Democracia em jogo e torcedores postados na defesa
Soa irônico pensar que em um país com 33 partidos políticos legalizados, o protagonismo na defesa pela democracia parta de torcedores de futebol. Mas foram justamente esses grupos, principalmente os de viés antifascista, que furaram a letargia e propuseram a reocupação das ruas com vozes progressistas.
Torcidas de futebol têm em geral sua imagem construída de maneira pejorativa. O discurso central ignora a diversidade dos grupos e associa todas a atos de insubordinação da ordem, fruto do imaginário construído ao longo do tempo com ajuda da imprensa e entidades estatais (como, por exemplo, Polícia Militar e Ministério Público). Some-se a isso, a acusação de um suposto ‘negacionismo’ pelo fato dos torcedores saírem às suas na defesa da Democracia durante um período em que as autoridades de saúde aconselham o isolamento social para contenção do contágio pelo coronavírus. Como se a escalada fascista esperasse a criação de uma vacina.
Politização e ações além da paixão pelos clubes não são novidade. O nascimento das torcidas jovens, no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, marca uma inegável busca da juventude da época na busca por expressão nas arquibancadas em tempos asfixiantes de ditadura militar. Naquele período, o Brasil conviveu com atos e ideias fascistas por mais de duas décadas.
A Democracia Corintiana não teve medo de pautar a luta por preceitos democráticos dentro de dentro dos gramados. Do lado de fora, torcedores do Flamengo e do Corinthians ostentavam faixas e gritos pedindo eleições diretas para presidência da república.
Esses grupos organizados podem servir como pequenas amostras de comportamentos e discursos que talvez possam ser entendidos como metáforas da sociedade. Embora se observe a população aparentemente passiva diante do avanço do discurso e ações antidemocráticas, São Paulo viu uma aliança ‘supra clubista’ de torcedores com viés antifascista se manifestar na Avenida Paulista, no dia 31 de maio.
Na capital paulista, a torcida Gaviões da Fiel, formada por torcedores do Corinthians, já havia se manifestado contra atos apontados como fascistas. Sua rival histórica, a torcida Mancha Verde, do Palmeiras, emitiu nota dias depois se posicionamento na mesma direção, condenando a presença de “ideologias políticas que pregam supremacia de raças: ideais nazistas; e atitudes fascistas”.
No já citado domingo, uma manifestação reunindo torcedores corintianos (membros da Gaviões da Fiel), palmeirense (Palmeiras Antifascista) e também do Santos (componentes da Torcida Jovem) ocupou aquela que é uma das principais vias paulistanas.
Dentro da ética de rivalidade presente nas arquibancadas e nesses grupos, essa aliança, mesmo que momentânea, configura uma aproximação que talvez seja inédita, ainda mais por se tratar de uma levante pela manutenção da Democracia. Defender a dinâmica democrática desafia pedidos de um autogolpe, intervenção militar e mesmo fechamento da Câmara Federal e do Superior Tribunal Federal, como era feito por apoiadores do atual presidente da República na mesma avenida.
No mesmo dia, no Rio de Janeiro, o coletivo antifascista de torcedores do Flamengo também se mobilizou. Na Avenida Atlântica, em Copacabana, os flamenguistas ostentaram faixa a favor da Democracia com palavras de ordem contra as movimentações de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Uma pequena manifestação pedindo intervenção militar também acontecia na via, palco de manifestações conservadoras e de apoiadores do atual presidente. Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre também tiveram ações de torcedores de clubes das cidades.
Arquibancadas, ruas e torcidas organizadas de futebol são espaços em disputa. Em que pese o desgaste que localiza os grupos de torcedores dentro de um viés negativo e que justifica os ataques desencadeados por clubes, agentes privados e estatais no processo de arenização dos estádios, mas nesse momento a mobilização de alguns desses grupos podem ser um centelha na defesa da democracia.