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Democratização: mais “governança” no futebol brasileiro (Parte I)

Daniel Vinicius Ferreira 26 de agosto de 2021

A lei do “clube-empresa” (Sociedade Anônima do Futebol – SAF/PL 5516/19) foi sancionada, pela presidência, na segunda-feira 10/08. Apesar da reclamação geral sobre os vetos (notavelmente sobre os que retiravam os benefícios tributários e dispositivos de transparência), esta legislação foi muito comemorada por um determinado nicho de pessoas que circula pelo nosso futebol. Nesta perspectiva, toda trajetória e aprovação foram envolvidos no batido discurso da “modernização do futebol brasileiro” e em um arsenal argumentativo recorrente (para não dizer enfadonho) em que se sobrevaloriza o papel do “business”. Porém, em termos reais o futebol brasileiro pouco deve avançar.

Os entusiastas  do “clube-empresa” frequentemente vem argumentando que assim haverá mais profissionalismo, mais “responsabilidade”, “governança” e menos “política”. Também, mais planejamento a “longo prazo” nos clubes (já que podem ser de “donos”, portanto sem eleições), e a oportunidade de receberem “novos” aportes de “investidores” (pelo contexto do Real desvalorizado e sendo um potencial ainda inexplorado, seja em debêntures ou venda de ações, por exemplo). Neste último caso, destacam (como vantagem) a garantia da “propriedade” da agremiação ou (pelo menos) um modelo mais sólido e “seguro” para investir, mais alinhado aos negócios.

Clube empresa
Senador Carlos Portinho (PL-RJ) na Sessão Deliberativa Remota (SDR) do Senado Federal, em que o Projeto do “Clube Empresa” esteve em pauta e foi aprovado. Portinho foi o relator do projeto, apresentado por Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado. Já havia outro projeto sobre “Clube empresa” aprovado na Câmara, anteriormente, mas que acabou não seguindo em frente. Foto: Pedro França/Agência Senado.

O “clube empresa” é idealizado (ainda) como um pilar de transformação de todo “ecossistema” do futebol brasileiro, que viria apoiado (paralelamente) no lançamento de um “fair play financeiro”, na formação de uma liga nacional e pela centralização da venda dos direitos de transmissão (na esteira da aprovação da chamada “lei do mandante”). Vale lembrar, finalmente, que o “clube-empresa” emerge em um contexto em que alguns grandes clubes tradicionais vivem situação de praticamente inviabilidade financeira, sendo seduzidos pela possibilidade de aportes “salvadores” (ou talvez até mesmo de “calote”, pois a lei traz dispositivos que podem servir para os clubes “rolarem” suas dívidas).

Senão como alavanca financeira “mágica” (e até suicida) para os desesperados, é difícil enxergar algum atrativo consistente (e à longo prazo) com a nova lei. No limite, um ou outro clube com um modelo muito sólido e diferenciado talvez consiga algum benefício real. Isto porque, sob uma avaliação empírica (e aqui falamos de diferentes experiências internacionais, em países centrais ou não) o que costumou sustentar a subida de patamar efetiva de algumas agremiações foi o aumento consistente das receitas periódicas, o que muitas vezes veio, também, acompanhado da expansão da sua massa social (torcida e público), e não meros aportes pontuais. É o que comumente se caracteriza como “crescimento orgânico”. Vale destacar (ainda) que casos como PSG, Manchester City ou Chelsea (por exemplo), que receberam aportes fabulosos (e praticamente à “fundo perdido”), além de exceções, figuram muito mais como casos dentro de uma lógica de soft-power no xadrez geopolítico internacional (portanto bem distante da simples ética do negócio), em que estes clubes europeus ocupam lugar estratégico.

De todo modo, é consensual entre especialistas sérios do assunto que a mera transformação dos clubes em empresa nada garante em termos de “gestão”, “governança”, etc. Pior, a avaliação sobre clubes de diferentes países no mundo que adotaram o modelo empresarial (Chile, Espanha, Itália, Inglaterra, por exemplo) demonstra não serem disseminadas histórias de sucesso, pelo contrário. Compras a partir de empréstimos, “vôos de galinha”, falências, usos políticos escusos dos clubes, lavagem de dinheiro, desaparecimentos, vendas de terrenos de estádios, etc. são histórias frequentes (SANTOS, 2020; MOTTA, 2020).  Embora plenamente envolvidos na lógica econômica, mundialmente (na verdade) clubes de futebol não se notabilizam pela saúde financeira e potencial de lucro.

