De “gatinhas” a “acostumadas a perder”: O preconceito da imprensa com as atletas da Seleção Feminina de Futebol
“Daqui a pouco, o futebol das mulheres passa à frente dos marmanjos”. Com esta otimista frase, o cronista esportivo e jornalista Sandro Moreyra encerrava uma nota em sua coluna no Jornal do Brasil de 16 de agosto de 1986 em que relatava o sucesso da equipe do Radar Esporte Clube, “com sua seleção feminina de futebol”, pela Europa. Segundo o texto, o time foi a sensação de um torneio amistoso pelo seu “futebol-arte” e cinco jogadoras teriam recebido propostas de equipes italianas (Jornal do Brasil, 16 ago. 1986, p. 27). Aquele ano de 1986 marcara os primeiros passos para a formação de uma Seleção Brasileira Feminina de Futebol, 72 anos depois da Masculina. Isso após décadas de perseguição e preconceitos, ao ponto de proibir a prática entre as mulheres no país com o decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941[1]. A modalidade, que só estava legalizada no país há três anos, alcançava visibilidade com o sucesso do time do Radar, que representaria ou seria a base da seleção naqueles primeiros anos.
O texto otimista de Sandro talvez seja influência de dentro de casa, já que ele foi filho de Eugênia Moreyra, atriz juiz-forana, um dos principais nomes do feminismo brasileiro do início do século XX. Um texto de exaltação pelas habilidades em campo, exceção de uma “regra” de uma imprensa, que ao longo dos anos, lançou mão de estereótipos de gênero para representar as atletas da equipe nacional.
Um dos exemplos vem do Jornal dos Sports, edição do dia 17 de julho de 1985. Numa série intitulada “Homossexualismo no esporte”, página inteira para tratar do preconceito contra mulheres e lésbicas dentro da modalidade.

No texto da parte superior da página, “Futebol feminino se diz vítima do machismo”, o presidente do Radar, Eurico Lira, explica que “[…] No futebol feminino, as garotas não são tão produzidas quanto em outros esportes, como o vôlei, por falta de incentivo”. Uma narrativa machista, numa matéria em que ainda podemos encontrar trechos como “[…] a maioria das pessoas taxa como homossexuais todas ou quase todas as jogadoras dessa modalidade”.

A segunda reportagem é uma entrevista com atletas da equipe. A manchete dá destaque a uma fala “Metade das jogadoras são homossexuais” editada e fora de contexto, já que a fala original que está no texto é: “Não há homossexualismo somente no futebol feminino. Existe até na alta sociedade. Entre atrizes e atores é grande o número de homossexuais. O futebol feminino está dentro desse contexto. A proporção de homossexuais neste esporte é de 50%”.

No restante da matéria, a maioria dos depoimentos trata, o que o jornal considera por “desvio”, como algo comum a toda sociedade, incluindo os esportes, praticado tanto por homens ou mulheres. Mesmo assim o texto insiste em trechos como “ser chamada de sapatão ou sofrer discriminação de boa parte da sociedade tornou-se comum para as jogadoras do futebol feminino” (Jornal dos Sports, 17 jul. 1985, p. 16).
Um pouco antes, voltando a 1982, temos uma nota no mesmo Jornal dos Sports sobre um possível Mundial organizado pela FIFA: “A entidade decidiu realizar a competição após verificar que a modalidade não é apenas brincadeira de moça e que, em alguns países, principalmente na Europa, é encarada com tanta seriedade quanto o futebol masculino.” Mas no Brasil, “[…] o futebol feminino ainda é encarado como esporte fora da lei.” (Jornal dos Sports, 31 maio 1982, grifos nossos).
Apesar do periódico noticiar o interesse da Federação Internacional de realizar o torneio em outubro daquele ano, apenas em 1991 ele foi oficialmente organizado pela entidade. Mas antes, em 1988, foi realizado um torneio teste, na China.

O torneio foi um sucesso de público, com a “lotação esgotada” em algumas partidas. O Brasil não conseguiu chegar à decisão, mas João Havelange, então presidente da FIFA, garantiu a disputa da Copa do Mundo Feminina em 1991 na mesma China.
Assim, o Brasil chegava ao país asiático como “favorito para o título mundial”. É o que dizia a reportagem do Jornal dos Sports, de 16 de maio de 1991: “Meninas de bola cheia”. Ao mesmo tempo que ressaltava a importância – mesmo que muito pequena – que a Confederação Brasileira de Futebol daria ao time (“CBF, finalmente, resolveu acreditar no futebol feminino e reconheceu oficialmente a sua existência. Formou uma Seleção […]”), ainda encontramos construções de estereótipos de gênero quando vai retratar os feitos futebolísticos das atletas, como na reportagem: “Adriana, uma gatinha que tem charme e cheiro de gol”.
Charme e sensualidade. Essas são as atraentes características da principal jogadora da Seleção Brasileira de Futebol Feminino, quando está fora do campo. Diante do brilho de seus olhos claros e do detalhe dos cabelos negros sobre os ombros, fica difícil de acreditar que a gatinha de 22 anos simplesmente foi a artilheira do recente Campeonato Sul-Americano da categoria, jogando como centroavante (Jornal dos Sports, 16 maio 1991, p. 2, grifos nossos).

