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Democratização: mais “governança” no futebol brasileiro (Parte III)

Daniel Vinicius Ferreira 8 de setembro de 2021
Rogério Cabloco
Rogério Caboclo foi afastado da CBF por denúncias de assédio moral e sexual contra funcionárias. Em 2017, a CBF foi considerada referência mundial pela FIFA em “compliance”, e até recebeu um prêmio em Nova Iorque. Foto: Lucas Figueiredo/CBF/Fotos Públicas

Mais “governança”: possibilidades de mais “democratização” dos clubes

O avanço da “governança” nos clubes, através da “democratização”, demanda repensar suas tradicionais bases estruturais (conselhos, associação, eleição, etc.) e princípios teóricos. Mas sobretudo, como permear e amadurecer o clube em uma cultura democrática sistêmica e comprometida, fundada na pluralidade: das suas bases sociais ao topo da entidade.

I – Um primeiro ponto, é a necessidade de avançar sobre o modelo de democracia representativa: tornar permanente a participação e ampliar as possibilidades de mudanças, para além do ritual das eleições e da escolha de “representantes”.

Vale destacar que (regra geral nos clubes) os sócios elegem “representantes” para os “conselhos” (geralmente a cada 3 anos), membros e gestão “mensurados” (na prática) geralmente mais pelo resultado esportivo, sendo justamente a ocasião das eleições o instrumento praticamente único de transformação efetiva e “mudança de rota”. Considera-se este “instrumental” de avaliação muito limitado (tendendo a falhas) e com um mecanismo de correção/mudança moroso demais.

  • A proposta seria de que o clube envolvesse os sócios e “partes interessadas” (sobretudo a comunidade local e torcedora) em processos diretos e permanentes de informação, debate e decisão. Este envolvimento demandaria (diretamente) o melhor desenvolvimento de outros pilares suportes da “governança”, como a “transparência” e “prestação de contas”.
  • Consagrando o direito e democratizando o acesso às informações do clube, a todos a quem ele impacta diretamente, acredita-se que envolver-se-iam mais pessoas na fiscalização dos processos de gestão e na responsabilidade financeira. Abrir-se-iam maior possibilidades (também) de produção de relatórios, estudos, e de proposição de ideias. Este envolvimento se apresentaria como um mecanismo de reforço da fiscalização, já que permitiria à base social do clube (e a própria sociedade) permanecer constantemente inteirada do funcionamento em minúcias em temas/áreas estratégicas da “gestão”. Além disso, possibilitaria oxigenar, enriquecer o repertório e embate de ideias (por exemplo) no interior do “Conselho Deliberativo”, numa dinâmica permanente de aperfeiçoamento/ajuste da “gestão”. A ideia é que os sócios (mas também a comunidade local e torcedora, os profissionais de mercado em geral, grupos acadêmicos, etc.) desenvolvam mais a participação e incorporação na esfera “deliberativa” (inclusive através de núcleos temáticos e especializados) envolvidos mais no que seria o “nível institucional”, enquanto a esfera “executiva” permaneceria alinhada a diretrizes já definidas (estes envolvidos mais nos “níveis intermediário e operacional”[1]), sob o comando do “Conselho Administrativo” e a gerência de profissionais de mercado, monitorados por indicadores objetivos de resultados.
  • Finalmente, participando de determinadas decisões conjuntas (considerado todo aquele envolvimento prévio), a ideia é que se otimiza a governabilidade da instituição, integrando-a à feição da sua comunidade. Dotando, assim, de projetos institucionais mais consistentes e duradouros, porque legitimados (e instituídos) de forma permanente, sendo corrigidos continuamente. Não apresentados/discutidos “de repente”, por meio de narrativas/ideias até oportunistas e superficiais (nas ocasiões de ferrenha disputa eleitoral, por exemplo). Para reforçar a construção de projetos duradouros, uma das possibilidades seria exigir das chapas candidatas ao pleito a apresentação (no ritual de inscrição das candidaturas) de históricos das gestões anteriores e indicadores de desempenho ao plano estratégico vigente (obtidos via canais de transparência), justificando ou não a continuidade/mudanças a partir de dados empíricos, com estabelecimento de metas futuras.
Corinthians
Uma das propostas (chapa de Augusto Melo), por ocasião das eleições do Corinthians em 2020, foi a construção de uma Roda Gigante com o emblema do clube, no Parque São Jorge.
Foto: Divulgação

II – Um segundo ponto, seria reforçar a autonomia e os controles do nível representativo (dos “conselhos”) e sobre os profissionais. Aqui, destaca-se a importância de reforçar mecanismos de independência para os conselheiros, e implantar aqueles em que estes e profissionais sejam avaliados periodicamente (por exemplo a cada exercício).