O que nos chama a atenção, por outro lado, é que se olharmos ao “epicentro da ética do business” (o “Mundo Corporativo” norte americano) veremos que o que se consagrou como elemento chave (e condições mínimas para uma boa “gestão”, em qualquer instituição) não foi o formato jurídico ou a propriedade da organização: mas sim a sua “governança”. Mais do que isto, que é este o paradigma que tem se tornando central e frequente, na esfera do esporte e do futebol (embora aqui ainda em construção), nos fóruns que tratam de gestão esportiva.

Considerando isso, o que nos propomos aqui é, então, trazer uma discussão mais profunda  sobre o que seria a “governança”. Sobretudo, pretendemos demonstrar o quanto a “governança” dos clubes (no nosso país) está diretamente ligada a uma necessidade fundamental da própria “democratização” dessas entidades, historicamente muito fechadas.

A apresentação deste texto se divide em três partes, aqui no Ludopédio:

Na primeira publicação, vamos abordar o tema da “governança”, explorando sua inserção no contexto da “globalização”, o que é e como surgiu historicamente, tal como os paradigmas “compliance” e “ESG”.

Na segunda publicação, trataremos do atual estágio da “governança”, no esporte mundial e no futebol brasileiro, do perfil governativo histórico dos clubes no Brasil e como a pouca “democratização” dessas instituições atrapalha a consolidação aí de modelos de boa “governança”.

Na terceira publicação, apresentaremos possibilidades para “democratização” dos clubes, um diagnóstico de resistências a esse processo (em um clube), fechando a discussão com algumas considerações finais. A análise foi construída com base em fontes de proveniência variada: entrevistas com duas pessoas profundamente envolvidas com o tema, livros e materiais acadêmicos, portais de internet, além da imersão antropológica em uma comunidade clubística.

“Governança”: um contexto de “globalização”

Se tornou consenso, entre os historiadores e cientistas sociais, a interpretação de que, desde a segunda metade do século XX, a sociedade mundial vive um período de grandes rupturas e transformações, paralela a uma dada integração mundial, à qual nomeou-se “globalização”. A produção sobre o assunto já é vasta e consolidada, se desdobrando em diferentes correntes de interpretação, seja sobre os marcos iniciais ou cronologia.

Identificamos três elementos fundamentais para situar esta “globalização” (da segunda metade do XX):

1) a reconfiguração/expansão do capitalismo mundial (com a ascensão do neoliberalismo em 1970, a profusão das multinacionais e a queda do bloco soviético em 1990);

2) o esfacelamento do tradicional modelo do Estado-nação;e

3) a revolução científica-tecnológica (FERREIRA, 2019), que hoje se desdobra em uma “4a revolução industrial”.

Esta “globalização” acompanhou e associou-se (ainda) a outros eventos sincrônicos no campo sócio-político: ascensão de pautas das chamadas “minorias políticas” (sobretudo no ocidente), da “sustentabilidade” e a irrupção das “novas identidades”[1].

Ativismo
Alguns exemplos do que seriam as “novas identidades”: do ativismo ambiental de Greta Thunberg, o antiracismo de Taison na Ucrânia à identidade “skater” de Rayssa Leal. As “novas identidades” demonstram (na globalização) como são complexas e heterogêneas as sociedades, muito além das chamadas “identidades nacionais”.

Alguns autores, destacam também que este momento acompanhou a ruptura para um novo período histórico: a “pós-modernidade”. Essa onda de metamorfoses refletiu e interagiu no desporto (e no futebol), reconfigurando também o campo esportivo, lugar (como tantos outros) de disputas, desafios e angústias do nosso tempo.

A ascensão do paradigma da “governança” precisa ser entendida, portanto, neste contexto. Um cenário de amplas transformações, mas também de crises, novas demandas e  reconfiguração no próprio capitalismo. É nesta conjuntura que um modelo nuclear básico de organização econômica desta sociedade (a “empresa”) passa a incorporar (por autonomia ou imposição) determinadas preocupações de ordem cultural, social e política, como princípios (além, é claro, daqueles diretamente para dinamizar o processo produtivo), buscando “valorizar” de forma mais ampla a organização, em um contexto cada vez mais competitivo.

