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Dener, um Neymar truncado

Arturo Lezcano 25 de abril de 2021

Ele morreu quando tinha apenas 23 anos. Um acidente de trânsito foi o culpado pela tragédia de um jogador que se tornaria uma estrela. Ele tinha acabado de assinar pelo Stuttgart. O torcedor brasileiro jamais esquecerá esse jogador, duas décadas após o seu falecimento, ele parece reencarnado em Neymar.

Era 19 de abril de 1994. “O futebol brasileiro perde a arte de Dener”, começava a voz do além do apresentador do noticiário mais assistido do Brasil. “O atacante do Vasco da Gama morreu esta manhã, no Rio de Janeiro, quando chegava de São Paulo de carro. O acidente ocorreu às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, uma das mais belas vistas da cidade. Dener dormia no banco do passageiro”, concluiu a voz taciturnamente antes de entrar o vídeo. Nele, uma narração explica que Dener havia saído de São Paulo na noite anterior e percorrido, com um amigo, os quatrocentos quilômetros entre uma cidade e outra. Faltavam quinze minutos para chegar ao seu destino e apenas algumas semanas para iniciar uma nova etapa na sua vida: acabava de acertar com o clube que detinha os seus direitos, a Portuguesa, a sua contratação com o Stuttgart da Alemanha.

A colisão contra uma árvore, transformou a frente do carro em sucata, um Mitsubishi esportivo branco com a placa DNR-0010, e abriu a porta do passageiro. Vários jogadores do Vasco da Gama, um dos grandes clubes do Rio, fizeram uma fila, uma espécie de reconhecimento do interior do carro, um velório sui generis. Lá Dener estava deitado, na mesma posição em que havia deitado cinco horas antes. Com o assento reclinado, o impacto do carro contra a árvore o jogou contra o cinto de segurança, que estrangulou sua laringe e o sufocou. Com grandes dificuldades, os jogadores deram suas impressões ao repórter da TV Globo, cercados de curiosos e transeuntes ociosos, em uma sequência angustiante e tragicamente televisionada. Entre eles estava Luisinho, símbolo daquele Vasco tricampeão carioca, que hoje revista suas lembranças com lágrimas: “Parecia que estava dormindo, vi ele ali e quis acordar: ‘Vamos, Dener, vamos treinar, temos um jogo no domingo’, cheguei a dizer”. Quis a história que isso não tornasse possível. A tragédia interrompeu o projeto de estrela, para dar lugar a uma lenda.

Dener Revista Líbero

Dener Augusto de Sousa viveu 23 anos, cumprindo os clichês de um típico jogador de futebol brasileiro. Sua mãe, que sozinha criou seus filhos sem a figura do pai, costumava dizer que antes mesmo de andar, o o pequeno Dener já rolava seu corpo em cima da bola. Nascido em 1971, na Vila Ede, bairro periférico da Zona Norte de São Paulo, começou por surpreender os treinadores de futsal da região com a mesma mistura de habilidades que mais tarde o fez único nos gramados: combinava velocidade com uma coordenação extraordinária, uma malabarista da bola. Na Portuguesa, tradicional clube paulista, jogou por onze anos e foi eternizado, pois o clube nunca o vendeu. Mas, como era comum naquela época no futebol brasileiro, foi emprestado duas vezes – à preço de ouro – primeiro para o Grêmio de Porto Alegre e depois para o Vasco.

Tudo isso aconteceu em menos de cinco anos, entre 1989 e 1994. Quando ele iria se mudar para a Europa, encontrou a morte. Mas sua carreira foi consistente o suficiente para ser lembrado em qualquer canto do futebol brasileiro como um artista irrepetível, por tantos avanços que algumas décadas depois encontraram comparação em outro crack, este, já consagrado: Dener era um Neymar dos anos noventa. Ou, de outra forma, Neymar se tornou o que Dener poderia ter sido antes de morrer.

No Santos de 2010, um certo Neymar Junior, que já tinha a fama de crack, foi trancado em uma sala de vídeo. Lá eles fizeram o jogador assistir jogos de grandes jogadores, dos quais a maioria levava mais pancadas do que saudações. Não foi para ele ver jogadas, mas para aprender como eles reagiam às artimanhas de seus adversários. Aquele garoto magro e com cara de rebelde não sabia lidar com o jogo violento dos zagueiros, que os deixavam girando como um pião. Naquela temporada, em uma partida contra o Ceará, Neymar agrediu o seu marcador após passar o jogo levando pontapés. O então diretor esportivo do Santos, o ex-jogador do Zaragoza, Paulo Jamelli, surgiu com a “videoterapia”. Ele colocou jogos do Maradona. Também do Messi. E, claro, de um contemporâneo seu, que ele admirava desde jovem. Seu nome era Dener.