  • Dinamicamente, esta função pode ser exercida mutuamente pelas esferas de “controle” da entidade: o que inclui os próprios “conselhos” (“fiscal” e “deliberativo”), o “compliance”, e mesmo o quadro associativo e/ou até comissões (formadas no “Conselho Deliberativo” mais abertas à participação de sócios, “partes interessadas” e torcedores) . Para os “Conselhos” (em geral), estabelecer obrigatoriedade da publicação das atas de reunião e relatórios mais detalhados (balancetes, atos de gestão, entradas/saídas valores, plano de ação e indicadores de desempenho, listas de presentes) de forma recorrente e com linguagem mais acessível, para o grande público (excetuadas informações estratégicas).
  • Ainda no âmbito de controles no nível representativo, o fortalecimento da separação e da independência entre os “Conselhos” (superando o protagonismo exacerbado do executivo) figura como imprescindível. Para tal, uma premissa básica seria promover eleições separadas para os “Conselho Fiscal”, “Deliberativo” e “Administrativo”. Inclusive, poder-se-ia promover as eleições do “Conselho Fiscal” de forma que este se (re) constitua sempre no intervalo entre duas gestões do “Conselho Administrativo” (uma metade final e outra inicial), o que estimularia uma autonomia maior daquele. É fundamental também que o “Conselho Fiscal” tenha um regulamento próprio, com a possibilidade de afastamento dos seus representantes (MONFARDINI, 2020).

III – Um terceiro ponto, seria estimular (ao mesmo tempo) por um lado uma configuração mais plural e conectada com a sociedade/comunidade clubística, e por outro também mais especializada dos “conselhos”.

Em termos de especialização, por exemplo, no “Conselho Administrativo” é importante ter (além de lideranças reconhecidas pelos coletivos do clube) figuras que tenham algum domínio mais profundo e teórico em áreas chave: futebol, gestão, sociologia, etc. Isto porque este “Conselho” pauta o modelo conceitual da “gestão”, moldando os recursos “técnicos” à “identidade” da instituição (exercendo, também, controle direto sobre executivos e profissionais), os quais vão impactar diretamente nas questões questões amplas gerenciais, esportivas e sociais do clube. Este papel pode ser otimizado, atuando em conjunto com uma Diretoria Executiva.

No “Conselho Fiscal”, entende-se que a expertise em temas econômicos, jurídicos e contábeis (por exemplo) são também bases essenciais para formação de um quadro capacitado, mas aí poderiam figurar em conjunto (também) com “partes interessadas” diversas, como representantes torcedores, de atletas, etc.

No “Conselho Deliberativo”, sob a liderança de membros mais afinados com áreas chave, poder-se-ia promover-se a abertura à participação de sócios, torcedores e comunidade (grupos acadêmicos, ONGs, profissionais, startups, etc.) em comissões estratégicas e grupos de trabalho (podendo, dessa forma, também servir para formar novos dirigentes). Inclusive, nessa linha, reavivando os clubes e estádios em seu potencial histórico de direito à cidade (MASCARENHAS, 2019), podendo envolvê-los (assim) ao que vem se projetando como “cidades-inteligentes”, na esteira da “4a revolução industrial” e da “sustentabilidade”, em que estes contribuem como hubs de tecnologia, sustentabilidade e inovação no esporte. Neste caso, renovados como espaços de ampla inclusão, integração social (e desenvolvimento) e não como mais um espaço (e etapa) de exclusão e esvaziamento cultural/social pela apropriação mercantil, no que (por outro lado) vem se desenhando como “arenização” (SANTOS, 2017).

Em geral, entende-se como elementos que ajudariam a dar suporte e oxigenar o clube em termos de ideias. Reforçariam mecanismos de fiscalização, além de melhor conectá-lo à sua massa social, e ao próprio desenvolvimento social, tecnológico e “sustentável” das cidades e do país.