Nessa perspectiva, vamos demonstrar que a “governança” oferece um instrumental que vai além do gerencial econômico/produtivo, adentrando à perspectiva “democrática” e “social” (BARROS, 2020; HAAS, 2020; MONFARDINI, 2020). Essa inserção se potenciaria ainda mais na esfera esportiva (dada sua natureza), onde o paradigma da “governança” vem sendo assimilado e adaptado. Desta forma, apresenta possibilidades para um futebol politicamente mais consciente e responsável com a dimensão social que envolve. Trata-se de um processo ainda em construção.

Mas afinal, o que é a “governança”?

“Governança” é um paradigma que se notabilizou no “Mundo Corporativo”, embora seu uso vá muito além daí. Construiu-se e consolidou-se desde meados do século XX. Está relacionado à “gestão”, embora não seja a mesma coisa. “Governança” estabeleceria procedimentos gerais para a administração de uma instituição (diagnosticados como fundamentais), independente dos atores, a qual a “gestão” (em que pese a sua liberdade) precisa alinhar-se. Assim, buscaria otimizar o alcance dos objetivos principais da empresa e mitigar riscos identificados como mais ameaçadores. Elenca, consolida (e aperfeiçoa) alguns processos chave diversos, internos e externos: da definição de princípios e rotinas de funcionamento (processos de diferentes áreas), mensuração de resultados, às formas de relações com acionistas, conselhos, clientes, etc. “Governança” surgiu (inicialmente) como modelo para aprimorar o funcionamento produtivo, otimizar lucro e atender o interesse geral dos proprietários. Porém, incorporou com o tempo a preocupação com o “valor” (o que envolve atributos intangíveis, mas que repercutem financeiramente, como a imagem pública da organização).

Nosso destaque é para o arcabouço que se consolida como central de “governança”[2], que evidencia sua conexão com o político e o social. Ele se estrutura por quatro pilares base (integrados e sistêmicos): “transparência”, “responsabilidade social”, “democracia”, “prestação de contas”.

“Transparência” significaria a publicação (ampla e periódica) de informações necessárias e de interesse direto dos “públicos de interesse” da entidade (balanços, estatuto, planejamento estratégico, composição dos conselhos, etc).

“Democracia”, um direito à “voz” e representação em assembléias, independente do poderio acionário. No ambiente esportivo, o conceito vem se adaptando, necessitando ser mais amplo e melhor desenvolvido, pelo caráter associativo e dimensão social pronunciada dos clubes/federações (BARROS, 2020). Aqui, o envolvimento plural e representação da comunidade local e torcida (bem como a garantia de participação/equidade de gênero e de atletas), eleições e encontros regulares (entre outros) seriam premissas que vem sendo vislumbradas como necessárias.

“Responsabilidade Social”: forma e ações (internas/externas) como a organização se posiciona/preocupa com questões da sociedade, em temas e pautas sociais diversas, como a “sustentabilidade”, o racismo, questões de gênero, lgbtqia+, externalidades, etc.

“Prestação de Contas” (do inglês “accountability”) significaria disponibilização aos principais “grupos de interesse”, dados detalhados: relatórios contábeis/financeiros/administrativos (decisões e indicadores de desempenho),  atas das reuniões de assembléia (número delas, quem compareceu, se pronunciou e o que argumentou, etc).

Como dissemos, nos últimos anos, o paradigma da “governança” tem sido incorporado e adaptado para esfera esportiva, em geral. Este termo (comumente) vem aparecendo (fora e dentro do esporte) recentemente mais de forma composta, como “Governança e Compliance” e ainda mais recentemente como “ESG” (Environmental, Social and Governance).  Estes termos não teriam exatamente o mesmo arcabouço conceitual, mas desdobram o modelo central de “governança” associando a outros paradigmas, como apresentaremos mais adiante.

