Há pouco dias, Neymar Jr., atacante do Paris Saint Germain e da seleção brasileira, veio a público para declarar apoio, antes do primeiro turno do pleito eleitoral, ao candidato Jair Messias Bolsonaro. Fez como hoje se faz, em geral, para grandes (e pequenas) declarações públicas (e privadas): utilizando suas redes sociais. Segundo se lê na imprensa, ele teria, porém, se incomodado com reações de seguidores contrários a seu posicionamento. O jogador teria escrito que “Falam em democracia e um montão de coisa, mas quando alguém tem uma opinião diferente é atacado pelas próprias pessoas que falam em democracia. Vai entender ????????????‍??” Imagino que ele também tenha recebido mensagens de apoio, dada a fidelidade que costuma reinar no relacionamento de idólatras com seus ídolos.

A surpresa de Neymar expressa o momento de disputa pelas palavras que se trava na sociedade brasileira. Os conceitos têm história e é razoável que o sentido que possam adquirir se vá alterando no confronto entre tradição e contingências do presente. Isso não significa, todavia, que um deles possa ser simplesmente arrancado de seu enraizamento mais profundo e transformado no que é conveniente. A democracia moderna é o regime que supõe o governo de todos. Se isso é complexo e difícil de alcançar, que lutemos por ele. Aliás, como já várias vezes afirmou Michael Löwy, a democracia é uma exceção em nossa história – e aqui não me refiro, como tampouco o grande intelectual o faz, apenas ao Brasil.

O astro brasileiro não entende, tampouco aceita, o julgamento a que foi submetido, mas seus críticos têm razão. Ao apoiar um candidato que tantas vezes bradou e agiu contra a democracia, ele gera um problema lógico e prático: o exercício da liberdade fica prejudicado quando se defende uma posição cuja consequência é o tolhimento da liberdade. Esta, por sua vez, é uma prática social, e será incompleta enquanto não formos todos livres. Bolsonaro costuma dizer que é preciso governar para a maioria, não para a(s) minoria(s). Se o governo não é para todas as pessoas, então não é plenamente democrático. Proteger minorias é, ademais, um dos grandes papeis que ele pode desempenhar, exatamente porque elas são, em geral, o polo mais frágil dos conflitos sociais.

Neymar
Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Entre os futebolistas, Neymar não está sozinho. Outros o acompanham, como Felipe Melo, Jorginho, Lucas Moura, Thiago Silva, Robinho. São atletas com carreiras excelentes, nenhum deles com um argumento racional para defender Bolsonaro. As raízes que sustentam o comprometimento com o candidato à reeleição se apresentam geralmente de maneira difusa, traduzindo-se em slogans que lembram o integralismo, movimento de inspiração fascista que costumava gritar “Deus, pátria e família”, ou no pânico frente a mentiras como a “ideologia de gênero” e “fim da família”. Às vezes evocam fatos relatados de forma descontextualizada e que são vistos como absolutos em sua interpretação, como os casos de corrupção que impediriam o apoio a Lula.

Seria tolo negar a existência de malfeitos durante os governos de coalizão liderados pelo Partido dos Trabalhadores, fatos que, no entanto, só vieram a público pela independência da Polícia Federal, fruto principalmente do trabalho de Márcio Thomaz Bastos. Ele foi ministro da justiça entre 2003 e 2007, durante todo o primeiro e parte do segundo mandato de Lula. Se este, por sua vez, recebeu favores de empreiteiras que desenvolviam obras de grande vulto, isso por nada é correto e deve ser criticado, mas chega a ser absurdo vincula-los (reforma num sítio, reserva de um apartamento, intermediação de palestras, segundo as acusações) a bilhões de reais desviados.

Não é novidade que no Brasil haja muitas formas de preconceito, entre eles, o de classe. O ódio visceral a Lula tem nele suas origens, materializando-se na indisposição em ver um ex-operário ocupando o cargo máximo do país e consumindo produtos que as camadas médias costumam comprar. O mesmo acontece, ao menos em parte, com Neymar – ele sim, milionário –, cujos luxos, festas e belas amigas são intoleráveis para quem nasceu em famílias mais bem colocadas economicamente, mas não tem o talento que ele desenvolveu como jogador de futebol. Destaque-se, ademais, que o jogador desde criança se dedicou muito à carreira de futuro incerto, galgando patamares financeiramente compensadores, mas não sem pouco esforço. Essa condição de trabalhador infantil Neymar teria vivido, provavelmente, mesmo se não fosse atleta profissional, mas em atividade na qual a exploração de seu corpo seria ainda maior.

Dentro de tudo, não deixa de chamar a atenção o ostensivo apoio que o Partido da Causa Operária (PCO) concede ao jogador revelado pelo Santos Futebol Clube. Sim, o partido extremista de esquerda que, como ex-capitão, propõe o “fim da ditadura do STF (Supremo Tribunal Federal)” e defende que a população tenha acesso irrestrito a armas de fogo, considera o atacante vítima do capitalismo internacional, afinal, afirma, se lhe proíbe o drible. Igualmente vitimado seria o futebol brasileiro, uma vez que a ele teriam sido impostos os sistemas defensivos, de forma que o talento local ficasse dominado para que os europeus fossem capazes de, só assim, equiparar-se aos brasileiros. Pode parecer simples anedota, mas, as experiências recentes mostram o quanto a estupidez é perigosa. Considero o PCO tão nocivo para democracia quanto o autoritarismo que hoje encontra ponto de intersecção e nome em Bolsonaro.

Se eu tivesse grandes expectativas em relação a Neymar Jr. como cidadão, não as veria cumpridas em seu comportamento. Como não as tenho, não passo por essa frustração. Sim, preferia que, com toda sua notoriedade e pelo futebol maravilhoso que é capaz de jogar, ele tivesse outras posições, seria melhor para o país e agradável para mim simpatizar com um craque engajado em pautas mais democráticas. Mas as coisas não são assim. Ainda penso que é possível, e necessário, separar a obra de seu autor, mas sem desprezar quem ele é. Que não nos esqueçamos do quão extraordinário jogador é o camisa 10 da seleção; e que critiquemos seu apoio a Bolsonaro. Parecem-me, as duas atitudes, corretas.

Ilha de Santa Catarina, outubro de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Democracia: futebol e o exemplo de Neymar Jr.. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 8, 2022.
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