Ajax
O Estádio do Ajax foi idealizado como um ícone de inovação e sustentabilidade em conexão com a cidade de Amsterdam. Esta cidade aparece frequentemente entre as cidades “mais inteligentes do mundo” (índice do IESE – Universidade de Navarra), conceitual que está ligado ao grau de promoção tecnológica, sustentável e desenvolvimento social das urbes; conceitual diretamente conectados aos “17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU”. O Brasil tem projetos de “cidades inteligentes” (como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba) e “hubs” de tecnologia no esporte (Arena Hub/Palmeiras). Mas o desafio em participar (efetivamente) da tendência global de “smart cities” (tendo aí um grande potencial para associar o futebol), no Brasil, certamente também passa por enfrentar frontalmente problemas crônicos estruturais do país, como (por exemplo) as desigualdades (como a de gênero), o combate à miséria, a intolerância (de todo tipo), o racismo, a exclusão, o papel periférico em termos industriais de mero exportador de commodities (mais pronunciado nas últimas décadas), entre outros. Foto: Guy Percival/Domínio público

Três níveis de “democratização”

Para que a “democratização” (e a pluralidade) atravesse a instituição, e se reflita nos “conselhos”, entende-se que ela precisa ser estimulada na comunidade clubística de forma ampla e sistêmica. Vislumbra-se que isso poderia acontecer em três níveis:

1) Popularizando e estimulando o acesso plural dos torcedores, promovendo campanhas de equidade (em especial atenção às minorias) tal como integrando a comunidade local ao clube. Isto é possível a partir de ações diversas de cunho social (atuando o clube como um espaço de solidariedade, lazer, cultura, educação, formação profissional, campanhas de interesse social, etc.) à oferta de associação e ingressos (também) com valores populares. Isto deve, inclusive, fortalecer a instituição financeira e socialmente (pertencimento).

2) Eliminar barreiras excessivas (econômicas e estatutárias) para associação e direitos políticos, buscando a expansão do colégio eleitoral, além de abrir canais e fomentar uma participação mais ampla, plural, permanente e ativa da comunidade clubística na vida política do clube. Este envolvimento poderia incluir atletas e corpo técnico, como atores aptos a participar e  votar de forma direta nas eleições do clube. A maior aberturas dos clubes, ampliação do colégio eleitoral, maior abertura às candidaturas de indivíduos (e menos barreiras às novas chapas concorrentes em eleições) são vistas como estratégias de diluir as “alas políticas” que se formam nos “conselhos” (de marcado perfil social) tal como de superar relações clientelistas/fisiológicas nestes espaços, considerando que seria muito mais difícil, assim, cooptar uma quantidade ampla de indivíduos, para fora dos “interesses” gerais do clube.

3) Eliminar, ou reduzir outras estruturas que engessam e esmorecem o clube do ponto de vista: da alternância social; da atuação política pró-ativa e mais comprometida; da conexão com sua base social e da competição qualitativa de ideias.

Neste caso, pode se citar a extinção de instâncias como o “Conselho Vitalício” (ou sua transformação em “Conselho Consultivo”), e mecanismos de abertura do “Conselho Deliberativo” à sociedade e comunidade (para discussão, fiscalização e deliberação inclusive). A remuneração ao presidente (e vice), também, é um elemento que possibilitaria um leque muito maior de postulantes ao cargo, além de estimular maior formalidade, responsabilização, compromisso (e obrigatoriedade de expediente), além da especialidade na função.

Democracia Corinthiana
A chamada “Democracia Corinthiana” foi uma experiência inédita no futebol brasileiro inspirada em preceitos democráticos, dos inícios dos anos 80, ainda no contexto da ditadura militar.
Foto: Trecho do filme “Democracia em Preto e Branco”/Reprodução

Resistências à “governança”: imersão nas redes sociais de um grande clube brasileiro

O seguinte diagnóstico foi feito a partir da imersão do autor na comunidade (mídias sociais) de um clube brasileiro, em 2021. Debatendo, frequentemente, sobre a necessidade de melhores mecanismos de “governança”, sobretudo de “democracia” no clube, algumas “contra argumentações” mais estruturadas se tornaram recorrentes, as quais aqui se expõem. Vale destacar que estas não eram hegemônicas: a comunidade de torcedores, sócios e conselheiros, como em qualquer clube, não formavam uma configuração singular, plenamente coesa em termos de determinado valores e ideias. Entretanto, conformavam um ideário considerado forte, e disseminado o bastante, para constituírem um posicionamento de destaque dentro do clube, o que convergia como resistência ao conceitual de “governança” (e “democratização”, em particular).

