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Das dificuldades de constituirmos uma conversa pública: Jorginho como exemplo

Em novembro de 2011 presenciei uma partida de futebol que, em meu registro pessoal, ganhou relevo e ainda hoje mora nas minhas melhores recordações. Numa bonita tarde de domingo, com meu irmão e amigos queridos, assisti o Figueirense receber o Corinthians em seu estádio, o Orlando Scarpelli, em Florianópolis. Pela penúltima rodada do Campeonato Brasileiro da Série A, as equipes se enfrentaram com muita expectativa. O Timão, treinado por Tite, em sua segunda passagem pelo Parque São Jorge, liderava a competição e podia chegar ao título naquele dia, caso a combinação de resultados o favorecesse, enquanto o Figueira fazia histórica campanha, com pretensões a uma das vagas brasileiras para a Copa Libertadores do ano seguinte. A peleja, muito equilibrada, terminou com vitória corintiana pela contagem mínima, com gol de cabeça de Liédson – “o Levisinho”, como é chamado em Portugal –, já na etapa complementar.  

O Furacão do Estreito tinha um ótimo time, com destaque para o goleiro Wilson e o atacante Fernandes, ambos ídolos locais, mas também para os habilidosos laterais Bruno e Juninho, o zagueiro Edson Silva – muito técnico e seguro –, o excelente volante Maicon e o centroavante Wellington Nem, jogador revelação do campeonato. Se a vitória não veio e a vaga para o principal torneio sul-americano tampouco (vencido, aliás, pelo Corinthians, na histórica campanha de 2012), a performance foi de excelência, com a equipe alcançando a sétima colocação e, mais que isso, jogando um futebol taticamente bem desenhado, combinando velocidade e toque de bola. O treinador era Jorginho, ex-jogador de carreira exitosa, que fora auxiliar de Dunga na seleção brasileira entre 2006 e 2010. Depois da Copa jogada na África do Sul, ele assumiu o comando do Goiás, chegando ao Figueira no início de 2011 e deixando Florianópolis no final do mesmo ano para treinar o Kashima Antlers, do Japão, onde atuara como jogador entre 1994 e 1998.

Na coletiva de imprensa que sucedeu ao jogo contra o Corinthians, Jorginho justificou a derrota de sua equipe elogiando a qualidade do elenco do adversário. Ele destacou, por exemplo, o meia-atacante Alex, que saindo do banco de reservas, fez o cruzamento para o gol da partida, lembrando de com ele ter convivido no selecionado nacional. Pareceu-me, na ocasião, um tanto constrangedor para os atletas profissionais do Figueira, ainda mais com a ótima campanha que faziam – e logo depois de um bom desempenho como aquele –, verem seu treinador sublinhar as qualidades individuais do oponente, sugerindo com isso, talvez inadvertidamente, que apesar de seus melhores esforços, com os jogadores sob seu comando não ser possível sair vencedor. Lembrei-me desse episódio há poucos dias, quando o agora treinador do Atlético Goianiense, em mais um arroubo verbal contra o técnico do Palmeiras, Abel Ferreira, desafiou-o a ser campeão não com o time estelar do Palestra Itália, mas com o sob seu comando, o da capital de Goiás.

O imbróglio começou porque Abel havia respondido, logo após a classificação na Libertadores sobre o Atlético Mineiro, a um comentário atribuído ao técnico Cuca, do time adversário, sobre as dificuldades de penetrar na defesa do Palmeiras, que jogava em inferioridade numérica. A resposta foi técnica, indicando o que o colega poderia ter feito naquela noite de insucesso para o Galo: atacar mais por dentro e nem tanto pelas laterais do campo. Nada de muito assombroso, mas bastou para que o próprio derrotado, mais Mano Menezes, do Internacional, e a seguir Jorginho, fizessem comentários irônicos ou indignados. O último chegou a dizer que então se criticasse seu comportamento, mas jamais seu trabalho.

Jorginho
Fonte: Divulgação/Atlético GO

A reação de Jorginho, assim como as de Mano e de Cuca, mostra uma dificuldade muito brasileira, que é a de debater ideias em público. Reclama-se de tudo o que é dito, moraliza-se todo tipo de conduta, mas recuamos peremptoriamente à constituição de um espaço público de debate sobre as questões que nos dizem respeito como profissionais ou como amantes do futebol. Por exemplo, a respeito de métodos de treinamento, jeitos de jogar, de encontrar soluções, erros cometidos, entre tantas outras questões. Parece que muitos treinadores têm medo de colocar sua autoridade em risco ao serem flagrados em um erro, ou simplesmente ao admiti-lo. Sim, há os corajosos, não porque se inflamam ou gritam alto, mas porque assumem seus equívocos. Eduardo Barroca, do Avaí, é um deles. Logo depois da derrota para o Cuiabá, no primeiro turno do Campeonato Brasileiro deste ano, ao afirmar que as substituições feitas por ele não haviam surtidoo efeito desejado, disse que, em um caso como esse, claramente a responsabilidade pelo insucesso era sua. A generosidade do debate e a renúncia à posição autoritária são condições para a construção de uma esfera pública, onde os assuntos de interesse de muitos possam livremente emergir no confronto de ideias.

Jorginho foi um excelente jogador, de sucesso no Flamengo, Kashima, Bayer Leverkusen, Bayern de Munique, Seleção Brasileira. Na Alemanha chegou a atuar como meio-campista, uma maneira de mais bem aproveitar o alto nível técnico que apresentava, a exemplo de outros laterais brasileiros na Europa, como Zé Roberto, Leonardo, Michel Bastos e Gilberto. Naquele país aprendeu muito bem o idioma local e não são poucos os que afirmam que o sucesso da seleção treinada por Dunga para o Mundial de 2010 (por um ou outro detalhe o time não avançou mais) se deveu ao então auxiliar.

Naquele time que representou o Brasil na primeira Copa disputada na África, o clima era de procura constante de inimigos, de raiva, como a expressada por Kaká, em uma coletiva, quando confrontou André Kfouri porque o pai do repórter, Juca (que dera a notícia sobre a gravidade da contusão do meia-atacante, que o impedia de ter seu melhor desempenho) era ateu. Jorginho vai por um caminho semelhante, que é, para dizer em uma palavra, o do irracionalismo: quando foi treinador do América do Rio, em sua primeira experiência no cargo, pediu a troca da mascote do clube, que era um alegre diabinho, por uma águia; professa o voto para presidente em Jair Bolsonaro porque é a favor da família (seja lá o que isso signifique); prefere chamar Abel Ferreira de antipático a com ele debater ideias.

Mais ou menos próxima de Leverkusen, onde Jorginho estreou na Alemanha, está Frankfurt. Pois bem, foi lá, no final dos anos 1960, quando o país tentava superar seu passado autoritário, que o filósofo Theodor W. Adorno escreveu um pequeno texto em que diz que sem crítica, não há democracia, que uma coisa é quase sinônima da outra. Não é essa a posição do lateral-direito campeão mundial júnior em 1983, vencedor da Copa de 1994, o melhor depois de Leandro e antes de Cafu. Ele é, infelizmente, a cara do Brasil.

Ilha de Santa Catarina, agosto de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Das dificuldades de constituirmos uma conversa pública: Jorginho como exemplo. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 29, 2022.
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