o fascista Ante Pavelic se tornou o líder do Estado Independente da Croácia. Sob sua tutela, centenas de milhares sérvios, judeus, ciganos e croatas não alinhados ao regime foram exterminados em campos de concentração, fato que gerou o aumento do ódio histórico de sérvios (em sua maioria cristãos ortodoxos) – massacrados pelos croatas fascistas. Muitos croatas seguem sendo acusados de nazistas por grande parte das populações da ex-Iugoslávia, no entanto, na contemporaneidade as manifestações fascistas são repudiadas no país, tanto que há uma data (feriado nacional) para celebrar o Dia da Luta Antifascista (Dan Antifasisticke Borbe), em 22 de junho. Ao final da Segunda Guerra Mundial, Josip Borz Tito havia derrotado os invasores nazistas e seus cúmplices, e unificou todas as repúblicas iugoslavas em torno de um Estado Comunista.

Croácia
Regiões da Croácia e suas principais cidades. Fonte: Google Images

Em junho de 1991, após plebiscitos que deram vitória esmagadora aos separatistas, os croatas anunciaram sua separação da Iugoslávia. No entanto, o território croata foi invadido pelo exército federal da Iugoslávia, então sob domínio sérvio, que interveio em favor das minorias sérvias residentes na Croácia (cerca de 10% da população). Diante dos violentos conflitos entre croatas e sérvios e da ocupação do território croata por milícias sérvias, a ONU interveio militarmente para ‘assegurar a paz’. No ano seguinte, o país foi reconhecido como independente; e em 1995, numa operação militar – sem ajudas externas –, a Croácia recuperou todos os seus territórios ocupados pelos sérvios. Cerca de 250 mil sérvios foram expulsos das suas casas, na maior operação de limpeza étnica da Europa. Posteriormente, a Croácia ajudou os bósnio-croatas na luta pela independência da Bósnia-Herzegovina. 

As mais populosas e principais cidades croatas são Zagreb, Split, Rijeka, Osijek, Zadar e Dubrovnik.

Espaços e aspectos croatas futebolizados

Logo que atravessei a fronteira terrestre Eslovênia-Croácia – em Macelj –, no próprio posto da polícia, me deparei com um totem digital que anunciava, entre outros produtos, os jogos da seleção croata na primeira fase da Liga das Nações 2022. As informações dos jogos estavam vinculadas a uma imagem de Luka Modric, ícone da geração vice-campeã mundial de 2018, tendo sido eleito melhor jogador do mundo naquele ano. Macelj é um ponto de fiscalização e recepção aos viajantes e visitantes que entram na Croácia e, naquele período – em certa medida – convidava para que os mesmos acompanhassem os jogos da seleção nacional (imagino, que de preferência, in loco).

Croácia
Anúncios publicitários envolvendo seleção e clubes croatas. Fotos: Rodrigo Koch

Na Croácia, muitas marcas – especialmente as que patrocinam clubes e seleção – utilizam a imagem dos atletas e lançam enormes outdoors pelas ruas e centros históricos das cidades, promovendo – em boa medida – espaços futebolizados. Os anúncios que envolvem a seleção croata se repetem por todo o país.

Zagreb

A capital da Croácia apresenta vários elementos futebolizados nas principais ruas e espaços públicos. No centro histórico, muitas lojas de souvenires vendem artefatos da seleção da Croácia e do clube local: GNK Dínamo Zagreb – clube croata mais popular e maior vencedor da liga nacional (Prva HNL), tendo chegado ao seu vigésimo terceiro título na temporada 2021/22, a quinta conquista consecutiva. O país ainda vive o forte sentimento de ‘conquista’ do vice-campeonato mundial – na Copa do Mundo FIFA Rússia 2018 – tendo alguns objetos à venda vinculados aos jogadores da exitosa campanha: Modric, Mandzukic e Rakitic, entre os mais destacados.

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Artefatos futebolizados da seleção da Croácia em Zagreb. Fotos: Rodrigo Koch

Também são encontrados em outras lojas de redes multinacionais, materiais escolares (estojos, blocos de anotação, mochilas e até camisetas), dos principais clubes espanhóis: Real Madrid CF e FC Barcelona, onde estão ou por onde passaram jogadores da seleção da Croácia recentemente.