No curto prazo, por não ser visto como um processo simples, e que iria produzir resultados financeiros e esportivos de impacto (de súbito, diretamente com a sua implementação), defesas à incorporação de pilares de “governança” efetivos (como “democratização”), eram frequentemente subestimados. Uma justificativa comum (ouvida) era que se tratava de “perfumaria”, considerada a situação de crise econômica e endividamento que vivia o clube, somada a necessidade/cobrança rápida e prioritária de resultados esportivos e financeiros. Ouviu-se, também, que a simples manutenção do funcionamento do clube dependia mais de ações imediatistas e “criativas” dos seus dirigentes, não existindo um ambiente (ainda) consistente mínimo, para implantação de rotinas e procedimentos permanentes. Houve, também, algumas situações em que “governança” aparecia defendida apenas como um método dinâmico de tomar decisões em prol de melhores resultados financeiros/esportivos, e para profissionalizar a entidade. Mas algo além disso (como campanhas em prol de equidade, causas sociais e projetos de “democratização”, por exemplo), eram avaliados como “políticos”, fora de propósito, lugar e de interesse.

Além de não ser visto (por uma parcela das pessoas) como um modelo capaz de trazer resultados imediatos do ponto de vista financeiro/esportivo (portanto “descartável”), a referida percepção geralmente se justificava (e se reforçava) pela comparação com o clube rival da cidade. Este era visto como bem sucedido esportivamente, administrativamente e financeiramente. Neste caso, argumentava-se que os fatores primordiais para tal “sucesso” tinham sido a estratégia puramente mercantilista, uma profissionalização associada a gestão autoritária e “moderna” do seu presidente (capaz de impor um projeto sobre o “mal da política” e da “torcida”). Outro elemento primordial seria o capital político daquele mandatário, aliado ao seu  “idealismo”, “inteligência” e sua “esperteza” vistos (estes sim) como fundamentais, seja para implantar um modelo de clube ou para “geri-lo” com os “melhores recursos”.

Modelo que teria possibilitado aquisições estruturais como de um terreno para o Centro de Treinamentos, de um novo Estádio (com aporte público), e servia (ainda) para enfrentar questões “extra campo”. Neste caso, seria o “capital político” e a “sagacidade individual” definidores para os bons movimentos nos bastidores da política tradicional ou do mundo esportivo, que “entregaram” efetivamente resultados. Elementos que seriam distantes do conceitual da “governança”, da “democratização”, preocupação com dimensão social do clube e questões sociais mais amplas. Argumentava-se, também, que a própria torcida do “rival” pouco se importava com “transparência”, “prestação de contas”, “democracia”, “responsabilidade social”: queriam títulos, grandes jogos e conforto, e que o futebol basicamente seria “business”.

Foi recorrente, também, a defesa que responsabilidade democrática/social seriam secundários, nada acrescentavam e até atrapalhavam à ordem de necessidades imediatas e do “mundo real” do futebol: performance esportiva e resultado financeiro. Nessa mesma linha, modelos mais profundos de “transparência” eram vistos como “acessórios”, pois na prática seriam apenas para “fornecer armas aos inimigos”. No máximo, “matéria prima” para o “jornalismo sensacionalista” (que frequentemente “atacava o clube”), ou para promover clima de crise e “cornetagem” torcedora, que nada resolveriam. A visão, inclusive, era que assim se agiria de forma avessa aos competidores diretos, em uma configuração de disputas definida basicamente pelo montante de “poder e dinheiro” dos competidores.

Nessa perspectiva, foi notado ser comum ainda (entre muitos torcedores e até canais da torcida) o discurso da “união” e da “exaltação” do clube como elementos realmente importantes. Isto paralelo a uma espécie de “devoção” (e até “torcida”) pelo trabalho da diretoria. Assim, muitas vezes um grupo de pessoas rechaçava maiores debates e críticas ao clube, tratando estes como “movimentos políticos”, de pouco conteúdo (que “nada sabiam”) e que propagariam um ambiente ruim e derrotista. E que, enfim, apenas atrapalhariam a performance em campo e a administração da entidade.

Finalmente, no caso da “democratização”, uma outra crítica que apareceu seria a ausência histórica de uma cultura efetivamente participativa no clube. Iniciativas para mudança desta cultura eram então rechaçadas como não prioritárias, incertas e pouco promissoras, para suportar um novo “modus operandi” da entidade. Que não podia-se “aventurar em experiências” onde o poder seria exercido de forma difusa, sem responsabilidade, sem conhecimento especializado e compromisso com resultados (também descrito como “populismo romântico”). Neste caso, o discurso era de que bastariam bons (e poucos) profissionais e uma “competente” diretoria. Foi frequente, inclusive, a argumentação de que em um mundo cada vez  mais “acelerado” e “líquido”, as pessoas teriam menos tempo, vontade e condições para uma participação efetiva.

