147.18

Deficiência, esporte e gênero: relações invisíveis

Wagner Xavier de Camargo 12 de setembro de 2021

Robyn Lambird se tornou a primeira pessoa com deficiência não binárie a ganhar uma medalha na história dos Jogos Paralímpicos. Foi a pouco em Tóquio, na edição de verão que acabou de ocorrer. Uma medalha de bronze conquistada na prova de 100 metros rasos do atletismo para pessoas com deficiências de coordenação motora em cadeira de roda (no caso dela, paralisia cerebral), classe T34, com tempo de 18.68 seg. Tal atleta traz um entrecruzamento entre deficiência, esporte e gênero, pouco discutido e bastante mal entendido.

 Robyn Lambird
Foto: Reprodução redes sociais/Robyn Lambird – My Trex Life

Antes de prosseguir, gostaria de tocar no assunto da não binariedade. Quando uma pessoa se desidentifica com o binarismo de gênero, ela recusa a cisgeneridade ou o que lhe foi designado no nascimento (menino ou menina) e propõe um trânsito fluído entre masculino/feminino. Além disso, foge da hetenorma(tividade) instituída socialmente, recusando padrões e comportamentos estereotipados “de homem” ou “de mulher”. Nesse sentido, a sexualidade também é impactada, e uma pessoa não binárie pode não se colocar no espectro da heterossexualidade strito senso. Em termos de pronomes, prefere terminações em “e” (ao invés de “o” ou “a”, artigos comuns que generificam o masculino e o feminino, em português) e também pronomes demonstrativos “elu” e “delu” (no lugar de ele/dele, ela/dela).

Portanto, ao fazer esporte, Lambird propõe uma dupla quebra de paradigmas, mostrando que uma pessoa com paralisia cerebral pode se engajar profissionalmente no esporte de alto nível e, além disso, que seu gênero destoa do que se entende comumentemente na matriz binária. Há aí três camadas de relações que merecem ser detalhadas.

A primeira delas diz respeito a gênero e esporte, um debate árduo e de difícil entendimento. Afinal, as pessoas pensam: ora, o esporte é movido pela igualdade de chances e assim baseado na competição de homens com homens e mulheres com mulheres. Por isso, há as categorias para classificá-los (categorias masculina e feminina). Alguém que não se reconhece como homem ou mulher estaria fora das possibilidades de competição ou deveria “se encaixar” em uma das categorias disponíveis.

Esta é apenas a ponta de um iceberg bem mais profundo. Primeiro porque não há apenas “homem” ou “mulheres” cisgênero – podemos ter homens e mulheres trans(gêneros). Vale dizer que corpos e genitálias não têm uma vinculação sistemática como supõe o senso comum (homens->pênis; mulheres->vagina). Há múltiplas expressões de gênero, que performatizam, igualmente, distintas estéticas sexuais (a heterossexualidade é apenas uma delas).

A segunda camada diz respeito à deficiência e esporte. Aparentemente contraditórios e paradoxais, a deficiência aparece como elemento que contrapõe e interrompe a possibilidade de prática esportiva. O esporte (moderno), por sua história e pelo conhecimento que delegou ao mundo, pressupõe eficiência, desempenho, performance. Por tal pressuposto, o esporte negaria a deficiência.

Entretanto, o esporte adaptado e o específico (criado inerentemente ao campo da deficiência) foram invenções do século XX e, por isso mesmo, normatizações capitalistas de práticas físicas para pessoas com deficiência tornadas atletas. Dessa forma, a realização de práticas esportivas por parte de pessoas com deficiência é uma realidade cada vez mais presente no mundo contemporâneo – em que pese muita gente ainda não saber.

E uma terceira camada se refere à deficiência e gênero, talvez a mais impactante e a que possibilita implodir concepções toscas de senso comum, bastante enraizadas e mesmo discriminatórias. De onde surgiram pessoas com deficiência que não se identificam com homens ou mulheres? Como podem existir pessoas com deficiência que são lésbicas, gays, ou mesmo não bináries, como Lambird?

