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Debaixo do tapete

Si­lvio Ricardo da Silva 1 de setembro de 2014

“Time que ganha não se mexe”! Os cinco títulos mundiais conquistados pelos brasileiros ao longo desses 84 anos de Copas do Mundo e o título mais recente de Campeão da Copa das Confederações, realizada no Brasil em 2013, ajudaram a empurrar para debaixo do tapete algumas “poeiras” que estão precisando ser amplamente debatidas e encaradas nos últimos anos do nosso querido esporte. O tão propalado “país do futebol” aquietou o que clamava por discussões e ações. Ao contrário, a derrota acachapante sofrida pela seleção brasileira de futebol diante da seleção alemã no dia 8 de julho deste ano no Estádio Governador Magalhães Pinto, o reconhecido Mineirão trouxe a necessidade de repensarmos o nosso futebol e debater alguns desses respectivos temas.

O primeiro deles que me parece mais urgente é o modelo de organização do futebol brasileiro. Há muito, o nosso futebol era enaltecido dentro dos campos (principalmente após 1958) e criticado fora deles, com argumentos que apontavam uma grande desorganização, uma administração centralizada, um personalismo doentio de seus dirigentes e a presença de um Estado antidemocrático que por vezes, tentava tirar vantagem da popularidade do futebol.

Essas críticas ao modelo de organização do futebol brasileiro foram na década de 1990 um prato cheio para que o modelo neoliberal apresentado na gestão econômica do nosso país chegasse ao futebol através da Lei Pelé, que substituía a Lei Zico, um primeiro ensaio desse atual cenário.

Torcedor durante a derrota do Brasil para a Alemanha na Copa do Mundo. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

A lei tinha o discurso de dar transparência e profissionalismo ao futebol nacional, disciplinar a prestação de contas por dirigentes de clubes e a criação de ligas, profissionalizar as gestões e conceder aos jogadores o direito do seu passe.

Teoricamente, a lei buscava dar liberdade aos jogadores, que antes eram presos aos clubes. Na prática, atendeu aos interesses dos empresários de futebol. Um grupo que se locupleta através das transações de atletas, enfraquecendo cada vez mais os clubes, que se veem em muitos casos dependentes desses empresários para formar seus plantéis a cada semestre.

É a partir desse modelo de organização que os torcedores passaram a não terem mais seus times na “ponta da língua”. O time muda a cada semestre, o pertencimento clubístico e a paixão, são desrespeitados de forma vil, em nome do lucro de um grupo que pouco se importa com aquilo que diferencia o futebol dos outros esportes: o vínculo do torcedor com o clube do coração, o sentimento que passa de geração em geração, que ressoa como um valor, assim como a religião e que não pode ser tratado apenas como negócio.

A categoria de base dos clubes não forma mais jogadores para os respectivos clubes e sim para serem vitrines desses empresários que mediam transferências milionárias, visando o lucro próprio. Tudo feito com pouca transparência e muita pressa.

Torço e acredito que o Estado se movimentará e mediará um dialogo com os clubes, com a mídia séria, com atletas e com a academia, que muito tem produzido, no sentido de frear essa lógica perversa e mercadológica, disfarçada de moderna que vem acometendo o nosso futebol e dar uma nova diretriz. O futebol é parte da nossa cultura, um patrimônio, caro para muitos brasileiros e não ser vilipendiado dessa forma por aqueles que o administram pensando nos seus respectivos lucros.

O futebol tem sido administrado pelas elites brasileiras. Dirigentes ricos, de famílias tradicionais. Raras são as exceções. E também pela mídia, com o monopólio de uma determinada empresa de comunicação. Assim sendo, trago aqui um segundo ponto a ser debatido e quiçá repensado: há uma tentativa de elitização do futebol. Em pesquisas que fazemos no Mineirão, vemos que um determinado grupo social (pessoas de menor poder aquisitivo) foi afastado do estádio. Há um grande grupo que ainda permanece. São pessoas remediadas economicamente, que optam pelo futebol como seu lazer e apoiam seus clubes, mesmo com o alto valor do ingresso que tem sido cobrado. Esses torcedores por vezes se associam aos programas de fidelidade oferecidos pelos clubes ou passam a ir a jogos de tempos em tempos, sem aquela tradicional fidelidade que é marca do torcedor. Como pode um trabalhador ser frequente em um estádio com um jogo terminando a meia noite? Tudo leva a crer que não se deseja esse grupo lá e que o lhes sobra é acompanhar o seu clube do coração pela TV.

