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Das coisas do subúrbio e outras falas: um estádio proletário

Gilmar Mascarenhas 27 de dezembro de 2017

Dos mais de sessenta (ou setenta) estádios que pude conhecer nessa longa trajetória de “boleiro viajante” (ou coisa que o valha), guardo com carinho e nostalgia maior o pequeno estádio Marechal Hermes. Situa-se no bairro homônimo, planejado em torno da caprichosa estação ferroviária inaugurada em 1913, certamente uma das mais belas dentre as dezenas de estações da cidade do Rio de Janeiro, com tijolos maciços ingleses, azulejos belgas e alemães, telhas e arcos de ferro fundido franceses, conjunto devidamente tombado pelo Patrimônio Histórico. Sua vila operária, fundada, não casualmente no dia primeiro de maio do mesmo ano, em especial projeto do então presidente da república, o positivista Marechal Hermes da Fonseca (que empresta seu nome ao bairro), demarca para alguns estudiosos o verdadeiro início das políticas públicas de habitação social no Brasil.  Ao menos foi a primeira iniciativa contundente do governo federal neste sentido, conforme atesta Nelson Nóbrega Fernandes no livro “150 anos de subúrbio carioca”; geógrafo sagaz e grande amigo que infelizmente nos deixou, repentinamente, em 2014.

Situado a aproximadamente 25 quilômetros do centro da cidade, o então longínquo bairro foi planejado para ser um modelo moral de existência digna, higiênica e devidamente controlada da classe trabalhadora, em oposição aos cortiços, com moradias sólidas, ruas largas e arborizadas, escolas profissionalizantes e biblioteca. Não por acaso, o bairro é vizinho da Vila Militar, projetada pelo mesmo Marechal Hermes em 1908, quando ministro da Guerra. Uma aposta na “cidade disciplinar” para combater ao mesmo tempo a efervescência do movimento operário e os comportamentos enquadrados como “malandragem”.

Os planejadores “esqueceram” algo fundamental no bairro que rapidamente se urbanizava, mas sua gente tratou de resolver a grave lacuna com autonomia e espírito lúdico, fundando seu clube de futebol, já em 1915: o União de Marechal Hermes Futebol Clube. O que não surpreende, pois aquela segunda década do século vinte registrou a impressionante criação de dezenas ou centenas de clubes de futebol pelo subúrbio carioca, bem como ligas de bairro, expressão maior do intenso processo de popularização do futebol na capital federal, conforme o livro “Footballmania”, valiosa contribuição de Leonardo Afonso Pereira (2000). Alguns desses clubes suburbanos alcançaram longevidade e êxito entre os “grandes da cidade”, tais como o Olaria (também fundado em 1915), o Bonsucesso (de 1913) e o Madureira (de 1914).

O União de Marechal inaugurou em 1922 o estádio que agora ocupa o centro de nossa conversa. Podemos imaginar a animação e os sentimentos identitários fervendo (e se constituindo) nas disputas locais, bem como no campeonato carioca (o clube foi vice-campeão dos “segundos quadros” no primeiro certame profissional, o de 1933). Entre os anos 1920 e 1950 a cidade provavelmente acolheu muitas dezenas de vibrantes pequenos estádios, numa poderosa rede de sociabilidade que alimentava os circuitos cotidianos de reprodução sociocultural das classes trabalhadoras.

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União de Marechal Hermes em 2011. Foto: Junius/Wikipédia.

Muito pouco sabemos desta história, cuja materialidade foi se perdendo com o progressivo desaparecimento daquelas agremiações, associada também à adesão crescente da gente suburbana aos cinco clubes do circuito “midiático” (então radiofônico e da imprensa escrita), situados todos em bairros nobres ou centrais. Cumpre registrar que desde os anos 1980, dentre nossos colegas historiadores, crescia a vertente da História Cultural, e nela a campo da história oral, que permite o resgate de aspectos não documentados da vida cotidiana de outrora. Mas o futebol não despertou interesse, ao menos no Rio de Janeiro (em São Paulo alguns poucos trabalhos foram realizados, resultando inclusive no tombamento do Parque do Povo), de forma que perdemos definitivamente a grande oportunidade de entrevistar pessoas que presenciaram e foram sujeitos atuantes daquele vibrante universo popular do futebol nos anos 1920 a 1950.

Pois bem, no contexto de decadência do futebol suburbano, o pequeno estádio Marechal Hermes, cinquenta e seis anos depois de sua inauguração, era apenas mais um dentre tantos que agonizavam (ou mesmo desapareciam), deitando um rastro de saudades das tardes animadas de outrora. Foi quando o Botafogo F.R., que havia perdido em meio à crise político-administrativa sua sede histórica de General Severiano, reformou e reinaugurou este mesmo estádio, passando a “mandar” ali os seus jogos.

