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Cultura, Identidade e Futebolização na Península Ibérica: Lisboa e València

Rodrigo Koch 22 de março de 2022

Como parte final do período de pós-doutorado (Institut de Creativitat i Innovacions Educatives de la Universitat de València), no qual observei e analisei condições da Futebolização (KOCH 2020) em território europeu, especialmente, na Comunidade Valenciana (KOCH 2021, KOCH 2022a), apresento de forma breve relatos e imagens de algumas cidades europeias que descrevem e comprovam os constantes movimentos deste processo pós-moderno, dando sequencia à série Cultura, Identidade e Futebol (KOCH 2022b). Para efeitos geográficos, com objetivo de dividir as informações em vários textos – e sendo sabedor que há controvérsias entre pensadores sobre tais divisões espaciais – considero neste estudo Europa Ocidental todas as cidades e países que estão à oeste de Berlim e, por sua vez, Leste Europeu os pontos que estão ao leste da capital alemã. O muro de Berlim simbolizou durante quase trinta anos (13 de agosto de 1961 – 09 de novembro de 1989) a divisão do mundo em dois blocos e, apesar de muitas questões politico-ideológicas já terem sido superadas (ou retornarem ao debate), seu passado ainda mantém na contemporaneidade marcas que difereciam economicamente e socialmente cidades e países na Europa.

Neste estudo foram utilizados basicamente duas ferramentas metodológicas: observação e fotografias. A observação permite ao pesquisador observar o comportamento das pessoas em seu ambiente natural ou controlado. Foram registrados de forma sistemática os dados de comportamentos, fatos e ações. A atividade de observação se preocupa em utilizar os sentidos para entender o cotidiano e extrair conhecimentos, e – apesar de apresentar menor rigor científico – é considerada como um método vantajoso porque permite conhecer os fatos e fenômenos diretamente (GIL 2008). Já as imagens oferecem registros restritos, mas poderosos das ações temporais e dos acontecimentos reais. Na contemporaneidade, o visual e a mídia desempenham papeis importantes na vida social, política e econômica; eles se tornaram “fatos sociais” e não podem ser ignorados (LOIZOS, 2002).

Vale destacar que os relatos aqui descritos são a partir das vivências e experiências deste pesquisador em cada uma das cidades, ou seja, as percepções provocadas dependem muito dos contatos sociais que cada um têm e de períodos econômicos, sociais e, também climáticos nos quais as localidades são visitadas e estudadas.

O que é a Futebolização

A Futebolização – fruto da globalização a partir do futebol espetacularizado e mercantilizado, principalmente a partir dos anos 1990 – está imersa em um campo fluído que apresenta variações de tempos em tempos (sem que haja uma norma para cada período temporal) e, por isso, se transforma e se transfigura em cada espaço que penetra e a cada instante, adquirindo também contornos locais. Na construção do conceito do fenômeno globalizador, utilizo referenciais teóricos de Bauman (2001 e 2005), Lipovetsky (2016), Hall (1997 e 2006), Canclini (2003), e Debord (2005).

A Futebolização também pode ser considerada uma pedagogia cultural. Desde a emergência dos Estudos Culturais a pedagogia passou a ser entendida como um mecanismo de ensinamento ou difusão de modos de ser e pensar, ou seja, a pedagogia não se limita a práticas escolares explícitas ou institucionalizadas: ela está na TV, em filmes, jornais, revistas, anúncios, videogames, aplicativos, brinquedos, e também nos esportes (STEINBERG 1997). A Futebolização está imersa na cultura e sem dúvida alguma produz seus ensinamentos. Giulianotti (2010 e 2012) defende que o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e a mídia, que formam e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro.

Bola do Benfica utilizada por garotos na ruas de Lisboa
Bola do Benfica utilizada por garotos na ruas de Lisboa. Fonte: Rodrigo Koch

 

Alguns aspectos do futebol na Europa pós-moderna

“Desde su nacimiento y primer desarrollo, el fútbol ha sido una institución cultural de gran relevancia en la sociedad europea por su contribución e la formación de identidades locales y nacionales” (LLOPIS-GOIG 2017, p.185). Não há dúvidas quanto a afirmação anterior, porém o próprio pesquisador destaca que “[…] las tecnologias digitales están transformando los vínculos entre los clubes profesionales y sus seguidores, […]” (LLOPIS-GOIG 2017, p.186). Se o futebol talvez ainda seja a última reserva sólida de sentimentos coletivos (LLOPIS-GOIG 2017 e KOCH 2020) de identificação local e nacional na pós-modernidade, cabe avaliar as produtividades da Futebolização na contemporaneidade e, como esta provoca em certa medida (des)(re)construções identitárias. Soto (2014), ao discutir as identidades no futebol, acredita que há “procesos de globalización [que] han influido en la forma en que se producen, difunden y asimilan las identidades nacionales en la llamada era del fútbol postmoderno” (p.15).

Os estudos de Llopis-Goig (2017) indicam que encontramos com frequência entre os aficionados a convivência de sentimentos nacionais e transnacionais, pois há um amplo porcentual de pessoas que consome partidas de futebol e segue outras ligas europeias distintas do país em que reside. Os indivíduos que declaram estes comportamentos alcançam 70% do total de aficionados.

[…] los países que cuentan con ligas nacionales de fútbol de menor peso económico o impacto mediático son los que registran los procentajes más altos de aficionados que realizán comportamientos de consumo futebolístico de carácter transnacional. (LLOPIS-GOIG 2017, p.193)

Ainda de acordo com as investigações de Llopis-Goig (2017) para cada três europeus que se identificam com um clube de seu país, há um que se identifica com um clube de outro país europeu e, esta identificação transnacional é claramente superior entre os jovens, especialmente entre os menores de 25 anos. Na tabela seguinte, adaptada de Llopis-Goig (2017), apresentamos na última coluna a média de consumo audiovisual de partidas e acompanhamento de resultados de ligas estrangeiras por parte dos aficionados.