Barcelona
O presidente Joan Laporta (FC Barcelona) e a Diretora Executiva da UNICEF Ann Veneman, celebrando o acordo (2006) em que o clube blaugrana passou a estampar em sua camiseta a UNICEF. O posicionamento (responsabilidade social) do FCB já sintonizava com o conceitual de “governança”. Segundo Laporta, em entrevista para o autor, em 2017: “Fuimos los pioneros como club del fútbol en responsabilidad social corporativa a través de nuestra Fundación y conseguimos una alianza global con UNICEF en diversas partes de mundo. Esto nos daba muy buena imagen, era un Barça moderno, era un Barça alegre, era un Barça que enamoraba, era un Barça reconocido, admirado y querido…” Foto: Arquivo FCB / Bevenrain, Revista Barça, 2006.

História

As raízes do termo “Governança” estariam nos inícios do século XX, refletindo a preocupação dos governos em incorporar e legitimar os cidadãos na dinâmica da gestão e da esfera pública (HAAS, 2020). Ao longo dos anos (desde meados do XX), “governança” se incorporaria e se tornaria muito notabilizada no mundo dos negócios. Na transição do XX-XXI, o termo já teria se disseminado em diferentes áreas (da gestão empresarial à sociologia, por exemplo). Aparecendo de forma polissêmica, sugere (no contexto da “globalização”) que os modelos de administração tradicionais (privados e públicos), estariam defasados (KERSBERGEN; WAARDEN, 2004).

Nessa trajetória, modelos administrativos pautados na dinâmica vertical, concentrada e unidirecional do poder executivo, do tipo “cima pra baixo”, passariam a ser questionados/criticados, dado o contexto crescente de pulverização das informações e das competências. Paralelamente (também) controles do poder (mais dinâmicos e permanentes) passaram a ser mais demandados, devido aos impactos em diferentes interesses que as decisões poderiam repercutir. Surgiram então abordagens de “baixo pra cima”, mais autônomas, horizontais, ampliadas, pautadas no pluralismo, e também as sistêmicas, como formas reconfiguradas para melhor exercício e controle do poder.

Na esfera pública, seriam as novas formas de “freios e contrapesos”, para além da tradicional fiscalização e dos “poderes autônomos” (legislativo e judiciário). Ascendem, assim, “novos” protagonistas, na dinâmica do poder, como: grupos de interesse de cidadãos ou profissionais, ONGs, rankings de boas práticas, jornalismo especializado e empresas de consultoria, entre outros (potenciados pela conectividade trazida pelas novas tecnologias). Representam “forças” otimizadoras/reguladoras para o bom funcionamento de dada entidade (ou de um conjunto de entidades), tal como o próprio reforço e aperfeiçoamento da democracia no plano da sociedade (se falamos de “Governança Pública”).

“Governança Corporativa” participou dessa trajetória, remontando às primeiras décadas do XX, nos Estados Unidos. Surgiu como “modelo solução” para as nascentes configurações acionistas proprietárias de empresas. Ficava-se muito vulnerável às escolhas/interesses dos profissionais à frente da gestão (como, em um caso extremo, ao aumento dos seus próprios salários), e não a um “interesse geral”. O conjunto de princípios e práticas empresariais que passaram a alinhar, monitorar e controlar o funcionamento da organização, tendo como norte principal o interesse/sucesso da “firma”, nominou-se “Governança Corporativa” (IBGC, 2021). Tal paradigma seria continuamente aperfeiçoado com os anos, envolvendo outros temas: da “Responsabilidade Social” (devido ao impacto social e imagem das empresas junto à consumidores/investidores), passando pela cultura e composição social da organização, às expectativas dos chamados “grupos de interesse”(“stakeholders”), se consolidando em quatro pilares, como citamos[3].

“Compliance” 

O “compliance” (que também atende pelos termos “conformidade” ou “integridade”) seria uma ferramenta específica da própria “governança”, atuando como “aliado” para “valorizar” a organização (o que passa incluir os temas sociais/políticos). Garantiria o cumprimento de procedimentos chave de funcionamento, dos quatro pilares (acima citados), alinhando (ainda) a organização ao cumprimento de leis e normas, além de prevenir e evitar os principais riscos identificados como mais prováveis, que poderiam subtrair “valor”, tangíveis ou intangíveis[4]. Mais que um “policiamento interno”, se notabilizaria por fomentar uma dada conduta/cultura organizacional (preventiva) de ética: ao mesmo tempo integrada/sintonizada com os objetivos principais da instituição, previdente dos principais riscos gerais e em seus departamentos específicos. Por exemplo, no futebol: assédio moral/sexual, doping, lavagem de dinheiro, contratos mal feitos com jogadores, perda de atletas promissores para outros clubes/empresários, associação com empresas de má reputação, vazamento de dados pessoais, crimes ambientais, marketing sexista, etc. (MONFARDINI, 2020).