José Maria Marin, atual presidente da CBF. Foto: Bruno Domingos – Mowa Press.

Esse enfraquecimento da relação do clube com o torcedor é sob minha visão, um tiro no pé do nosso futebol. Todos nós queremos um estádio limpo, confortável, seguro, onde todas as pessoas se sintam a vontade e sem constrangimentos. Mas será que para termos esse modelo de estádio, precisamos mesmo banir um determinado grupo social? Essa máxima, da exclusão dos torcedores mais pobres, em detrimento da presença de um torcedor consumidor é algo que deve ser questionado. A média de público nos jogos brasileiro é baixa. Torcedor se forma é no estádio!

Temos possibilidade de contemplarmos uma diversidade considerável de torcedores nos estádios, fazendo a festa que sempre fomos acostumados e mantendo acesa a paixão pelo futebol. Quem sabe a volta da geral, ou de outro espaço para que os torcedores se sintam mais a vontade, não seja uma boa opção? Na tão comentada Alemanha, muitos estádios dão a possibilidade do torcedor ver o jogo em pé, com preços mais acessíveis. A média de público lá é três vezes superior a nossa.

Por fim, após tratar do modelo de administração do futebol brasileiro e da relação imposta pelas elites dirigentes entre torcedores, estádios e clubes, quero me reportar a um terceiro ponto: sobre o que acontece do lado de dentro do campo. Tivemos durante muito tempo a fama de termos um futebol clássico, com toques e dribles requintados, muita posse de bola e o que temos visto há algum tempo é que seleções como da Espanha, Alemanha e Holanda têm assumido essa característica. Além de serem times com uma excelente disciplina tática (característica há muito tempo conhecida), agora não mais dão aqueles chutões e chuveirinhos para área.

Schweinsteiger intercepta lançamento da seleção brasileira durante a semifinal da Copa do Mundo. Foto: Bruno Domingos – Mowa Press.

Nessa Copa nossa seleção sentiu a falta de um meio campo que fizesse a ligação da defesa para o ataque. As bolas eram rifadas, na esperança do Neymar dominá-las e chegar a gol. O que mudou? Os países estrangeiros citados tiveram a humildade de formar jogadores para seus clubes e respectivamente para suas seleções, aperfeiçoando o que era necessário e aprendendo o que não sabiam. A Copa mostrou que no futebol globalizado não existe mais o “time bobo” e que devemos buscar sempre nos aperfeiçoar, pelo bem do futebol. Fizemos o contrário nessa Copa. A nossa seleção acreditou que não precisava aprender nada com ninguém e que a nossa fama nos bastava. O futebol brasileiro precisa de mais pesquisas e intercâmbios. As categorias de base não podem ficar sob a responsabilidade somente de ex-jogadores, que não tiveram oportunidade de cursos de formação e que se apegam a máximas que são repetidas ao longo dos tempos, sedimentando verdades que não fazem sentido. A experiência de um ex-jogador é importante, mas ela tem que estar associada a um grupo interdisciplinar que veja o futebol pelos mais diferentes prismas e através de diferentes ciências. Não há mais espaço para o personalismo em uma comissão técnica. Trabalhar em grupo é essencial, respeitando a contribuição que cada área possa dar à equipe.

Dessa forma, creio que o futebol brasileiro não será o mesmo e que essa Copa nos dará um legado muito maior do que já vimos até agora. Trabalhar para ver!

 

Esse texto foi originalmente publicado no Estado de Minas e do Correio Brasiliense logo após a derrota do Brasil.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SILVA, Si­lvio Ricardo da. Debaixo do tapete. Ludopédio, São Paulo, v. 63, n. 1, 2014.
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