Naquele 1978, eu era aluno secundarista do Colégio Estadual Visconde de Cairu, no Meier, subúrbio um pouco mais “bem situado”. Aos quinze anos, minha vivencia de estádio se restringia ao Maracanã, que era então o “centro de tudo” (Apenas numa ocasião estivera no estádio Conselheiro Galvão, em Madureira, grande centro comercial e cultural suburbano). Já começara a frequentar, com colegas, a excitante e arriscada “geral do Maraca”, deixando para trás a experiência da infância, de sentar na arquibancada acompanhado de “responsáveis”.

Aliás, peço licença para deixar aqui registrada minha primeira (e inesquecível, claro) partida no Maracanã (os que preferirem podem saltar para o parágrafo seguinte): tinha dez anos quando, no dia 20 de maio de 1973, o Botafogo enfrentou o Flamengo pelo Campeonato Carioca. Logo aos quinze minutos do primeiro tempo, pênalti para o Flamengo, alvoroçando os cerca de setenta mil presentes (público pagante oficial: 56 mil). Paulo César Caju, craque revelado no clube, havia sido dispensado por sua atitude considerada irresponsável e agora atuava no time inimigo[i]. Bem, torci muito para o “traidor” PC Caju perder aquele pênalti, defendido pelo magnífico goleiro Wendell. O Botafogo venceu o duelo por 2×0. Era o jogo de despedida do Roberto Miranda (centroavante que atuava na seleção brasileira), que fez um belo gol tocando de cobertura. Vitória sem surpresas, numa época em que o Flamengo era “freguês” do Glorioso (ficara quatro anos sem vencê-lo, no final dos anos 1960, quando o goleiro Manga costumava dizer que gastava o “bicho” bem antes de entrar em campo contra o rubro-negro). A goleada por 6×0 (jamais devolvida integralmente, pois com requintado gol de calcanhar e aplicada justo no dia do aniversário do rival) estava bem fresca, ocorrida seis meses antes. E o Botafogo tinha disparado o melhor esquadrão da cidade e por que não do Brasil, disputando naquele ano a Libertadores (foi vice do Brasileirão de 1972) dela eliminando o campeão brasileiro, o Palmeiras, com duas vitórias nos dois confrontos diretos, e mais tarde deixando, por um gol apenas, dolorosamente sofrido no último minuto, de decidir a final continental contra o Independiente. Foi justamente no empate em 3×3 contra o Colo-Colo, em Santiago (80 mil pessoas no estádio com capacidade para 40 mil), no jogo que “adiou o golpe” militar chileno, conforme título do livro de Luis Urrutia: ”O Colo-Colo abriu 2 a 0, mas o Botafogo tinha o controle do jogo e conseguiu virar (…) O empate foi nos acréscimos. O país estava paralisado pelos choques políticos, mas aquele gol gerou uma festa incrível. Foi uma noite de Carnaval em Santiago”.

Arroubos botafoguenses à parte, a nova casa do clube foi reinaugurada em 22 de outubro de 1978 numa partida entre Botafogo e Portuguesa da Ilha, vencida pelo alvinegro por 2 a 1, diante de vinte mil pessoas acotoveladas, entre elas este que agora escreve. Era um simpático estádio de madeira, como foi a totalidade da primeira geração de nossos estádios. Há poucos remanescentes, pois em diversos países e cidades eles foram interditados e obrigados a reformas, devido ao grave risco de incêndios. Destes, experiência marcante foi para mim assistir no ano 2000, em Buenos Aires, (por ocasião do III Encuentro Deporte y Ciencias Sociales promovido pela equipe Area Interdisciplinária del Deporte, da qual fui membro), junto a Christian Bromberger (nosso “mestre”), Tulio Gutterman e outros pesquisadores a um jogo no estádio do lendário Ferro Carril Oeste, “el templo de madera” em Caballito, igualmente situado em subúrbio ferroviário.

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Estádio Arquitecto Ricardo Etcheverry, do Ferro Carril Oeste, justo no ano de nossa visita. A partir de 2013 iniciaram a substituição da madeira pelo cimento. Foto: Facundo Diez/Wikipédia.

O estádio Marechal Hermes foi logo rebatizado, homenageando Mané Garrincha. Naqueles idos de 1978 e 1979, o Botafogo voltava a apresentar um bom time (ainda que bem inferior aos esquadrões de 1961-62, 1967-68 e 1972-73), liderado agora pelo craque Mendonça e tendo como dupla de ataque os ariscos Luisinho Tombo e Dé (o “Aranha”). No Brasileirão de 1978, na semifinal contra o São Paulo, no Morumbi, após o vencer o jogo de ida, precisando apenas do empate para decidir o título nacional, sofremos uma virada de 3 a 2 com polêmica arbitragem. Aliás naquele ano o Botafogo alcançou a invencibilidade de 52 partidas oficiais, recorde nacional jamais ultrapassado, apenas igualado pelo Flamengo no ano seguinte, justamente interrompido pelo alvinegro carioca, em jogo histórico que pude presenciar, posicionado junto a mureta de proteção da arquibancada (a mesma que fatalmente desabou em 1992), agachado de lado para o campo e assim usando quadris e ombros para não ser esmagado pela multidão (lembro de não poder sair dali no intervalo). Em jogos do campeonato brasileiro, o Botafogo ainda detém o recorde inigualado de quarenta e dois jogos sem derrota, conquistado exatamente naquela época. Marechal Hermes foi um autêntico “alçapão” a colaborar nesta façanha.