A Copa São Paulo de Juniores reúne times Sub-20 de dezenas de clubes brasileiros. Desde 1969 é a vitrine para os jovens talentos do país cinco vezes campeão mundial. Em 1991, a Portuguesa conquistou a sua primeira Copa São Paulo graças àquele garotinho que precisava apertar o calção acima do umbigo para colocar a camisa para dentro. Ele ainda não tinha o 10 nas costas, mas saiu daquele torneio como uma estrela. “Hoje a Copa São Paulo é apenas um negócio para os empresários, mas nos anos 90 era pura magia. Naquele ano a Portuguesa venceu todos os nove jogos, um marco sem precedentes até então. E obviamente Dener foi eleito o melhor jogador”, afirmou Marcos Teixeira, jornalista e ex-assessor de imprensa do clube. Neste torneio, as características de Dener foram imediatamente identificadas: velocidade, facilidade em driblar, passes cirúrgicos e, na frente do goleiro, era gol. Ao contrário de dribladores secos como Garrincha, Dener parecia ser melhor na corrida, na velocidade. Pelo caminho, ia deixando os rivais e quando a bola escapava, caia de novo em seus pés, bem parecido com o que Neymar mostrou na edição de 2008. Ao contrário de Dener, o ex-jogador do Barcelona não saiu como estrela do Copinha porque o jogou com apenas quinze anos, era um reserva em ascensão, e poucos meses depois estreou no time principal do Santos. Dener fez o contrário: já estava na equipe principal há um ano e meio, mas tinha idade para jogar entre os juniores.

Na Portuguesa estreou com António Lopes, um clássico treinador brasileiro, que encontrou um meia (ponta ou ou segundo atacante) de 1,68m e 60kg de alma diletante, que se preferia sair das categorias inferiores do clube para jogar por um time de futsal, porque lá pagavam ele. António Lopes lembra: “Naquela época havia um dirigente que me pediu para experimentá-lo na primeira equipe. Chegou um dia para um coletivo. Falei para o auxiliar que lhe desse um colete, mas ele ficou de lado, do lado de fora, e nem percebi. No final, eu o fiz entrar. Na primeira bola ele deu um lençol (chapéu) no zagueiro central. Na segunda, ele escapou, levantando a bola, de um carrinho com as duas pernas. Não tive coloquei fé quando o vi, era magrelo com pernas finas. Mas ele mudou tudo. Falei imediatamente com o presidente, pedi que ele ficasse na residência do clube e que lhe dessem um bom salário, muito superior ao do futsal”.

Dener Revista Líbero

Dener estreou em setembro de 1989, no lugar de Roberto Dinamite, que passava pelo clube já no crepúsculo da carreira. Lopes lembra que o ex-jogador do Barcelona lhe disse mais tarde: “Mas ele não tem 18 anos? Parece que tem o dobro”. Como qualquer estrela precoce, ele se destacava por sua temperança, pelo menos no campo. Do lado de fora era outra coisa. Quem melhor conheceu Dener foi Tico, que dividiu vestiário com ele na Portuguesa desde a categoria dente de leite, e com quem desfrutou e chorou como ninguém, e que ainda é amigo da viúva e dos três filhos. Companheiro de ataque, um dos artilheiros daquela Copa São Paulo, Tico era também um companheiro quando tiravam as chuteiras. “Sou suspeito de falar do Dener, eu o amava demais. Ele tinha um coração muito bom, sempre deu o que tinha para as crianças, quando começou a ganhar dinheiro. Mas ele também era rebelde, gênio. Na minha opinião, ele sentia falta da figura paterna. Ele não era órfão, o pai existia, mas nunca apareceu. Ele o viu quando era uma criança e nunca mais. Talvez por isso Dener fosse um cara feliz, mas com um lado triste que aparecia em forma de rebeldia”, confessa. Isso o fez ganhar fama de indisciplinado, de ir para onde tinha vontade, como as noites paulistanas. E ninguém nega, nem o Tico ou outra lenda do futebol brasileiro quando fala dele.

