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De quando a vida vai se tornando um rosário de perdas (futebol)

1. Valdir Espinosa

Certa vez escutei de Mário Sérgio, já na condição de comentarista de futebol, um pouco de sua história com Valdir Espinosa. Teriam se encontrado no Esporte Clube Vitória, ambos em atividade como jogadores, o primeiro despontando como craque, o segundo quase encerrando carreira, na cidade de Salvador. Imitando o forte sotaque gaúcho do amigo, Mário contava tê-lo percebido deslocado na nova cidade, oferecendo-lhe então o suporte afetivo que os de fora, com tanta frequência, precisam.

A amizade perdurou, assim como a mútua admiração. Anos depois, já como técnico campeão da Libertadores e preparando-se para a Copa Intercontinental, Espinosa convidou-o para reforçar o Grêmio de Football Porto-alegrense, no jogo único que, em dezembro de 1983, seria disputado em Tóquio contra o Hamburg Sport Verein, da cidade portuária alemã. Mário acabara de assinar contrato com a Ponte Preta, cujo treinador, Cilinho, não queria abrir mão de seu talento. O jogador teria, segundo contava aos risos, infernizado tanto a vida do chefe que, por fim, fora liberado. O resto é história, com o tricolor gaúcho, que contava também com Hugo De León, Mazarópi, Tarciso e Paulo Cézar Lima, chegando ao título com uma atuação de gala de Renato Portaluppi, autor dos dois gols gremistas, um deles na prorrogação.

Valdir Espinosa não resistiu a uma cirurgia no abdômen e faleceu no dia 27 de fevereiro de 2020. Foto: Rodrigo Rodrigues/Grêmio FBPA.

Espinosa conhecia Renato dos tempos de Esportivo de Bento Gonçalves, primeira equipe a lhe oferecer trabalho como técnico de futebol. O jovem ponta-direita transferiu-se para o Tricolor a pedido do jovem treinador. Estiveram juntos em outros momentos, os dois fora das quatro linhas, como no Fluminense e novamente no Grêmio, outra vez campeão da Libertadores, em 2016.

Espinosa teve uma carreira de muitos títulos, entre eles o épico Campeonato Carioca de 1989, conquistado pelo Botafogo depois de vinte e um anos de jejum. Nome de filósofo, de personagem dos romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza, nome próprio, morreu há pouco mais de um mês.

2. Mário Sérgio

Falcão conta que Mário Sérgio foi para o Internacional de Porto Alegre, em 1979, depois de conversarem em uma partida festiva em dezembro do ano anterior. O grande meio-campista admirava a habilidade do ponteiro-esquerdo com a bola, além de sua incrível capacidade de olhar para um lado e fazer o passe para o outro. O Inter foi campeão brasileiro invicto, o recém-chegado fez uma temporada primorosa de lançamentos, passes, dribles, toques de primeira, gols.

Foi um jogador excelente. Além dos vitoriosos Inter e Grêmio, contaram com Mário Sérgio várias outras equipes, como o Flamengo e a Máquina Tricolor do Fluminense, em 1975. No começo dos anos 1970, no Vitória, compôs um ataque arrasador com André Catimba e Osni, que também se destacaram em outros clubes brasileiros. Dez anos depois atuou pelo São Paulo, quando chegou à equipe nacional que se preparava par a Copa de 1982, na Espanha. Lembro da emoção do jogador ao comentar a convocação feita por Telê Santana, citando a recorrente pergunta que o filho pequeno lhe fazia: “Pai, se você é craque, por que não joga na seleção?” No Mundial em que o time do Brasil encantaria, mas perderia, ele não esteve.

Mário Sérgio, vestindo a camisa do Internacional, disputa bola com vascaíno na final do Campeonato Brasileiro de 1979. Foto: Reprodução.

