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Década de 1970: o impulso globalizante e desobediente do futebol feminino

Leda Costa 23 de novembro de 2016

Num ano em que o planeta parece estar se movendo na direção oposta à democracia e à tolerância, tenho buscado histórias que me confortem, ao me mostrar que atos de resistência e rebeldia voltados contra o preconceito, também são parte vital da máquina do mundo. A busca por aconchego me levou a novas viagens pela história do futebol feminino. Um dos aspectos mais fascinantes que há no futebol feminino é o fato de se tratar de uma modalidade cuja história se desenrolou à margem do profissionalismo, da legitimação da FIFA e, até mesmo, da legalidade. Durante anos, mulheres atuaram em campo graças a iniciativas de indivíduos e grupos que se voltaram contra as sanções sofridas por essa prática esportiva, impostas em diversos países e Federações, como foi o caso do Brasil. Além das desaprovações, também foi necessário passar por cima da falta de interesse da FIFA que durante anos não deu apoio financeiro e nem mesmo reconheceu, oficialmente, o futebol feminino.

Se o futebol feminino hoje em dia é um esporte promissor, mesmo com todos os problemas que o cercam, creio que isso se deve a diversas manifestações de uma espécie de desobediência civil, para fazer uso da famosa terminologia criada por Henry Thoreau no século XIX (1997). A desobediência foi gesto fundamental para manter a modalidade viva. Foi sob proibição e não-legitimação das Federações que o futebol feminino caminhou por décadas, com dificuldade, mas sendo capaz de lotar estádios e mobilizar atos coletivos de resistência. Durante a segunda Guerra Mundial, por exemplo, a Inglaterra assistiu ao surgimento de muitos times femininos compostos por operárias. De todos os times formados, o mais popular, sobretudo devido a sua qualidade técnica, foi o The Dick Kerr Ladies que jogou mais de 800 partidas ao longo de sua existência. O The Dick destaca-se na história do futebol feminino por sua popularidade e por ter persistido a continuar jogando mesmo após o fim da guerra e mesmo sendo impedidas de usarem os gramados da liga inglesa de futebol. Enquanto muitos times acabaram, o The Dick continuou jogando, fazendo algumas excursões internacionais. Sua principal jogadora foi Lily Parr que conseguiu a façanha de marcar cerca de mil gols na sua longa carreira futebolística que durou mais de 30 anos.

Na América Latina, coube a Costa Rica o papel da vanguarda do futebol feminino. Em 1949, os irmãos Fernando Bonilla Alvarado e Manuel Emilio fundaram o Deportivo Femenino Costa Rica F.C que durante cerca de um ano atuou de modo clandestino em um campo particular devido ao preconceito da época. No dia  29 de março de 1950,  o Deportivo jogou uma partida no Estádio Nacional. Entre os anos de  1950 e 1960 o Deportivo fez uma série de excursões por diversos países do continente americano como Honduras, Guatemala, Cuba, Panamá, Colômbia e em 1963, em sua última excursão, visitou o México (NADEL, 2015, 50). Esse boom do futebol feminino na Costa Rica em parte se explica pela influência dos movimentos feministas presentes no país a partir dos anos de 1920 e que fizeram do futebol uma bandeira de luta pela “igualdade de gênero” (GAITÁN, 2016). Outro aspecto a ser considerado diz respeito às políticas públicas de incentivo ao esporte que foram atuantes nos anos de 1950 e 70 (GAITÁN, 2016). Finalmente, é válido destacar os interesses mercadológicos daqueles que vislumbravam a divulgação da modalidade, considerando-a ser financeiramente viável. Em 2014, por conta da realização da Copa Mundial de Futebol Feminino Sub-17 na Costa Rica, fez-se uma homenagem ao Deportivo, que pode ser acessada na internet:

Na Costa Rica, ao longo das décadas de 1950 e 60, foi notável iniciativas de formação de diversos outros clubes femininos de futebol como, por exemplo, Club Sport La Libertad, Evita Perón que também excursionaram para alguns países da América central, participando de eventos muitos dos quais organizados pelo jornalista e dirigente esportivo, Franklin Monestel Vicenzi que foi o primeiro presidente da Associação Desportiva de Futebol Feminino, fundada em 1999 (GAITÁN, 2016). O  fato é que as excursões desses times femininos, especialmente o Deportivo, conseguiram fazer despertar o interesse pela modalidade, sobretudo, no México país que participou de dois importantes momentos da história do futebol feminino