José Macia, o Pepe, o segundo artilheiro da história do Santos depois de Pelé, e seu companheiro de equipe há mais de uma década. O Canhão da Vila marcou 405 gols em 750 jogos e venceu, com O Rei, seis campeonatos brasileiros, duas Taças Libertadores e duas Intercontinentais. Mais tarde, como técnico, dirigiu vinte equipes em quatro continentes. Do próprio Santos ao Al Ahly – onde treinou Guardiola na sua aventura no Qatar – e claro, a Portuguesa. Bem, entre tudo o que viu, com quem jogou e treinou, há um único jogador de futebol que chamou sua atenção para além do “o extraterrestre”, Pepe tem uma frase devastadora: “Já trabalhei com muitos, muitos jogadores de futebol, mas Dener foi quem mais se aproximou de Pelé”. Aos 80 e poucos anos, Pepe fala ao telefone de sua casa em Santos com voz enérgica e memória viva. A pergunta cruzada atualizada recai sobre Neymar, e ele não tem dúvidas: “O Neymar ainda tem alguns anos para provar mais coisas. Dener não teve tanta sorte”. Que jovem era especial, Pepe não tem dúvida e apreciou seu futebol quando chegou à Portuguesa. “No primeiro dia, o jogador Capitão, o mais experiente do plantel, veio me falar: ‘Venho em nome de todos, pedimos que tenham um pouco de paciência com o Dener, porque às vezes ele desaparece, não vem treinar ou se atrasa’. E era verdade isso. Foi a primeira vez que abri uma exceção para um jogador, mas valia a pena: ele resolvia as partidas”, lembra Pepe. E acrescenta com uma risada: “Além disso, quando ele aparecia, sempre era muito humilde e pedia desculpas”.

Então, já tínhamos o crack rebelde, aquele que percorria o campo e mostrava fragilidades quando sai dos gramados. Isso o colocou em apuros com treinadores mais severos, como Emerson Leão, que se cansou de alertá-lo sobre suas amizades. Mas também gostou muito, como aquele gol contra do Dener contra a Inter de Limeira no Campeonato Paulista de 1991. Com uma verticalidade explosiva, deixou seis zagueiros para trás para anotar um dos seus gols mais famosos. A essa altura, já o haviam apelidado de Reizinho do Canindé (estádio da Portuguesa) e já havia despertado o interesse do então técnico Paulo Roberto Falcão, um dos craques de 1982, que o escalou para o superclássico contra a Argentina no campo do Vélez Sarsfield, foi um 3 a 3. Dener só fez mais uma partida com  a camisa amarela, curiosamente contra a Argentina. Depois, não seria mais convocado na seleção de Carlos Alberto Parreira. Talvez por ser muito teimoso, como observou Leão ou quem o acompanhou: “Na Portuguesa sempre foi muito mimado, davam mais liberdade do que obrigações. Por isso cresceu quando foi ao Grêmio de Porto Alegre, onde não teve a superproteção do Canindé”, diz Marcos Teixeira.

Em 1993, na verdade, teve que sair do Canindé para ir a Porto Alegre. Um clube e uma torcida exigente o aguardavam. Venceu na hora, ao liderar o Tricolor no Campeonato Gaúcho daquele ano. Com o troféu debaixo do braço, voltou à Portuguesa para jogar o Brasileirão, no segundo semestre. Na curta carreira de Dener, esse foi o momento de maior maturidade. E também de brilho, como demonstrou em outro de seus gols mais memoráveis, contra o Santos, onde fez o que quis com a bola nos pés. Ele começou com seu drible favorito, a caneta, o rolinho. Sua mãe dizia que desde pequeno, toda vez que ele dava uma caneta, ele olhava para a arquibancada onde ela estava e sorria para ela. Naquele dia ele recebeu um passe inofensivo no meio-campo. Controlou a bola, girou e deu uma caneta no primeiro defensor a sua frente. E então, numa mudança infernal de ritmo, disparou. Ele foi perseguido pelo jogador que tomou a caneta e outro defensor chamado Silva. Respirando fundo, Dener chegou a meia-lua.

Momento-chave: quando o zagueiro tentou fazer uma falta, o craque o afastou com o braço direito no rosto do adversário, deu mais dois toques na bola, para driblar o goleiro, e empurrar para a rede já gritando gol, pulando com os punhos cerrados na frente de sua torcida. Os jogadores do Santos, atordoados entre o gol e o golpe no pobre Silva, nem protestaram ao árbitro, Oscar Roberto Godoy, que também esfregava os olhos sem acreditar. Anos depois, Godoy confessaria: “Eu estava com o apito na boca, mas era um pecado parar aquela jogada. Em nome da arte, ignorei a falta. Deixei passar um gol que ficou para a história”. Justiça poética. “Para mim, a grande diferença entre Neymar e Dener é a malícia. Se ele tivesse que dar uma cotovelada, quando sofria pontapés, ele dava. Não vejo o Neymar assim, é claro que ele foi criado mais no seio da família, Dener não teve essa sorte”, diz Luisinho. “Neymar foi educado para ser jogador de futebol, Dener cresceu como pode sozinho”, finaliza.