O “compliance” remonta às primeiras décadas do XX, nos Estados Unidos. Se relaciona diretamente à história da “Governança Corporativa”, sobretudo como instrumento para prevenir ilícitos. Seus primórdios estão em leis/normativas promulgadas pelo governo norte-americano, exigindo critérios de transparência mínimos de funcionamento da bolsa (como a “Lei de Valores Mobiliários”) e a própria criação da agência reguladora “U.S. Securities and Exchange Commission” (“SEC”) que na década de 1960 obrigaria as empresas a disporem de “Compliance Officers”, espécie de auditores internos (INTERACT, 2020).

Richard Nixon
Presidente Nixon, do partido republicano, protagonista do chamado “Caso Watergate” que culminaria com o pedido do seu impeachment, e sua renúncia. A repercussão e o desdobramento de “Watergate” (que revelou uma série de casos de corrupção associados) fomentaria a ascensão de uma “lei anticorrupção” nos Estados Unidos (“FCPA”), e esta estimularia o aperfeiçoamento de mecanismos de “governança” nas organizações estadunidenses. Foto: Wikipédia

Em 1977, o governo norte-americano publicaria a chamada “lei anticorrupção” “Foreign Corrupt Practices Act” (“FCPA”), matriz inspiradora para leis similares em outros países e de convenções internacionais de combate à corrupção. Ela estimularia ainda mais o aperfeiçoamento de práticas preventivas nas empresas: o “Compliance”. A inflexão regulatória norte-americana inspirou e expandiu-se para além das suas fronteiras, impulsionada também pela sua influência global financeira/política. A eclosão de novos escândalos de corrupção, em inícios do XXI nos Estados Unidos (como na Enron, WorldCom e Tyco), além do “11 de setembro”, ajudariam a promover uma nova “onda regulatória” que consagra definitivamente o “compliance” como ferramenta obrigatória no mundo corporativo global. Neste movimento, vale citar a promulgação da “UK Briebery Act” (2011), no Reino Unido, tal como a “lei anticorrupção” de 2013, base legal à “Operação Lava Jato”, no Brasil.

“ESG”

“ESG” (“Environmental, Social and Governance”) se notabiliza como um novo desdobramento/reconfiguração do modelo matriz de “governança”. Embora esta já abarcasse a preocupação com questões ambientais e sociais (pilar de “responsabilidade social corporativa”) o “ESG” propõe um maior protagonismo dessas questões deslocando-as como pilares, formando então (ao lado de “governança”) um tripé sistêmico para “valorizar” a empresa. No Brasil, o termo foi adaptado para “ASG” (“Ambiental, Social e Governança”) e se disseminou muito com o contexto da crise do COVID e da consagração nos países centrais.

As três letras “ESG” se construíram em sintonia, não por acaso, com os pilares da “sustentabilidade” (ou “desenvolvimento sustentável”). Este conceito foi forjado entre fins do XX e inícios do XXI, adentrando à esfera do “business”. Nesta época começaram a surgir organizações independentes para avaliar, orientar o compromisso e a responsabilidade ambiental/social das empresas[5]. Afirma-se que o termo “ESG” ascendeu (inclusive) a partir de uma proposta específica da ONU, em 2006 (publicação de um relatório do “Pacto Global” denominado “Who Cares Win”; e depois pelo Relatório Freshfield ) que estimulava o mundo corporativo debruçar-se e integrar-se também com questões sociais e ambientais (ATKINS, 2021).

