25.2

Da cabeça aos pés: como o racismo aparece em todos os níveis do futebol brasileiro

Os jogadores de futebol negros que atuam fora do Brasil acreditam que o racismo neste esporte é menor aqui do que no exterior. Mas, para Marcel Diego Tonini, esta crença é antes uma reprodução do mito da democracia racial brasileira do que realidade. Esta é uma das conclusões de sua dissertação de mestrado sobre racismo e futebol, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). O cientista social, que contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), foi além dos gramados para ouvir as histórias e memórias dos negros no esporte de 1970 a 2010.

Segundo o autor, a falta de análises recentes sobre um assunto tão polêmico quanto atual motivou a pesquisa. O trabalho é baseado em 20 entrevistas com personalidades do futebol, com duração média de duas horas cada. Cada entrevistado indicava outros nomes a serem procurados, formando assim uma rede com legitimidade e representativa do meio. Além de jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, torcedores, jornalistas e especialistas foram entrevistados. “Inicialmente tímidos ao falar sobre o tema, eles aos poucos se desinibiram e contaram casos que testemunharam em suas carreiras”, afirma Tonini, mestre em História Social pela USP.

O cientista social constatou que muitos jogadores que atuam no exterior, ao se depararem com uma realidade diferente e hostil, reafirmam o discurso da “democracia racial brasileira”. Em entrevista para a dissertação, Júnior, ex-lateral do Flamengo, afirmou ter sido discriminado na Itália, por torcidas adversárias quando defendia a equipe do Torino. Num jogo contra o Juventus, uma faixa no estádio continha os dizeres “Júnior, sporco negro!” ou “Júnior, negro sujo!”. Indagado por um companheiro de clube, ele disse não ter visto a faixa, afirmando que nasceu “num país onde a miscigenação é total”. Para Tonini, uma ideia contraditória, tendo em vista os vários relatos atuais de preconceito nos clubes e federações do Brasil.

ok_Ferroviario FC. Beira, Mozambique.
Foto: Jessica Hilltout (Amen Project)

Em campo, nos clubes e nas torcidas
Um exemplo disso é a falta de negros em posições de destaque além do elenco das equipes. Durante o período da pesquisa, entre 2007 e 2010, Tonini constatou que poucos árbitros negros atuavam jogos da Série A do Campeonato Brasileiro e que todos os dirigentes dos clubes na competição eram brancos. No trabalho, o juiz João Paulo Araújo narra episódios de preconceito vividos ao longo de sua carreira, nas décadas de 1980 e 1990. Ele afirma nunca ter sido escalado para apitar uma final do Campeonato Paulista, em função do preconceito dos diretores de clubes da federação. “A estrutura do futebol reproduz o racismo da sociedade. Entre os dirigentes, negros também são minoria. Eles são desencorajados a assumir cargos importantes”, afirma Tonini.

Ele observa que a formação educacional necessária para esses cargos está fora do alcance da maioria dos negros, vindos geralmente das classes pobres. Além disso, muitos deles não têm um histórico de ligação familiar dentro dos clubes, o que é frequente entre os dirigentes. Outro obstáculo é o fato de serem cargos não remunerados, o que afasta da direção dos times quem tem menor poder aquisitivo.

Mesmo dentro dos campos, negros não são bem-vindos em todas as posições. Para o cientista social, existe uma ideia latente, negada pelos treinadores, de que negros não estão preparados emocionalmente para momentos decisivos. Tonini lembra, por exemplo, que antes de Dida, goleiro da Seleção Brasileira de 1995 a 2006, o último negro a ocupar o espaço foi Barbosa, considerado culpado pela derrota na final da Copa de 1950. A tese vale inclusive para outros esportes. O pesquisador cita a derrota do piloto inglês Lewis Hammilton no Mundial de Fórmula 1 de 2007, que foi atribuída por órgãos da mídia brasileira à sua “fraqueza mental”.

Dentre os entrevistados para a pesquisa, seis eram brancos. Três deles, dirigentes do Cruzeiro, Grêmio e Juventude, minimizaram os casos de racismo e afirmaram que há despreparo por parte dos negros para ocupar outros espaços no futebol. Já os jornalistas Juca Kfouri e Celso Unzelte tiveram um olhar diferente, assumindo a existência do racismo e outras formas de preconceito no esporte. Em entrevista, Unzelte citou um jogo entre Corinthians e Palmeiras, na semana do centenário da abolição da escravatura, em que a torcida palmeirense gritava: “Ala, ala, ala… silêncio na senzala!” (ao invés do coro recorrente “Ela, ela, ela… silêncio na favela!”) e “Ão, ão, ão… acabou a abolição!”.

Tonini pretende dar prosseguimento a essa linha de pesquisa em seu doutorado. Nessa etapa, ele quer focar em jogadores que estiveram fora do país a partir da década de 1990 e como eles repensaram a questão do racismo na volta ao Brasil. Para ele, o fenômeno do racismo não é esporádico e deve ser estudado. “Assim, podemos compreender melhor esse fenômeno e trazer para a historiografia as vozes e as experiências dos negros, personagens sempre excluídos”, afirma o cientista social.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego; GUIMARãES, Saulo Pereira. Da cabeça aos pés: como o racismo aparece em todos os níveis do futebol brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 25, n. 2, 2011.
Leia também:
  • 177.29

    Campeonatos e copas: Possibilidades de compreensão do circuito do futebol varzeano de São Paulo (SP)

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
  • 177.28

    A camisa 10 na festa da ditadura

    José Paulo Florenzano
  • 177.27

    Futebol como ópio do povo ou ferramenta de oposição política?: O grande dilema da oposição à Ditadura Militar (1964-1985)

    Pedro Luís Macedo Dalcol