Zagreb
Produtos dos grandes clubes da Espanha comercializados em Zagreb. Fotos: Rodrigo Koch

No entanto, as manifestações espontâneas de crianças, jovens e adultos nos espaços públicos de Zagreb são tímidas, mas vinculadas à seleção e ao clube local em sua maioria. Os poucos indivíduos que vi trajando ou carregando algum artefato futebolizado, estavam com objetos da seleção croata ou do GNK Dínamo Zagreb; ou de clubes europeus com maior poder econômico, como o Paris Saint Germain FC (França) e o Real Madrid CF (Espanha).

Vale o destaque para dois espaços localizados no ‘coração’ de Zagreb, junto à praça Bana Josipa Jelacica no centro histórico da capital croata. A Federação Croata de Futebol, que mantém um museu permanente e gratuito contando a história da seleção e suas participações em competições internacionais, com ênfase no vice-campeonato mundial de 2018; e a loja de produtos oficiais do GNK Dínamo Zagreb ‘colada’ ao espaço da federação. Na minha percepção, ainda que não dividam exatamente o mesmo espaço (um museu + uma loja comercial), há uma certa hibridização entre seleção da Croácia e GNK Dínamo Zagreb, até pelo fato de ambas as equipes adotarem as mesmas cores e em certa medida simbologias, como o quadriculado vermelho-branco.

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Museu da Federação Croata de Futebol. Fotos: Rodrigo Koch
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Loja oficial do Dínamo Zagreb. Fotos: Rodrigo Koch

Split e região da Dalmácia

Ao chegar na região da Dalmácia (parte sul da Croácia), já se percebe os fortes vínculos com o HNK Hajduk Split, segundo time em expressão no país – atual campeão da Copa da Croácia e vice-campeão da liga. Há uma série de graffitis alusivos ao clube no município e nas cidades e ilhas que circundam Split, produzidos por seus torcedores. Nas praças, parques e praias há muitas crianças e jovens (em sua maioria meninos, mas também meninas) trajando camisetas e calções do HNK Hajduk Split ou portando outros artefatos futebolizados da agremiação. Entre as mensagens dos graffitis estão as seguintes frases: “Hajduk je imao VELIKIH igraca ali NIKAD tako velikog KAPELANA” (O Hajduk teve ÓTIMOS jogadores, mas NUNCA uma EQUIPE tão boa); “Drustivo prijatelja Hajduka” (Amigos do Hajduk); “The World´s Finest” (O melhor do mundo) “dusa Hrvatska, srce Hajducko. Najvjerniji” (alma da Croácia, coração Hajduk. O mais fiel); “Da zivota iman dua ja bi oba tebi da” (Mesmo sem fé na vida, eu gostaria muito de você).

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Os diversos graffitis da Torcida Split. Fotos: Amanda HS Koch e Rodrigo Koch

Em contrapartida as manifestações espontâneas vinculadas às demais equipes do cenário europeu são quase nulas na região da Dalmácia e, praticamente restritas aos turistas que circulam pelas vias. Vi apenas, de forma discreta, alguns distintivos de clubes ingleses, Paris Saint Germain FC (França), FC Barcelona (Espanha), AS Roma (Itália) e AC Milan (Itália) em camisetas, bolsas, mochilas ou calções – mas sempre acompanhados do escudo do time local.

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Elementos futebolizados em Split. Fotos: Rodrigo Koch

Nas praias de Split, toalhas do HNK Hajduk Split se mesclam aos variados guarda-sóis. É possível afirmar que há – em grande medida – uma simbiose entre a população da Dalmácia e o HNK Hajduk Split. Além dos graffitis – presentes em variados espaços – pelo menos mais dois aspectos da cultura futebolizada de Split merecem destaque. O clube, por exemplo, ‘invade’ o setor gastronômico, tendo sua marca estampada em biscoitos, restaurantes, lancherias, sorveterias e embalagens alimentares. Outra situação, que somente verifiquei nesta região europeia, é a manifestação de amor pelo clube expressada nas portas de garagens de veículos, que ficam mais bem traduzidas nas imagens a seguir.