Sobre o paradigma “sustentabilidade” (o qual o “ESG” se inspira e reflete), destaca-se que é uma construção[6] que idealiza uma reforma do modelo capitalista, em um plano mundial. Este conceito busca associar simultaneamente a eficiência econômica, a justiça social e a harmonia ambiental. Tão ou mais importante do que “crescer” economicamente, seria “desenvolver” globalmente: erradicar a miséria, melhorar a distribuição de riqueza, o acesso aos avanços tecnológicos, promover a equidade de várias formas (como através do combate ao racismo ou à desigualdade de gênero), aumentar qualidade de vida e expandir a educação. Um modelo econômico “sustentável”, porque também atento à finitude dos recursos naturais, à promoção da equidade, ao impacto e conservação do meio ambiente, à defesa da tolerância, ao respeito e preservação de tradições culturais diversas (CAMARGO, 2003). “Sustentabilidade” consagrou sua definição a partir de três pilares de objetivos:  ambiental, social e econômico. Deu suporte filosófico aos “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” (2000), que derivou (2015) para os “17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” para 2030, compromisso que reuniu 193 países do mundo (Agenda 2030).

17 ODS
Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (17 ODS ou 17 SDGs em inglês). Fonte: UNESCO

A ascensão do “ESG” nas organizações está diretamente relacionado (também) ao aumento do interesse e cobrança social sobre os temas sociais e ambientais (inclusive sendo identificados como de ampla preocupação para as gerações mais novas), nos últimos anos. O “ESG” envolve temas que impactam na imagem da empresa e na amplitude do seu “consumo”. Multiplicaram-se agentes regulatórios e relatórios no “Mundo Corporativo” sobre a questão (notadamente em países centrais, como na Europa, os Estados Unidos ou o Japão). O próprio campo do marketing, elaborou um conceitual que incorporou a preocupação com questões sociais e ambientais, o “marketing 3.0” (KOTLER, 2010). Isso reforçou o “ESG” como tema empresarial, adquirindo protagonismo inclusive para análises e negociações de ações na bolsa de valores, considerado aí como um diferencial que tende a atrair (ou direcionar cada vez mais) a opção dos investidores.

Em 2020, no Fórum Econômico Mundial em Davos, anunciou-se uma proposta de expansão do modelo “ESG” globalmente, no contexto do que se entende como “4a revolução industrial” e o que tem se chamado de “capitalismo de partes interessadas”. O modelo de “governança” pautado no “ESG” se constrói, assim, potencialmente também como um requisito para entrada na esfera de negócios que se reconfigura em âmbito mundial. Vale lembrar, também, que este é um contexto onde os Estados Unidos e Europa anunciam e vem debatendo planos de desenvolvimento, cuja base é a “economia verde”(“Green Deal” ou “Green New Deal”).

As críticas recorrentes principais são de até que ponto vai o compromisso das empresas com esse modelo para além da imagem,  e se efetivamente “sustentabilidade” e capitalismo teriam um acordo possível e promissor. O uso de pautas sociais/ambientais de “fachada” pelas empresas, inclusive, produziria termos como “greenwashing”, “blue washing”, “social washing”, “pinkwashing”, “rainbow washing”.

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Por hoje ficamos por aqui. Voltaremos com a Parte II desta discussão, onde tratamos do atual estágio de “governança” no esporte em geral e como o perfil pouco democratizado dos clubes brasileiros tem atrapalhado a “governança” destes.

Um grande abraço e até lá!

Notas

[1] Por “novas identidades” entende-se as novas formas de pertencimento “descobertas”, híbridas ou fomentadas no contexto de encaixes e desencaixes da globalização, como as “identidades”: jovem, gênero, gay, afro, progressista, movimentos musicais, tribos urbanas (como o punk, skinhead, metal, grunge), torcidas de futebol, vegana; e também “consumistas”, “empreendedora”, o “regionalista”, as “fundamentalistas” (de viés nacionalista, de costumes e/ou religiosas), entre outras (FERREIRA, 2019).

[2]Recentemente, surgiram estruturas conceituais genéricas, “frameworks”, para moldar a construção de modelos adminstrativos (mais dinâmicos) para o funcionamento das empresas. Servem para a gestão de projetos (para  estruturar os processos de produção), mais ligados à área de Tecnologia da Informação.Trata-se de instrumentos/métodos em que os processos de produção não podem ser definitivos, precisam ser continuamente remodelados/modificados, pois se embasam na ideia de que as condições presentes se alteram continuamente (impactando na configuração do produto final, portanto). São “herdeiros” do toyotismo e de paradigmas vindos da indústria de produção de software. Tem sua inspiração no que ficou conhecido como “manifesto ágil”, por isso são chamados também de “métodos ágeis”. Exemplos destes “frameworks” seriam o 5w2h, Scrum, Itil, Cobit, Kanban, PMI (entre outros). Podem ser usados em diversos ramos empresariais, embora em muitos, como na construção civil, ainda prevaleçam (e sejam mais indicados) modelos tradicionais como o “cascata” (planejamento, processos predeterminados e execução em forma sequencial). Estes “frameworks” aparecem, às vezes, nominados também como instrumentos de governança, mas não se trata do mesmo “conceitual” que se instituiu historicamente por referência e como tratamos aqui, fundado nos 4 pilares. Por outro lado, são instrumentos que podem ser utilizado também para construir modelos de  “governança” (este que tratamos aqui).