Em 1970, entre os dias 06 e 17 de julho, realizou-se o primeiro Campeonato de Futebol Feminino que contou com a participação de seleções como Itália, Dinamarca, Alemanha, Inglaterra, Áustria, Checoslováquia, Suíça e México. A competição foi realizada com apoio da Federação Internacional do Futebol Europeu Feminino (FIEFF) e teve como campeã, a Dinamarca.

Cartaz do Calcio Femminile.
O Globo, 16/07/1970, p. 20

Entusiasmado com o terceiro lugar obtido na Itália, o México aceita receber o II Mundial Feminino de Futebol, com a presença da Argentina, Inglaterra, Dinamarca, Itália, França, Holanda, Suécia, Áustria e México. Apesar de grande parte dos dirigentes esportivos, jornalistas e autoridades médicas se mostrarem contrários à prática do futebol feminino (TAJER, 1998), o campeonato foi um sucesso. Um sucesso financeiro, especialmente, para os organizadores do evento. A II Copa contou com o apoio da imprensa que promoveu a competição, mesmo que, muitas vezes, fazendo uso de discursos machistas e preconceituosos, demonstrados especialmente por intermédio de charges publicadas em alguns jornais da época, como demonstra Martha Santillán Esqueda e Fausta Gantús:

Excélsior, 7/08/1971, Metamorfosis, In: ESQUEDA, Martha Santillán. GUNTÚS, Fausta. Futbol femenil en México, una percepción de género a través de la prensa al inicio de los años setenta. Esporte e Sociedade. ano 5, n 15, jul.2010/Out.2010
Excélsior, 7/08/1971, Metamorfosis, In: ESQUEDA, Martha Santillán. GUNTÚS, Fausta. Futbol femenil en México, una percepción de género a través de la prensa al inicio de los años setenta. Esporte e Sociedade. ano 5, n 15, jul.2010/Out.2010
El Día, 28 de agosto de 1971, sección Rueda en el deporte: “A quién le vas” (Caricatura 2). Fin de Semana, Suplemento de El Día, 20 de agosto de 1971: “Las futbolistas” (Caricatura 2). In: ESQUEDA, Martha Santillán. GUNTÚS, Fausta. Futbol femenil en México, una percepción de género a través de la prensa al inicio de los años setenta. Esporte e Sociedade. ano 5, n 15, jul.2010/Out.2010
El Día, 28 de agosto de 1971, sección Rueda en el deporte: “A quién le vas” (Caricatura 2). Fin de Semana, Suplemento de El Día, 20 de agosto de 1971: “Las futbolistas” (Caricatura 2). In: ESQUEDA, Martha Santillán. GUNTÚS, Fausta. Futbol femenil en México, una percepción de género a través de la prensa al inicio de los años setenta. Esporte e Sociedade. ano 5, n 15, jul.2010/Out.2010

Para além do deboche, houve recepções sérias como foi o caso da revista Balón que deu destaque ao mundial

Balón, N.407.
Balón, N.407. (Imagem disponível em http://www.sportsmemories.be/Book.aspx?id=3073
Balón, N.407.
Balón, N.407. (Imagem disponível em http://www.sportsmemories.be/Book.aspx?id=3073
Balón, N.407.

O II Mundial de Futebol Feminino foi organizado por voluntários da Associação Mexicana de Futebol Feminino, sem a chancela da Federação Masculina. A principal jogadora do México era Alicia Vargas, chamada de La Pelé graças a sua habilidade com a bola. O jogo final entre Dinamarca e México teve como palco o Azteca que recebeu cerca de 100 mil espectadores, mesmo contra a vontade da Federação Mexicana que chegou a tentar proibir que o estádio abrisse suas portas para o mundial feminino.

Seleção feminina mexicana de futebol no estádio Azteca. Final do Campeonato Mundial de Futebol Feminino, em 1971.