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A ‘invasão’ do Hajduk no setor gastronômico de Split. Fotos: Rodrigo Koch
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Algumas portas de garagens de Split. Fotos: Rodrigo Koch
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Os graffitis da Torcida Split são muitos e estão espalhados por toda cidade de Split. Fotos: Amanda HS Koch e Rodrigo Koch

Nas ilhas Hvar (com maior intensidade) e Korcula (com menos evidências) também registrei a demarcação de território por parte da Torcida Split – fundada em outubro de 1950 por um grupo de velejadores croatas que presenciaram a final da Copa do Mundo FIFA Brasil 1950, e que batizaram o grupo a partir do ato de ‘torcer’ brasileiro. Seu lema é “Hajduk vive para sempre”.

Seguindo o exemplo das torcidas brasileiras que ficaram famosas na época em que foi disputada a Copa do Mundo no Rio de Janeiro, [com este apoio] o Hajduk venceu o Estrela Vermelha por 2 a 1 em 29 de outubro, com um gol da vitória do lendário jogador do Hajduk Božo Brocket aos 86 minutos. Naquela temporada, a equipe do Hajduk venceu o antigo campeonato regional sem uma única derrota. (Torcida – KN Torcida Split, tradução livre)[acréscimos meus].

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Demarcação de território da Torcida Split nas ilhas de Hvar e Korcula. Fotos: Rodrigo Koch

Após a partida contra o Estrela Vermelha – de estrutura partidária e estatal –, por intervenção pessoal de Milovan Djilas, reprimiram a Torcida e seus membros. A derrota do privilegiado time e as circunstâncias em torno desse resultado incomodavam o então regime em Belgrado. A liderança do Hajduk foi sancionada, as atividades da Torcida e seu nome foram banidos, e alguns dos membros foram detidos e processos foram iniciados contra eles. Um dos fundadores, Vjenceslav Žuvela, foi condenado a três anos de prisão. Sua sentença foi posteriormente reduzida para três meses. Apesar da proibição de exibir o nome e da ação organizada, os torcedores continuaram dando grande apoio ao seu clube e jogadores [na primeira década de existência do grupo organizado]. (Torcida – KN Torcida Split, tradução livre)[acréscimos meus].

Desde então houve, em certa medida, conflitos entre os torcedores do Hajduk Split e a polícia iugoslava. Vários incidentes envolvendo a Torcida Split foram registrados nas décadas seguintes e, desde 2004 há um grupo jovem que assumiu o controle da torcida organizada, promovendo gradativamente o retorno das famílias ao estádio e construindo uma imagem de fã afastado de quaisquer conflitos na contemporaneidade. Percebi, na atualidade, uma grande vinculação dos cidadãos de Split com o Hajduk e, consequentemente com a Torcida Split, registrada em inúmeros artefatos que circulam pela cidade. Em Split, até mesmo o imortal poeta e humanista Marko Marulic – figura célebre da cidade – ganhou as cores e contornos dos aficionados em mais um dos tantos graffitis espalhados pela região.

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Duas homenagens à Marko Marulic encontradas no centro histórico de Split. Fotos: Rodrigo Koch

Referências

KOCH, R. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.

KOCH, R. Cultura, Identidade e Futebol na Europa contemporâneaLudopédio, São Paulo, v. 153, n. 10, 2022a.

KOCH, R. Cultura, Identidade e Futebolização na Península Ibérica: Lisboa e ValènciaLudopédio, São Paulo, v. 153, n. 25, 2022b.

KOCH, R. Cultura, Identidade e Futebolização na Europa Ocidental: França, norte da Itália, e SuíçaLudopédio, São Paulo, v. 154, n. 28, 2022c.

KOCH, R. Cultura, Identidade e Futebolização em BudapesteLudopédio, São Paulo, v. 155, n. 18, 2022d.

KOCH, R. Cultura, Identidade e Futebolização nas capitais do DanúbioLudopédio, São Paulo, v. 156, n. 15, 2022e.

Torcida – KN Torcida Split. Disponível em http://www.torcida.hr/ Consultado em junho de 2022.

Wikipédia. Croácia. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Cro%C3%A1cia Consultado em maio e junho de 2022.

Wikipédia. Torcida Split. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Torcida_Split Consultado em junho de 2022.

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Como citar

KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização na Croácia. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 27, 2022.
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