[3]No Brasil, a principal organização preocupada com “Governança Corporativa” seria o IBGC (“Instituto Brasileiro de Governança Corporativa”), criada em 1995. Em termos mundiais, a principal referência é “OCEG” (“Open Compliance and Ethics Group”), que surgiu em 2002, um think tank que passou a envolver lideranças de grandes empresas norte-americanas. e consagrou o termo “Governance, Risk and Compliance” (“GRC”), como modelo central de “Governança”.

 

[4]O “compliance” também se utilizaria de ferramentas gerenciais (como Scrum e o “ciclo PDCA”) para ser implementado, e estabeleceu padrões (como o COSO, o ISO 19600 e ISO 31000). Os pilares e etapas para implementação de um programa de “compliance” seriam: suporte da alta administração (tone at the top), risk assessment (identificação, análise e avaliação de riscos), definição de políticas, comunicação e treinamento, núcleo de investigação e canal de denúncia, due diligence, avaliação e monitoramento (MONFARDINI, 2020).

[5]Como a “Global Reporting Initiative” (GRI, em1997), “Carbon Disclosure Project” (CDP, em 2000), “Sustainability Accounting Standards Board” (SASB, em 2011), “Task Force on Climate-Related Financial Disclosures” (TCFD, em 2015) ou “Workforce Disclosure Initiative” (WDI, em 2016). Podem ser citadas ainda “Climate Disclosure Standards Board” (CDSB, em 2007) e o próprio “UN Principles for Responsible” Investment (PRI, em 2006), framework diretamente relacionado ao surgimento do “ESG”. No caso das chamadas “Agências de Rating” (agências que avaliam o “grau” de compromisso com o “ESG”), pode se citar a RepRisk (de 1998), a “Dow Jones Sustainability Index” (DJSI, de 1999), Sustainalytics (de 2008),  a “MSCI“ (de 2010), a “Institutional Shareholder Services” (ISS, de 2018), ou também a “Vigeo-Eires” (VE, de 2019). Nos inícios de 2020, a “Comissão de Valores Mobiliários” dos Estados Unidos” (SEC) decidiu criar uma estrutura  própria para divulgação e avaliação do “ESG” nas empresas e na bolsa.

[6]É importante ressaltar que as raízes “sustentabilidade” são mais antigas. Tem seus primórdios após a “II Guerra Mundial”, nos países centrais mais preocupados com a questão ambiental, ecológica e os impactos com o modelo industrial herdado do século XIX, envolvendo paulatinamente preocupações com a camada de ozônio e o aquecimento global. Esta trajetória também se associa à ONU, que surge em 1945 (como um “consórcio” de países) preocupada com a paz, direitos humanos e desenvolvimento equitativo. Ao longo dos anos, o “tema” ambiental aperfeiçoou-se, reunindo paulatinamente muitos países interessados; passou a debruçar-se sobre questões sociais, sendo incorporado ao projeto da própria ONU.

Referências

Blog do Rodrigo Capelo

Canal Na bancada

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WENZEL, Gerd. Toda hipocrisia da Uefa escancarada num arco-íris. DW, 24, 06, 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/toda-hipocrisia-da-uefa-escancarada-num-arco-%C3%ADris/a-58026260>. Acesso em: 22 julho 2021.

 

 

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Daniel Vinicius Ferreira

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Universitat Autònoma de Barcelona (doutorado sanduíche). Estuda a questão das identidades, pertencimentos e a globalização do futebol.

Como citar

FERREIRA, Daniel Vinicius. Democratização: mais “governança” no futebol brasileiro (Parte I). Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 47, 2021.
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