A percepção é visível e sintomática: os silenciamentos sobre gêneros e sexualidades de pessoas com deficiência nos informam sobre aquilo que não se quer falar (ou reconhecer). Afinal de contas, não é de hoje que se nega o direito a uma sexualidade plena para pessoas com deficiência.

Que pais não ouviram sobre seu filho com Síndrome de Down sobre o “perigo dele se interessar por sexo”? Ou que pessoa em cadeira de rodas não foi perguntada se “aquela região funciona na hora H”? Ou que amputado não teve sua sexualidade questionada quando alguém observou a falta de um ou dois membros inferiores? Até cegos não escapam de perguntas inoportunas: “como vocês fazem sexo sem enxergar”?

São perguntas que ofendem e mostram a limitação humana para entender que um corpo tido como deficiente pode ser generificado/sexuado, independentemente de sua condição funcional, sua orientação sexual ou expressão de gênero.

Por um lado, vigoram no social ideias comuns de que pessoas com deficiência não podem se relacionar afetivamente, muito menos terem relacionamentos. Parece que o estigma da deficiência impõe uma obrigatoriedade de celibato e isolamento, como se a pessoa com deficiência não pudesse explicitar seus desejos afetivo-sexuais e devesse ser assexuada, inclusive, permanecendo sozinha.

Por outro lado, se levarmos em consideração as desidentificações de gênero e as outras formas afetivo-sexuais de relacionamento no campo da deficiência, percebemos que elas são impensáveis na visão de pessoas comuns. “Como é possível um casal de homens gays cegos”? Ou “como uma mulher lésbica pode namorar outra mulher com Síndrome de Down”? E ainda: “no impensável casal composto por um cadeirante trans e uma amputada lésbica, quem é o homem e quem é a mulher na relação”? Perguntas que nada acrescentam e que acabam espalhando estereótipos, discriminações e alimentando desinformações.

Atletas com deficiência acabam sofrendo duplamente com a ignorância do senso comum, ou seja, sob a desculpa de que as pessoas pouco ou nada sabem acerca do esporte que praticam, tais atletas muitas vezes têm que, primeiro, responderem e explicarem suas modalidades esportivas, muitas vezes desconhecidas ou sem referências no esporte convencional; e, segundo, acabam tendo que se posicionar sobre suas vidas privadas (suas intimidades) para informar acerca de seus gêneros e seus sexos, num esforço para se dizerem dentro de certa “normalidade” exigida.

Mesmo antes de se iniciarem os Jogos Paralímpicos de Tóquio 2021, em fins de agosto, uma listagem de atletas “fora do armário” circulava na internet. Eram pessoas com deficiência que não se adequavam ou identificavam com as normativas de sexo/gênero instituídas socialmente e que participariam de tal competição. Atletas lésbicas, gays, bissexuais e mesmo não bináries como Lambird que, a despeito da deficiência, vieram a público falarem de si e mostrarem suas expressões de gênero.

Quinn
Quinn. Foto: Wikipédia

Lambird, nos Jogos Paralímpicos, está para Quinn, atleta de futebol não binárie da seleção canadense, dos Jogos Olímpicos, respectivos medalhistas em seus esportes. Mas estão também em sintonia com demais atletas, que problematizam o gênero no campo esportivo, como Laurel Hubbard, Alana Smith, Carol Gattaz, Tom Delay e a lista segue. Mais do que a constatação de que há outras expressões de gênero circulantes no esporte, faz-se necessário não padronizar experiências, nem mesmo entre atletas com deficiência. Há muito mais nesse campo do que vislumbra a nossa vã sabedoria.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Deficiência, esporte e gênero: relações invisíveis. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 18, 2021.
Leia também:
  • 174.11

    Mídia e direito de torcer no futebol: a Canarinhos LGBTQ+ pela democratização dos estádios

    Marcelo Resende
  • 173.17

    Neoliberalismo, esporte e elitismo descarado

    Gabriela Seta Alvarenga
  • 168.1

    Notas para un archivo de la memoria LGBTI en el deporte

    Juan Ignacio Veleda