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“Més que un joc”: rivalidades, política, Espanha e a história de Dani Jarque

Daniel Vinicius Ferreira 15 de maio de 2017

Eram mais ou menos 10 minutos do segundo tempo da prorrogação. Era a final da Copa do Mundo da África de 2010. Espanha e Holanda: 0 a 0, e nada decidido até ali. Um contra-ataque rápido da “Fúria Roja” se inicia. No avanço da seleção espanhola, Fábregas termina por colocar Iniesta cara a cara com o goleiro holandês. O meia não perdoa, e solta uma bomba no canto esquerdo de Stekelenburg. Explosão dos “aficionados”: enfim, era o gol! Enfim, a primeira Copa dos espanhóis!

Mas algo a mais aconteceria logo depois daquele gol. Na comemoração, Iniesta tirou a camisa e por baixo, em uma outra camisa se poderia ler: “Dani Jarque siempre con nosotros”.

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Foto de comemoração de Andrés Iniesta, e camiseta original monumentalizados no museu do RCD espanyol. Foto: Daniel Ferreira

Afinal, quem era Dani Jarque? Por que ele deveria ser lembrado num momento ímpar da história do futebol espanhol? Em uma resposta simples, explicar-se-ia que Andrés Iniesta (craque do F.C. Barcelona) estava fazendo uma homenagem ao seu amigo, Daniel Jarque i González, capitão e jogador do RCD Espanyol de Barcelona (o rival local do F.C. Barcelona). Jarque havia falecido por um infarto, no ano anterior em Florença, em uma pré-temporada que sua equipe realizava na cidade italiana. Dani e Iniesta eram amigos desde crianças, e jogaram juntos por todas as seleções de base da Espanha.

Mas, como se disse, essa seria uma simples resposta. O olhar de historiador automaticamente me conduz a alguns insights: motiva-me a trazer alguns elementos de cunho histórico, político, antropológico e sociológico para uma leitura mais rica do episódio e o seu significado.

dani jarque
Estátua de Dani Jarque no museu do RCD espanyol. Foto: site hallofameperico.com

Estou trabalhando em Barcelona, pesquisando no museu e arquivos do Barcelona e do Espanyol. No museu do Espanyol, percebe-se logo, há uma monumentalização muito clara de uma memória sobre Jarque, e sobre a homenagem feita por Iniesta. Há neste museu uma estátua de Dani e um espaço dedicado apenas a explicar o gesto do meia barcelonista, no final da Copa de 2010. Um dos funcionários do museu me disse um dia, referindo-se a imagem de Iniesta: “esse é o único culé que você vai ver por aqui. Pela primeira e pela última vez!”.

Dani Jarque começou nas categorias de base do time de Cornellá. Fez toda a sua carreira ali, e foi convocado por todas as seleções de base da Espanha. Era um grande ídolo dos “pericos” na ocasião do seu falecimento. Foi um dos líderes da conquista, em 2006, da “Copa del Rey” (uma espécie de “copa do Brasil” aqui na Espanha) um dos raríssimos títulos que possui o Espanyol de ressonância nacional. Foi também, por várias vezes, herói deste clube nas persistentes e frequentes lutas do clube contra rebaixamento pra 2ª divisão em “La Liga” ao longo de sua carreira. Em 2009, recusou proposta de outros clubes para renovar com o “primo pobre” da Catalunha, até 2011. Em 2012, o presidente do clube blanquiblau renomeou o centro de treinamentos da equipe para “Ciudad deportiva Dani Jarque”, como forma de homenagem ao capitão. No minuto 21, de todas as partidas no Estádio Cornellá de Llobregat, os “aficionados” (termo aqui equivalente a “torcedor” no Brasil) batem palmas em referência a Jarque, e a camisa 21, utilizada ao longo da carreira do atleta, foi “aposentada” pelo clube.

De fato, sua morte foi um choque para a comunidade dos “pericos”. Para muitos destes, com quem tenho conversado aqui, é frequente a justificativa de que aficionar pelo RCD Espanyol se trata de um sentimento único. Aliás, essa é a mensagem estampada logo na entrada do seu estádio, em um monumento: “RCD Espanyol 1900, La Força d´un sentiment”. Ou seja, uma entrega incondicional ligada a raízes e valores profundos para além dos resultados em campo, da perda/venda de ídolos precocemente, uma espécie de vontade revolucionária e contestadora de “estar com o menor haja o que houver” e não render-se a unanimidade, aos “turistas”, ao mercado, ao consumismo (e talvez ao cosmopolitismo) que corromperia aqueles valores (uma referência dissimulada ao F.C. Barcelona, certamente). E me parece que Dani Jarque era um grande ícone desse sentimento de entrega, de resistência e de identificação.

"RCD Espanyol 1900 La Força d´un Sentiment" Foto: Daniel Ferreira
“RCD Espanyol 1900 La Força d´un Sentiment” Foto: Daniel Ferreira
"Este sentimento nunca lo podreis comprar". Foto: Daniel Ferreira
“Este sentimento nunca lo podreis comprar”. Foto: Daniel Ferreira
"Nuestra camiseta se defiende con el alma, nuestros colores s sienten con el corazon, si esto no somos nada". Foto:Daniel Ferreira
“Nuestra camiseta se defiende con el alma, nuestros colores s sienten con el corazon, si esto no somos nada”. Foto:Daniel Ferreira

 

 

 

 

 

 

 

RCD Espanyol e F.C. Barcelona são rivais na cidade de Barcelona. Eu diria até que, hoje em dia, é mais o Espanyol que quer rivalizar com o Barcelona do que o contrário, e por motivos óbvios: o Barcelona é um clube global o Espanyol é um clube local. Mas ao longo da história, construiu-se uma rivalidade entre esses dois clubes e isso envolve a história política do século XX na Espanha de uma forma muito arraigada.