 

No Brasil, o mundial foi noticiado por alguns veículos da imprensa

O Globo, 16/08/1971, Caderno de Esportes, p.6
O Globo, 06/09/1971, Caderno de Esportes, p.8
O Globo, 06/09/1971, Caderno de Esportes, p.8

A década 1970 merece futuras pesquisas, afinal me parece um período fundamental ao futebol feminino. Além dos dois Mundiais, é importante fazer menção a Women’s FA Cup – denominada de Mitre Thropy até 1976 – competição organizada pela Women’s Football Association, instituição amadora que durou até a década de 1990, na Inglaterra. Há nos anos de 1970, uma espécie de movimento globalizante do futebol feminino, algo que provavelmente foi impulsionado pelo contexto de uma época intensa no que diz respeito à rebeldia e a busca pela libertação, especialmente, a feminina.

Fonte: https://womensfootballarchive.files.wordpress.com/2015/05/1975cupfinal.jpg
Mitre Challenge Trophy fina tie.

Em 1971, no Uruguai, Claudina Vidal chegou a atuar em equipes masculinas, em partidas não oficiais, o que lhe deu fama que correu o mundo, sobretudo após a BBC ter feito uma matéria sobre sua história de vida (NADEL, 2015)  Aqui no Brasil, na década de 1970, as praias do Rio de Janeiro foi o lugar onde mulheres se reuniam para jogar bola, como era o caso de várias empregadas domésticas que trabalhavam no Leblon e após o expediente se juntavam para momentos de sociabilidade e lazer, jogando futebol (Brhuns, 2000). Algumas reportagens de jornais do Rio de Janeiro mostravam o alvoroço provocado por esses jogos que, às vezes, atravessavam a madrugada.

Jornal do Brasil, 20/01/1976. Caderno B, p.4
Jornal do Brasil, 20/01/1976. Caderno B, p.4
O Globo, 11/04/1976, p.18
O Globo, 11/04/1976, p.18

Foi também das areias das praias cariocas que, após a liberação da prática, surgiram diversos times de futebol feminino, entre os quais o Radar que, nos anos de 1980, teve sequência exitosa no futebol de campo (Almeida, 2014).

Somente em 1991, a FIFA, realizou a 1ª Copa do Mundo Feminina, na China, e, em 1996, em Atlanta, a modalidade foi incluída no programa dos Jogos Olímpicos. E assim, chegamos então, aos Jogos do Rio em que vimos o estádio Engenhão lotado para ver a seleção brasileira feminina, no pouco convidativo horário das 22h. Depois foi a vez do Maracanã receber mais de 50 mil pessoas, às 13h, debaixo de um sol carioca inclemente, para torcer pelas meninas em busca de uma vaga na final Olímpica. Eu estava lá, presenciando mais um caminhar de uma história que tem em suas bases a desobediência, pois como já disse Hélio Oiticica, seja marginal, seja herói.

 

Referências

ALMEIDA, Caroline Soares de. O Clube da Rua Mascarenhas de Morais: Memórias do Futebol de Mulheres em Copacabana », Ponto Urbe [Online], 14 | 2014, posto online no dia 31 Julho 2014.

BRUHNS, Heloísa. Futebol, carnaval e capoeira: entre as gingas do corpo brasileiro. Campinas: Papirus, 2000.

GAITÁN. Chester Urbina. El fútbol femenino en Costa Rica (1924-2015). Lecturas: Educación Física y Deportes, Revista Digital. Buenos Aires, Año 21, Nº 221, Octubre de 2016. 

ESQUEDA, Martha Santillán. GUNTÚS, Fausta. Futbol femenil en México, una percepción de género a través de la prensa al inicio de los años setenta. Esporte e Sociedade. ano 5, n 15, jul.2010/Out.2010

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1997.

NADEL, Joshua. The Antinational Game? An Exploration of Women’s Soccer in Latin America. L’HOESTE, Héctor Fernández, IRWIN Robert, POBLETE, Juan. Sports and Nationalism in Latin/o America NY: Palgrave Macmillan, 2015.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. Década de 1970: o impulso globalizante e desobediente do futebol feminino. Ludopédio, São Paulo, v. 89, n. 10, 2016.
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