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Foto: Reprodução.

O time reanimou a vida suburbana em Marechal Hermes, ao longo daquele 1979, com algumas goleadas no Campeonato Carioca (7 a 1 sobre a A.D. Niterói, antigo clube Manufatura, de fábrica, e 6 a 0 sobre o Bangu), bem como no Campeonato Nacional (6 a 1 no São Bento-SP). Alegrias que não esqueço, em meu último ano colegial. Eu mesmo não entendia plenamente por que amava tanto aquele estádio “precário”, símbolo da decadência e da má gestão do clube. Sentia-me em casa ali. Gostava da possibilidade de interlocução direta com os jogadores, juiz e comissão técnica: nossos gritos e xingamentos sendo ouvidos, bem como nossas valiosas “dicas” aos jogadores (“abre mais”, “avança”, “esse marcador tá com medo, vai nele”, “tá cansado”, “pega fulano”, etc.). Éramos autênticos protagonistas da festa, diferente do Maracanã. Bem mais tarde, estudando as feiras livres (mestrado) e o futebol (doutorado) pude entender essa inclinação pessoal pelo estudo dos espaços públicos, seu espírito lúdico e suas sociabilidades.

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Estádio Marechal Hermes. Foto: Reprodução.

Importante registrar como era plenamente acessível aos mais pobres comparecer ao estádio. O bilhete de trem custava algo inferior a 1,00 (hum real) de nossos dias, já que o salário-mínimo de 1979 permitia adquirir mais de mil bilhetes. Quanto ao valor do ingresso aos jogos em M. Hermes, ouso supor que custariam algo entre cinco e dez reais. Decerto, tábuas de madeira não são confortáveis, tampouco ter suas sandálias “furtadas” por moleques brincalhões que transitavam por baixo das “arquibancadas”, e que frequentemente davam beliscões, arrancavam pelos de nossas pernas ou mesmo nos cutucavam com cabos de vassoura. Mas era bem divertido. Ambiente de circo mambembe, ainda uma experiência urbana comum (embora já em declínio) naquela época.

Abruptamente, a partir do ano seguinte (1980), com meu ingresso como estudante de Geografia na UFF, simplesmente “abandonei” o futebol, que era então visto como maldito e poderoso “ópio do povo”, inimigo das causas populares, para mim uma súbita e desconcertante descoberta. Aqueles que frequentaram o movimento estudantil de então sabem do quanto os torcedores eram considerados “idiotas alienados”. Ainda que movimentos como a Democracia Corinthiana contribuíssem mais tarde para atenuar esse preconceito contra o futebol. E assim, somente em 1986, já como professor, retornei paulatinamente aos estádios. Tive que esperar por três anos até gritar “é campeão”, agora frequentando outro pequeno estádio muito simpático, o Caio Martins, escalando o alambrado junto com os goleadores Maurício e Paulinho Criciúma.

O estádio que guardo comigo, colorido pelo sol e pelos gols nas tardes de festa, choca-se profundamente com a imagem atual. O clube ainda usa o equipamento como CT, reflexo direto dos descuidos para com as categorias de base. Reflexo também do abandono de nossos subúrbios. E do abandono de certa “cultura torcedora” pela nova economia do futebol, enamorada do conforto frio das luxuosas arenas. Felizmente, temos ainda estádios “residuais”, onde se pode ter alguma ilusão de reviver a incontornável atmosfera de outrora. Bem gostaria de assistir novamente a bola rolando em Marechal Hermes…

[i] Registre-se, para os mais jovens, que sua transferência, ao contrário dos tempos atuais, não se deu por diferença de capacidade financeira entre os dois clubes, diferença enorme nos dias atuais e em constante aprofundamento. O Botafogo então pagava ao Jairzinho o maior salário do Brasil; o segundo pertencia a Rivelino, do Corinthians. Na década anterior, o Botafogo havia retirado do Flamengo o grande Gerson, e um pouco antes, em 1958, outro craque, o Zagalo. Para além de certo equilíbrio financeiro entre os “grandes” clubes do Rio, e da pouca distância entre estes e os chamados “pequenos”, que traziam em seus elencos excelentes atletas, prevalecia entre os jogadores lógicas outras de mobilidade (afetivas, inclusive) que não a meramente econômica, que hoje governa a vida dos atletas totalmente teleguiados por empresários. O próprio cálculo do “valor” de cada jogador era muito menos preciso e bem mais subjetivo que os sofisticados parâmetros atuais. O futebol se submete hoje à ditadura da econometria.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Das coisas do subúrbio e outras falas: um estádio proletário. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 27, 2017.
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