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De lá pra cá: duas Copas América e dois Brasis

Paula Lago 4 de julho de 2019

Hiperinflação, eleição direta, Romário e Bebeto, internet, recessão, fake news e VAR: 30 anos de mudanças no Brasil em que só quem não deu as caras foi o tédio

Em 1989, um Brasil corroído pela hiperinflação, mas esperançoso com a promulgação recente da Constituição cidadã e cuidando dos preparativos da primeira eleição direta para presidente após 29 anos de regime militar, recebia a Copa América. Passados trinta anos, em 2019, a competição voltou a um país que conseguiu vencer o dragão da inflação, mas ainda tem outros leões a domar. O desemprego que conta mais de 13 milhões de pessoas, a economia em recessão e uma polarização política acentuada.

Enquanto o técnico Sebastião Lazaroni colocava o time para treinar em 89, o brasileiro corria aos supermercados para fazer a compra do mês, hábito que surgiu com a necessidade de tentar garantir os produtos antes que tudo aumentasse de valor, ou então sumisse das prateleiras.

Capa da Folha de S.Paulo, de 29 de dezembro de 1989, tem como manchete a hiperinflação vivida pelo Brasil na época. Foto: Arquivo.

Dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) mostram que, entre 1980 e 1989, a inflação média no país foi de 233,5% ao ano. Em julho de 1989, quando a bola rolou pela Copa América, a inflação batia 27,74% ao mês. Naquele ano, o índice acumulado foi de 1.972,91%. Os preços dobravam a cada 35 dias.

“O jovem de ontem não tem noção de como aqueles dias eram caóticos. Mas ficou uma marca, gerou um aprendizado. O brasileiro hoje reage e não aceita nem que se toque, novamente, no assunto da inflação”, analisa a economista e botafoguense Elena Landau.

“A hiperinflação é destrutiva, é um tipo de imposto, uma forma de o governo se financiar”, explica. E emenda: “Os salários não sobem, você perde qualquer noção de preço relativo e de eficiência da economia. De uma esquina para a outra, o preço muda. Você não pode implementar nenhuma política pública, como o Bolsa Família. Vejo alguns aprendizados desde então. Mas ainda temos de resolver problemas, claro. O grande fantasma da geração atual é o desemprego, mas há mais perspectivas”.

Sassá Mutema, personagem representado pelo ator Lima Duarte, era um boia-fria que chegou ao poder e mobilizou o Brasil no ano das primeiras eleições diretas depois da ditadura, misturando ficção e realidade. Foto: Reprodução/TV Globo.

Em 1989 havia racionamento para compra de carne e leite, por exemplo. Congelamento de preços. Corre-corre atrás de promoções. A novela do horário nobre – que naquele tempo era mesmo transmitida às oito da noite – tinha um título sugestivo para o momento de caos e transição por que passava o país: “O Salvador da Pátria”, com Lima Duarte interpretando “Sassá Mutema”, um boia-fria que chegou ao poder e era visto por muitos como uma releitura da história de Luiz Inácio Lula da Silva, um dos 22 candidatos na disputa pela Presidência naquele ano, como lembra o crítico de TV e botafoguense Maurício Stycer. A novela das sete, “Que Rei Sou Eu?”, era uma sátira ao jeitinho brasileiro de governar.

“Era um momento muito afetivo, da nova Constituição, da primeira eleição direta, que teve até Silvio Santos como candidato… Por mais que estejamos num momento agitado politicamente, é bem diferente. E 1989 teve também a queda do Muro de Berlim, que foi o símbolo de um processo muito importante de fim da Guerra Fria”, diz Stycer.

Silvio Santos era um dos 22 candidatos na disputa pela Presidência do Brasil naquele ano. Foto: Reprodução.

No futebol, Stycer lembra com certa nostalgia da Seleção daquele ano, com Romário e Bebeto no comando do ataque brasileiro da Copa América, dupla que repetiria o sucesso cinco anos depois, na Copa do Mundo dos Estados Unidos, e nos traria o tetra. “Romário e Bebeto viviam um momento glorioso, jogavam demais e tinham identificação com a torcida. Vejo a seleção de hoje e percebo que não conheço a maioria dos jogadores. Conheço o Coutinho, o Firmino… mas o [Everton] Cebolinha não faço ideia de quem seja! Não tem mais afinidade com o torcedor, é esquisito.”

Questionar, cobrar e vaiar a seleção brasileira não é comportamento exclusivo do torcedor de agora, como às vezes somos levados a acreditar. A tão cobrada conexão com a Amarelinha depende de resultados.

“Se a Seleção jogar bem, a torcida aplaude. Se jogar mal, a torcida vaia. É esta a equação. É preciso oferecer um bom espetáculo para conquistar o torcedor”, explica o ex-zagueiro André Cruz, integrante daquele time da Copa América de 89.

Seleção brasileira, Copa América de 1989. Foto: Divulgação/Acervo CBF.

Um dos pontos que o impressionou naquela competição deixa bem evidente esta relação. Desacreditados, na primeira fase os jogadores foram recebidos debaixo de vaia na Bahia. “Nós tínhamos um time que era espetacular. Os baianos, porém, contestavam a não convocação do Charles, que era um cara bacana e um ótimo jogador. Eles não aceitavam que o Charles estivesse fora. A torcida vaiava a todo momento. Renato Gaúcho tomou até uma ovada na cabeça. Na Bahia tivemos muitas dificuldades, mas depois a Seleção se firmou, acabou passando por cima de tudo e vencendo [a Copa América]”, diz o ex-jogador que atualmente representa atletas jovens, é sócio numa escolinha de futebol e também presta consultoria a clubes menores. “Eu cheguei a sair do mundo do futebol, mas é muito difícil… a gente acaba voltando.”