A vida de Dener era uma vertigem. Com a namorada de longa data, teve três filhos, enquanto os zeros aumentavam na sua conta, e principalmente na Portuguesa, que no final de 1993 estava faturando para ele. Desta vez, ele foi para Vasco da Gama por seis meses custando 600.000 dólares. No final daquele ano foi apresentado em São Januário e os jornalistas lhe perguntaram sobre a Seleção, já que sua ascensão na carreira o credesciava para vestir a camisa amarela, apesar da relutância de Parreira. Ninguém tinha dúvida que um bom primeiro semestre o faria ir para o Mundial dos Estados Unidos: “O mais importante é o Vasco, só penso nisso. A Seleção é consequência do trabalho que você faz no clube”, afirmou em sua apresentação.

E aí ele se desenvolveu no Vasco, colocando o time na final do Campeonato Carioca. Para um torcedor europeu pode parecer um título menor, mas para os brasileiros nada mais apetitoso do que vencer o campeonato estadual, recheado de clássicos que dão origem à maior rivalidade. Nesse caso, conquistou a Taça Guanabara, taça que antecede o quadrangular final, contra o Fluminense, antes da morte encontrar o caminho do artista. Mas antes, deixou pérolas nos campos e nos microfones: “Acho que muitas vezes um drible é mais bonito do que um gol”, garantiu em entrevista no início de 1994. Naquela época Maradona jogava no Newell’s Old Boys e o Vasco estava em Rosário para um amistoso. Um empate em 0 a 0, mas de fato Dener mostrou que não era preciso marcar um gol para surpreender ninguém, nem mesmo Maradona. “Ele fez uma jogada que deixou metade do time argentino deitada no chão e me lembro de ver Diego perguntando por ele, maravilhado”, diz Luisinho. O jornal argentino Clarín disse na crônica daquela partida que na primeira arrancada dele, ele já mostrou “porque seu passe vale três milhões de dólares”.

Faltou tempo para ele. Na verdade, seu currículo é bastante curto: apenas 116 jogos na primeira divisão, 42 gols. Seu companheiro de ataque no Vasco, o artilheiro Valdir, voltou à comparação com Neymar, além dos das arrancadas e dos dribles: “Os dois foram estrelas em grandes times brasileiros, mas o Neymar foi jogar no Barcelona e o Dener não teve chance de nada”. Valdir disse, como outros colegas do Vasco, que no Rio de Janeiro, longe de sua casa e dos amigos em São Paulo, Dener estava mais focado. Ele saía menos e treinava mais e melhor. Mas algo aconteceu naquele fim de semana que estava acompanhado de Otto Gomes Miranda, amigo de jogadores de futebol como Romário e Edmundo, e que morreu anos depois em um tiroteio relacionado ao tráfico de drogas. “Achei estranho que ele fosse voltar de carro para o Rio. Ele veio naquele domingo, eu tinha acabado de treinar e nos encontramos no estacionamento da Portuguesa. Ele me disse que tinham acabado de acertar a sua venda para o Stuttgart. Mas enquanto ele falava comigo, um cara com os pés no painel me apressava para encerrar a conversa com ele. Quando vi o carro sair, fiquei me perguntando por que não ia de avião já que tinha que treinar no no dia seguinte, e aí me veio a sessão de que seria a última vez que o veria”, disse o colega Tico.

Luisinho disse que “Dener estava tão sensibilizado com a sua fama de indisciplinado que quis chegar ao Rio de manhã cedo para treinar e por isso optou por ir de carro à noite”. E assim ele se foi, adormecido quando o próprio Luisinho o viu de manhã no carro amassado, inerte, mas sem arranhão, com o bigode ralo e as canelas mais finas. Ele se foi para sempre, mas ainda hoje é reverenciado por qualquer fã do futebol brasileiro. Ou seja, pelos duzentos milhões do país do futebol. Incluindo Neymar Junior.

Tradução: Victor L. Figols

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

LEZCANO, Arturo. Dener, um Neymar truncado. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 50, 2021.
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