Copa União
Em 1987 a chamada “Copa União” foi idealizada a partir da formação do “Clube dos 13”. Foi vista (e promovida) como a “grande revolução” do futebol brasileiro pela “Revista Placar”, que inclusive forneceu o troféu para o vencedor do módulo verde, o Flamengo. Imagem: Revista Placar

 Considerações finais

A proposta central deste texto foi avaliar as possibilidades da democratização para melhorar a“governança” do futebol brasileiro. Conforme demonstramos, momentos de inflexão e avanço efetivo da “governança” aconteceram pela descoberta e pela ampla reação pública a escândalos, seja no “Mundo Corporativo” ou na esfera esportiva (onde ainda se adapta). Ou seja, o protagonismo social foi fundamental.

Em casos recentes, percebe-se também o mesmo “roteiro”: foram a repercussão pública e o interesse social que de alguma forma demonstraram onde estaria efetivamente o potencial de funcionamento da “governança” e o melhor atendimento às “partes interessadas”, mesmo em instituições onde se imaginava existir mecanismos avançados de administração (pelo menos formalmente). Isto ocorreu, por exemplo, no infeliz (mais ainda latente) projeto da Superliga, quando foram os torcedores de clubes ingleses que protagonizaram a repercussão negativa; no veto da UEFA à iluminação “colorida” do Allianz Stadium, contrabalançada pela iniciativa de cidadãos, clubes e governo alemães; nas denúncias de assédio moral/sexual na CBF; nas denúncias de trabalho análogo ao escravo (já há tempos denunciados por jornalistas) nos preparativos FIFA para Copa do Catar, e que obteve grande repercussão com manifesto recente de jogadores das seleções alemã e norueguesa; a auditoria superficial do Pwc no caso Barçagate, investigação aprofundada efetivamente por grupo de torcedores (dignitat blaugrana). Isto sem falar no “Fifagate”, pois na FIFA já existiam mecanismos (pelo menos formalmente) de “governança” (HAAS, 2020), entre outros.

Desta forma, nos parece claro que uma melhor administração do futebol brasileiro passa necessariamente por sua democratização. O obstáculo enfrentado (e a imersão antropológica do autor em uma comunidade clubística reiterou isto), entretanto, é a persistência do protagonismo de uma leitura no Brasil, onde as finanças, gestão e rendimento esportivo parecem ocupar uma realidade paralela (e desligada) de questões políticas e sociais mais amplas (na verdade em detrimento destas).

Isto presumivelmente se agrava quando análises especializadas evocam/consagram a “gestão”, as “finanças”, o “modelo esportivo” (por óbvio, pilares do futebol atual), mas não consideram a deficiência política e social do “cartola”, do “projeto”. Provavelmente seja por isso, também, que “cases” isolados e sucessos pontuais (desportivo/financeiro) de alguns continuem representando tão pouco no saldo final do nosso futebol. Provavelmente, seja por isso (ainda) que mesmo avançando em análises financeiras e esportivas do futebol (e com algum avanço regulatório geral, no campo social e político), parece que permanecemos engessados, ciclicamente, nas mesmas “modernas soluções” (pretensamente universais), mas que com o tempo se revelam apenas ilusórias: desde a proposta da Copa União, até a recente lei do “clube empresa “. É que não se visualiza o problema, a “equação” como um todo: futebol, gestão e finanças estão intrinsecamente ligados com a sociedade e a política.

Para finalizar, vale lembrar que o discurso da “modernização” no/do Brasil  historicamente foi (e ainda é) muito recorrente. Assim, parece muito oportuno trazer a leitura weberiana de modernidade, como uma tríade sistêmica envolvendo Sociedade Civil, Mercado e Estado. Leitura que sintoniza, aliás, com as inovadoras propostas de “ESG” e de “governança”, que aqui apresentamos. Essa perspectiva mais uma vez nos alerta que a condição de “ecossistema” periférico do futebol brasileiro não é apenas uma questão de “falta de mercado”, mas também de “falta” de “sociedade” e de “política”. Sobretudo de democracia.

Notas

[1]Segundo Chiavenato (1994), em geral há três níveis organizacionais administrativos em uma instituição: 1) Nível Institucional, Intermediário e Operacional.

Referências

Blog do Rodrigo Capelo

Canal Na bancada

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Daniel Vinicius Ferreira

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Universitat Autònoma de Barcelona (doutorado sanduíche). Estuda a questão das identidades, pertencimentos e a globalização do futebol.

Como citar

FERREIRA, Daniel Vinicius. Democratização: mais “governança” no futebol brasileiro (Parte III). Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 11, 2021.
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