A economista Elena Landau, que já atuou na administração esportiva, traça uma relação entre economia, Seleção Brasileira e humor do torcedor: “Quando a economia vai bem, o futebol vai bem e isso influencia até o torcedor que, empregado, consegue ir ao estádio acompanhar [clube ou seleção]”.

Se sob o ponto de vista da inflação os aprendizados nestes últimos trinta anos foram positivos, na política ainda estamos marcando passo, avalia Janio de Freitas, colunista da Folha de São Paulo, jornalista profissional desde 1954 e flamenguista desde sempre.

Segundo ele, há “diferenças extremas” entre o cenário político de 1989 e o atual. “Em 1989 vivíamos um período de esperança na construção de um país democrático, com justiça social, direitos civis, liberdade assegurada, sem censura. Era uma época complicada pela inflação, mas, apesar disso, não era um país em recessão. Esse entusiasmo era ainda enriquecido pela primeira eleição direta”, avalia.

Capa do jornal O Estado de S.Paulo, de 18 de janeiro de 1989, destaca o Plano Verão. Foto: Arquivo.

“Hoje vivemos o oposto disso, em grande parte. Somos um outro país. Temos uma recessão, com um desemprego gigantesco, mas com inflação muito baixinha. O que era um problema naquela época, hoje não é. E o que era expectativa, esperança, otimismo, confiança, hoje é um desânimo, um desalento grande, uma indagação imensa sobre o que aconteceu e o que vai acontecer com o Brasil a continuarmos nesse mau compasso em que estamos.”

Em trinta anos, o povo brasileiro também mudou. Nas últimas duas eleições presidenciais, a polarização entre quem se identifica com ideias consideradas de esquerda e quem prefere as relacionadas à direita se acentuou fortemente. Segundo o jornalista, nos tornamos um povo dividido em duas “linhas de raiva”. Nessa cisão, restou aquilo que Freitas considera uma imensa falta de conciliação entre as correntes.

“Não se vê nada que sugira uma possibilidade de conciliação num futuro razoavelmente próximo. Somos um outro país, outra economia, outra perspectiva e, tristemente, um outro povo.”

Os avanços tecnológicos provocaram mudanças profundas tanto na forma como se consome cultura e futebol, por exemplo, quanto na maneira como o eleitor se informa e decide seu voto. 

Chamada do SBT para o último debate entre os candidatos Collor e Lula. Foto: Reprodução.

Do ponto de vista político, as fake news preocupam. Eleições mundo afora já foram contaminadas pela disseminação de desinformação e, para Freitas, o fenômeno é tão grave e incontrolável que será preciso repensar o processo eleitoral. “Quando era o dinheiro [que interferia em resultados eleitorais], havia uma porção de evidências para apurar, punir, se fosse o caso, e controlar, mesmo que a posteriori. Até agora não se vislumbra nenhum modo de efetivamente controlar essa máquina subterrânea que são as fake news, que já decidiu eleições nos EUA e vê-se agora que também no Brasil teve uma influência muito grande.”

No futebol, a internet trouxe mudanças também radicais. Hoje é possível assistir às partidas pela TV, pelo computador, tablet, celular, e também acompanhar por uma tela interagindo com outros torcedores através das mídias sociais. 

“O Twitter alterou positivamente a maneira de ver TV, o que inclui o futebol. É uma espécie de substituto da sala de estar, em que você tem a experiência de ver jogo junto com todo mundo, mas à distância. Ele oferece a possibilidade de pessoas que nunca se viram trocarem ideias, comentarem, criticarem [uma partida]. Uma experiência que não existia em 1989. É como se você estivesse em um arquibancada, mas com o benefício de contar com o olhar de outras pessoas, que chamam a atenção para o que você não viu”, diz Stycer.

As redes sociais também promoveram uma proximidade com os atletas que era inimaginável há trinta anos. Se você não gostar da convocação do Tite, pode reclamar diretamente no perfil do treinador. 

E não dá para falar de tecnologia no futebol sem citar o… VAR. Polêmico, presente em todas as conversas sobre o esporte desde sua estreia, o uso do árbitro de vídeo tem o apoio do ex-zagueiro da Seleção, André Cruz. “Eu aprovo. Às vezes tem essa parada, atrasa o jogo, mas nós precisamos fazer com que o futebol fique o mais justo possível. E temos de buscar mais ideias para isso até para evitar tantas simulações dos jogadores”.

Além da parte tecnológica, muita coisa mudou no futebol desde 1989. E Cruz é enfático: seja na Seleção ou nos clubes brasileiros, a técnica tem ficado em segundo plano. “Antigamente, tínhamos jogadores muito técnicos. Eu jogava na Ponte Preta e ia assistir aos jogos da A2 só para ver o Gersinho, da União Barbarense. O futebol mudou, está muito mais rápido, focado na força e estamos deixando a técnica de lado.”

Seleção brasileira, Copa América de 2019. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Os últimos trinta anos foram intensos, certamente. Marcados por avanços tecnológicos, estabilidade econômica, conquistas de direitos, tensões políticas e futebolísticas. Para os próximos trinta, que venham mais inovações e, se possível, mais títulos e menos estresses/preocupações.


Durante a Copa América, Puntero Izquierdo e Ludopédio publicam uma série de reportagens sobre a história e a atualidade da competição.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paula Lago

É jornalista com passagens pela "Folha" e pela Catraca Livre. Foi voluntária no Haiti na Academia de Futebol Pérolas Negras, programa da ONG Viva Rio. Ama viajar. Ama o futebol. E, especialmente, ama viajar para ver futebol por aí.

Como citar

LAGO, Paula. De lá pra cá: duas Copas América e dois Brasis. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 7, 2019.
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