Nas duas primeiras Copas do Mundo, o Brasil não conseguiu bons resultados: 9º lugar em 1991 e em 1995, na Suécia. Ainda com pouco destaque na imprensa esportiva.

Em 1999, nos Estados Unidos, o Brasil chegaria ao terceiro lugar. Mas o jornal também daria importância ao fato da fabricação de uma boneca com modelo futebolista: “Barbie joga futebol com Mundial” (Folha de S. Paulo, 11 jul. 1999, Esporte, p. 4).
Os Estados Unidos sediariam novamente o Mundial em 2003. Na estreia da equipe brasileira, a Folha de S.Paulo mostrou como as jogadoras ainda conviviam com incertezas no cenário do futebol feminino, além da falta de apoio e patrocínios: “Brasil disputa Copa dos EUA com atletas desempregadas e desenganadas” (Folha de S. Paulo, 21 set. 2003, Esporte, p. D2). Uma das que estava sem emprego era Marta, então com 17 anos. Chama a atenção também o fato de a CBF utilizar recursos que não fossem técnicos para a convocação da equipe: “Milene, mulher de Ronaldo, não atuou nenhum minuto no Mundial. Convocada por imposição da CBF para atrair mais atenção para o time, ela foi uma das atletas que mais criticaram [o técnico] Gonçalves” (02 out. 2003, Esporte, p. D4).
O Brasil chegaria à decisão em 2007, na China, contra a Alemanha. A derrota por 2×0 é retratada como uma vitória das alemãs organizadas contra brasileiras que ainda não estariam com estrutura e tática para vencer. Dentro de uma realidade de falta de incentivo, teria sido um “Choque de realidade – Alemanha faz brasileiras acordarem – Mais organizadas em campo e principalmente fora dele, europeias derrotam o Brasil e levam o bi mundial na China” (Folha de S.Paulo, 01 out. 2007, Esporte, p. D1).

Marta, maior nome do esporte no país, também foi criticada: “passa em branco pela 3ª vez em 4 finais com a camisa do Brasil” (Folha de S.Paulo, 01 out. 2007, Esporte, p. D2).
O estigma de “derrotadas” (que seria reforçado em derrotas nas disputas do ouro em Olimpíadas) passou a ser uma constante na imprensa. Na Alemanha, em 2011, a capa do caderno Esporte da Folha de S.Paulo trazia: “Acostumado a perder” (Folha de S.Paulo, 11 jul. 2011, Esporte, p. D1) e “Sem título, sem arte – Com futebol feio, seleção feminina de Marta perde para os EUA e dá adeus a Mundial da Alemanha”, reforçando com “A seleção brasileira feminina perdeu como sempre, mas jogou feio como nunca” (Folha de S.Paulo, 11 jul. 2011, Esporte, p. D2, grifos nossos).

Assim, em 2015, no Canadá, a derrota também é creditada a atuações que estariam longe do nível técnico exigido por um selecionado nacional: “Goleira falha, [sic] e Brasil está fora da Copa” (Folha de S.Paulo, 22 jun. 2015, Esporte, p. B2).
Fora da cobertura dos Mundiais, em 2016, um episódio lamentável marcou o relato de uma partida da equipe no Torneio Internacional de Futebol Feminino, disputado em Manaus. Após a vitória por 4×0 sobre a Rússia, o jornal Manaus Hoje publicou a manchete: “Meninas dão de quatro” (Manaus Hoje, 12 dez. 2016). Após a repercussão negativa, o jornal pediu desculpas dias após.

Agora, na França, a seleção busca seu primeiro título mundial. Vemos uma luz no futebol feminino nacional, com a prática crescente entre mulheres e campeonatos com clubes tradicionais do masculino montando times femininos. Para além de desbancar em campo favoritas como EUA e Japão – que fizeram as últimas duas finais, as mulheres buscam quebrar preconceitos. Não são as “derrotadas” das últimas copas. Nem as “gatinhas” de outrora. São atletas. Profissionais. Que trabalham em suas equipes, jogam em alto nível. Que tem excelência no esporte que escolheram, tanto que estão na seleção de um país. E liberdade para serem e amarem quem elas quiserem. A partir do dia 09 de junho, que a imprensa possa realizar a cobertura sem estereótipos, tratando as atletas dentro do campo esportivo. Com o respeito que elas merecem.

Notas
[1] O texto diz: “Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. A questão é como definir compatibilidade de esporte por gênero… Um total absurdo. Decreto-lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del3199.htm. Acesso em: 04 jun. 2019.