Resgatando a História de uma forma bem simples, é preciso dizer que o clube de Cornellá nasceu em 1900, sob o nome “Sociedad Española de Football” fundado por estudantes universitários, e buscando (como se percebe) um identificação nacionalista. Em 1912 receberiam o título de “Real” conferido pelo então rei Alfonso XIII (outros clubes da Espanha também receberiam esse título), e a coroa seria adotada em seu escudo desde então.

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Escudo do RCD Espanyol de 1910/1912. Foto: site do clube.
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Escudo do RCD Espanyol de 1912/1988, jo primeiro escudo com a coroa. Foto: site do clube.
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Escudo do RCD Espanyol de 1988/2005. Foto: site do clube.

 

Por outro lado, em 1899 nasceria o F.C. Barcelona, fundado por estrangeiros e que desde muito cedo estabeleceu laços com a identidade catalã (e não com um nacionalismo espanhol) e com os ideais da república (e não os da monarquia). A rivalidade entre culés e pericos ganharia força após a guerra civil espanhola (1936-39), no período da ditadura franquista (1939-1975) por justamente representarem oposições de ideais políticos no interior do campo esportivo. Nessa época, o Espanyol chamava-se Español, grafia em espanhol com o “ñ”, e não na grafia catalã em que se escreve “Espanyol”, adotada apenas em fins de 1990.

Acrescento também que nos dias atuais aqui em Barcelona, na Catalunha, provavelmente seja uma das épocas em que a identidade catalã mais esteja sendo evocada na História. E por aqui, é muito comum você encontrar bandeiras catalãs que remetem a luta pela independência da Catalunha, a chamada “Senyera Estelada” (a tradicional bandeira catalã com listras em vermelho e amarelo, mas acompanhada da estrela branca sob um triangulo azul) estendidas nas janelas de casas e apartamentos. É claro, existem inúmeras correntes no interior do que poderíamos chamar “catalanismo político”, mas a “Estelada” passa uma mensagem muito clara para os catalães: a independência!

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“Estelada” em uma sacada de um apartamento em Barcelona: imagem muito comum na cidade. Foto: Daniel Ferreira

Pois então, entre os culés de Barcelona (os aficionados do F.C. Barcelona daqui) a ideia de que o Barcelona é a realização da Catalunha como nação, dos ideais de liberdade e da república, e enfim, da independência, permanece. A identidade barcelonista construiu-se ao longo dos anos, erigida como um símbolo da resistência ao franquismo. Um ícone de liberdade, dos ideais republicanos e um espaço onde o ideal de nação catalã poderia realizar-se. Inclusive, o Camp Nou figurou como um dos únicos lugares onde o catalão poderia ser falado durante uma boa parte desse período. São essas razões que sustentam o mote “Més que un club”, pronunciado por Nacís Carreras em seu discurso de posse como presidente do clube em 1968, ter se consagrado tão bem entre os culés de Barcelona (e permanecer firme até os dias atuais) para representar seu sentimento, e a associação entre a identidade do F.C. Barcelona e um ideal de “Catalunha livre”. Enquanto isso, o mesmo discurso coloca o Espanyol como o clube menor, o clube a ser “desprezado”. Nesta visão, o RCDE seria um clube ligado aos ideais nacionalistas e monarquistas, de um estado espanhol historicamente opressor, e símbolo também de uma traição histórica ao ideal da Catalunha livre. Um reduto de franquistas, como foi denominado durante a ditadura.

O lado “perico” (me parece) tem cada vez mais contestado esse “monopólio”, e recentemente reivindica “poc a poc” ser também um ícone representativo do povo catalão, minando esse critério de separação “dentro/fora” historicamente construído e promovido pelo lado culé. Um dos exemplos, nessa direção, que pode ser citado, é de uma faixa frequentemente erigida no estádio, em partidas do RCDE pelos seus aficionados, com os seguintes dizeres: “Catalunya és més que un club”.

Conforme se viu, portanto, o simbolismo do gol e da comemoração de Iniesta na conquista espanhola da Copa da África pode ser compreendida muito além de uma simples homenagem. Seu entendimento pode ser buscado desde idolatria sobre Dani Jarque – a partir de um sentimento muito peculiar dos aficionados do RCD Espanyol – até a própria história política conflituosa da Espanha (ou da construção do Estado espanhol) ao longo do século XX, que forneceu e ainda fornece muitos elementos pra demarcar as diferenças, rivalidade e identidades no interior do campo esportivo espanhol.

Finalmente, há uma ideia que algum tempo tem frequentado as timelines, em “memes” da internet sobre futebol, em que se diz algo como “não é só um jogo” ou “é mais que um jogo” (ou coisa do gênero), acompanhada geralmente de alguma imagem “nobre” de futebol. Acredito que o episódio do Iniesta e do Dani Jarque, por todo simbolismo que carrega e reúne (em termos de rivalidade e de política na Espanha), tem toda a legitimidade para aludir aquela ideia: nesse caso “Més que un joc!”.

Então por hoje é isso. Acompanhe abaixo o golaço de Iniesta, abraço e até a próxima!

https://www.youtube.com/watch?v=nmVstWkIpY0

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Vinicius Ferreira

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Universitat Autònoma de Barcelona (doutorado sanduíche). Estuda a questão das identidades, pertencimentos e a globalização do futebol.

Como citar

FERREIRA, Daniel Vinicius. “Més que un joc”: rivalidades, política, Espanha e a história de Dani Jarque. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 18, 2017.
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