País

% Identificação com clubes estrangeiros

% Acompanhamento de ligas estrangeiras*

Dinamarca

29,7

30,6

Turquia

27,4

39,9

França

22,1

31,3

Polônia

17,4

35,3

Áustria

16,3

35,8

Itália

15,2

24,7

Inglaterra

14,5

32,3

Espanha

13,5

29,8

Alemanha

7,8

26,7

El fútbol – y en este caso, más concretamente, el fútbol europeo – se ha convertido en una actividad que genera consumos y proyecta sentimentos de identificación de carácter transnacional. (LLOPIS-GOIG 2017, p.198)

Se trata de una cuestión sensible porque las narrativas nacionales y las futbolísticas están muy arraigadas en las identidades de las personas y en su visión del mundo. (SOTO 2014, p.19)

Apresentamos a seguir os relatos e imagens que comprovam tais condições na Península Ibérica.

Artefatos futebolizados do Valencia CF e Levante UD comercializados em supermercados
Artefatos futebolizados do Valencia CF e Levante UD comercializados em supermercados. Fonte: Rodrigo Koch

 

Espanha: València

València é uma cidade com marcas culturais regionais bem fortes (língua local, festas e símbolos), que, no entanto, não são excludentes a sentimentos também nacionalistas e, em alguns casos globalizados. Há inúmeras escolinhas de futebol espalhadas pelo município e nos povoados que circundam o mesmo. Sem dúvida, a equipe que representa os valencianos é o Valencia CF, ainda que haja um rival local (Levante UD) com menor número de adeptos. Nas ruas são vistas camisetas e artefatos futebolizados do Valencia CF, seleção da Espanha, Real Madrid CF, FC Barcelona, Paris Saint Germain FC e Levante UD em maior número, sobre os demais clubes europeus também registrados. Algo tradicional em València é ver nas sacadas e varandas dos prédios bandeiras da Comunidade Valenciana estendidas, por muitas vezes, acompanhadas de bandeiras ou símbolos da Espanha, ou do Valencia CF, FC Barcelona e Real Madrid CF.

Produtos futebolizados em València (ESP)
Produtos futebolizados em València (ESP). Fonte: Rodrigo Koch

 

Portugal: Lisboa

A capital portuguesa é mais uma das tantas metrópoles futebolizadas da Europa. Nas principais ruas do centro histórico e turístico de Lisboa, próximas à Praça do Comércio – com destaque para a Rua Augusta – há diversas lojas de souvenirs que vendem entre os vários artigos mercantilizados da cultura portuguesa também artefatos dos clubes locais, principalmente de Sporting CP e SL Benfica, mas também do FC Porto e da seleção portuguesa, ou melhor, do Cristiano Ronaldo. Para este aspecto da futebolização na Península Ibérica até vale uma pergunta – Para os jovens aficionados, qual tem mais importância: a Seleção Portuguesa ou Cristiano Ronaldo? Há vestígios nas ruas e praças de Lisboa da grande veneração pelo craque português, tanto que ainda são vistas muitas crianças e jovens com camisetas da Juventus FC com o nome do CR7 nas costas, clube anterior da celebridade; e em menor medida do clube atual – Manchester United FC. Também verificamos a forte presença e influência do futebol brasileiro sobre o português, com destaque para os clubes cariocas (CR Flamengo e CR Vasco da Gama), além de pequenas marcas do Paris Saint Germain FC. Devido aos confrontos dos clubes locais pela Champions League 2021/22, na fase de oitavas-de-final, também verificamos grande circulação de torcedores do Manchester City FC e J Ajax no período em que estivemos em Lisboa.

Produtos futebolizados em Lisboa (POR)
Produtos futebolizados em Lisboa (POR). Fonte: Rodrigo Koch

 

Referências

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

CANCLINI, N.G. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2003.

DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.

GIL, A.C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2008.

LOIZOS, P. Vídeo, filme e fotografias como documentos de pesquisa. In: BAUER, M.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução Pedrinho Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

GIULIANOTTI, R. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

GIULIANOTTI, R. Fanáticos, seguidores, fãs e flâneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol. Recorde: Revista de História do Esporte. Volume 5 (1), p.1-35, 2012.

HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.22 (2), p.15-46, 1997.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

KOCH, R. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.

KOCH, R. Marcas da futebolização no cotidiano da Comunidade ValencianaLudopédio, São Paulo, v. 149, n. 14, 2021.

KOCH, R. Identidades culturales de niños y jóvenes aficionados al fútbol en la Comunitat ValencianaLudopédio, São Paulo, v. 151, n. 2, 2022a.

KOCH, R. Cultura, Identidade e Futebol na Europa contemporâneaLudopédio, São Paulo, v. 153, n. 10, 2022b.

LIPOVETSKY, G. Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. Barueri, SP: Manole, 2016.

LLOPIS-GOIG, R. Globalización y transnacionalismo en el fútbol europeo: hallazgos y conclusiones derivados del proyecto FREE. In: CORNELSEN, E.L.; CAMPOS, Priscila A.F.; SILVA, S.R. Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer 2: produção acadêmica sobre futebol, análises e perspectivas. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.

SOTO, A.Q.F. Goles y banderas: fútbol e identidades nacionales em España. Madrid: Marcial Pons Historia, 2014.

STEINBERG, S. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, L.H., AZEVEDO, J.C., & SANTOS, E.S. (Orgs.). Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre: SMED, 1997.

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Como citar

KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização na Península Ibérica: Lisboa e València. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 25, 2022.
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