Preterido por Telê Santana, Mário não voltaria ao selecionado, e já na carreira de treinador teve lá suas escaramuças com aquele que então já dirigira o São Paulo bicampeão da Libertadores e da Copa Intercontinental e que atuava como comentarista esportivo. Uma delas foi sobre a maneira de jogar de Zé Elias, que Mário promovera ao elenco profissional do Corinthians, diretamente da equipe juvenil, sem passar pelos juniores. Certa rispidez do volante seria orientação de seu treinador, sugeria Telê.

Mário Sérgio fez ótimo trabalho no Corinthians, quando chegou perto de levá-lo à final do Brasileirão em 1993 e encaminhou o time que conquistaria a Copa do Brasil em 1995. No valente e organizado Figueirense, chegou ao vice-campeonato do mesmo torneio, em 2007. Teve outros bons trabalhos como treinador e foi um ótimo comentarista na televisão. Morreu, como tantos, no acidente que vitimou quase todo o time da Chape, em novembro de 2016. Viajava para a transmissão da primeira partida da final da Copa Sul-americana, quase chegando a Medellín.

3. Telê Santana

A torcida do São Paulo saúda Telê Santana em jogos do time, ainda hoje. Não é para menos, foi de enorme sucesso a passagem do treinador pelo clube. Além dos vários títulos conquistados, ficou a imagem da dedicação e do cuidado com os detalhes. Conta-se que ele ensinou Cafu, ao fixá-lo na lateral-direita, a fazer cruzamentos, inclusive demostrando ele mesmo como fazer; que os campos de treinamento tinham o gramado supervisionado diariamente pelo treinador; que orientava atletas a não exagerar nos gastos e poupar para o futuro. Marcelinho Carioca, lançado por ele entre os profissionais do Flamengo, relata ter adquirido um fusca usado com os primeiros rendimentos, mas que o estacionava longe do local de preparação, com medo da bronca de Telê e de suas consequências. O Pé-de-anjo, que depois se transferiria quase de graça para o Corinthians, morava muito longe e gastava tempo demais com transporte público para poder participar da rotina de preparação.

A primeira vez em que ouvi falar de Telê foi, criança, assistindo à final do Campeonato Gaúcho de 1977, quando o Grêmio derrotou o Internacional, interrompendo uma sequência colorada que já chegara aos oito anos. O gol da vitória foi de André Catimba, o que compusera o ataque do Vitória com Mário Sérgio. Na comemoração, ao tentar um salto mortal, André teve uma distensão muscular, foi ao chão e teve que ser substituído. Fiquei surpreso com a situação, que demorei a compreender, e com a vitória do Tricolor. Campeonato Gaúcho, nos meus poucos anos de vida, era até então coisa do Inter.

Telê Santana, na época em que comandou a seleção brasileira. Foto: Reprodução.

Fui acompanhando a carreira de Telê que, claro, teve seus reveses. Duas Copas do Mundo dirigindo a seleção, duas desclassificações antes das semifinais, apesar do belo futebol de 1982; um excelente Palmeiras do final dos anos 1970, mas que não alcançou títulos; a derrota para o Corinthians na final do Brasileiro de 1990. Ao final da partida decisiva, título encaminhado para o Timão (o primeiro nacional), Juarez Soares, da TV Bandeirantes, criticava o treinador pelo não aproveitamento do lateral Zé Teodoro. Luciano do Valle narrava.
Telê morreu em 2006, dez anos depois de sofrer uma isquemia cerebral que desde então o impediu de atuar à beira do campo.

4. Fantasia

Espinosa, Mário Sérgio, Telê (e Cilinho, com Luciano mediando e Juarez nos comentários). Dá para imaginar uma boa conversa entre eles, mesmo com algumas discussões mais pesadas e com a esperada dose de nonsense. Seria ótimo poder ouvir esses personagens, cada um com seu jeito de pensar e falar, mais ou menos turrões, apaziguadores, geniosos. Todos com visão privilegiada do futebol. Recordo-me deles.

Ilha de Santa Catarina, março de 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. De quando a vida vai se tornando um rosário de perdas (futebol). Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 23, 2020.
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