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Depressão, homossexualidade, sacrifício: a trajetória de Diego Hipólito

Wagner Xavier de Camargo 18 de abril de 2021

Num desses fins de semana do início do ano, finalizei a leitura da biografia (mais do que autorizada) de Diego Hypolito, famoso ginasta brasileiro que, em meados de 2019, anunciou ser gay à imprensa brasileira e ao país. O livro, Não existe vitória sem sacrifício, foi compilado por Fernanda Thedim, a partir de várias entrevistas que fez com o atleta. Ao lê-lo, temos um encontro direto com Diego, que parece estar ao nosso lado, contando suas histórias.

“Não foram uma, nem duas vezes. Por inúmeras vezes – não importava a hora, de manhã, de tarde ou de noite – pensei em acabar com minha própria vida. Precisava me livrar daquele sofrimento, fazer algo para me sentir melhor. Era um pensamento que ia e voltava a todo instante, como se fosse a única solução (p. 18)”.

E tudo é um soco no estômago: da depressão aguda, diagnosticada aos 27 anos, passando pelas crises silenciosas acerca da homossexualidade e chegando ao sacrifício de treinar muito e lesionado para competições decisivas, Diego mostra-se “mais humano”, figura em geral afastada da condição de “herói”, que a sociedade imputa a atletas de rendimento. Portanto, um atleta demasiadamente humano.

O livro é de leitura simples e rápida, o que não quer dizer que não atinja profundamente as pessoas que se permitirem envolver com a história de vida do atleta. Uma das partes mais comoventes é a que narra a trajetória de transferência da família Hypolito de São Bernardo para o Rio de Janeiro, a convite do Flamengo, para que Daniele Hypolito, na época uma ginasta em ascensão, pudesse treinar. Diego era pequeno e foi à reboque. Com falhas do clube em relação ao salário da atleta e à promessa de encontrar trabalho para o patriarca, a família passou fome:

“Sendo sincero, foram poucos os dias em que a gente, de fato, não teve o que comer, porque meu pai e minha mãe eram incansáveis. Mas foram dias que me marcaram muito, dos quais eu me lembro até hoje perfeitamente. É algo que não sai da minha memória. E isso me marcou porque, mesmo sendo criança, sem ter o que comer, sem poder fazer nada, era muito triste ver o desespero dos meus pais por conta disso, sem condições de alimentar os três filhos direito e de dar outras coisas básicas (…). Estou falando de comida mesmo, arroz e feijão, só isso (p. 68)”.

A crise se arrastou durante um bom tempo, no qual a família continuou com dificuldades. No meio disso tudo, Diego vai surgindo como uma estrela da ginástica, particularmente devido aos excelentes resultados em Campeonatos Mundiais e Copas do Mundo da modalidade. O livro nos oferece, ao final, uma coletânea disposta num quadro com resultados do atleta, a partir de 2003, com as medalhas de prata conquistadas por equipe e no salto sobre o cavalo, nos Jogos Pan-americanos de Santo Domingo, até 2016 e a fatídica e aguardada medalha olímpica (de prata), no solo, nos Jogos Olímpicos do Rio.

Difícil saber, exatamente, para que público o livro foi escrito. Possivelmente pode atrair leitoras/es gerais que se interessem por biografias, ou pessoas que gostem de especular vidas de celebridades, ou ainda, leitoras/es mais especializadas/os, que se interessem pela história do esporte e da ginástica.

No entanto, por meio de relatos específicos sobre os processos de treinamento a que Diego se submete é que entendemos um pouco mais sobre o esporte competitivo que, muitas vezes, tanto apreciamos. Numa das situações, por exemplo, Diego narra que, mesmo lesionado, viajou a França em 2011 para competir por equipe, a fim de garantir vagas para os Jogos Olímpicos de Londres-2012, alguns meses depois. Lá teve um deslocamento no ombro:

“Assim, quando o ombro saiu do lugar naquele treino, isso já me fez entrar em 2012 ressabiado, sabendo que eu não estava cem por cento fisicamente, que teria mais esse desafio para superar. O ombro, na verdade, se somava a uma série de lesões que eu estava administrando e tratando fazia tempo. Para você ter uma ideia, pouco antes disso eu tinha sofrido uma ruptura da cartilagem do joelho e rompido os ligamentos do bíceps pela segunda vez (a primeira foi em 2009)” (p. 41).

Há inúmeros outros relatos de treinamento em que o atleta está com lesões, com dor ou sofrimento, que suplantaram até seus sentimentos depressivos mais profundos. São, obviamente, dores de distintas naturezas, que nos mostram que mesmo quem está inclinado a ter certa performance nos esportes não passa ileso às mazelas comuns das pessoas.

Além disso, ele traz algumas situações, em alojamentos ou concentrações, nas quais sofreu bullying por parte de outros colegas, algo não tão novidade depois de suas entrevistas mais recentes em que chegou a falar na TV sobre tais molestamentos. Depois dos recentes escândalos de abusos sexuais na ginástica artística (nos Estados Unidos, em relação ex-médico da seleção nacional da modalidade , e no Brasil, concernente ao ex-técnico Fernando Lopes), resta-nos indagar, enquanto sociedade e mesmo enquanto cientistas, se não há nada de errado com o modo como tal modalidade opera (formação de pessoas, lógicas internas, treinamentos e afins)?

Diego Hypolito
Foto: Wikipédia

Um tema decorrente deste é o da sexualidade: a (auto)descoberta da sexualidade e a não possibilidade de expressá-la em público. No capítulo “Chega de Segredos”, Diego conta essa parte nebulosa de sua vida e de como era insistente em não dizer, principalmente nas entrevistas, “não sou gay”. Essa resistência permaneceu até meados de 2017, quando começaram as conversações com Fernanda Thedim para a escrita do livro.

Se a medalha poderia ser o aval que o libertaria para se abrir ao mundo acerca de sua sexualidade não heteronormativa, a forte religiosidade o constrangia, ditando-lhe que “ser gay era sinônimo de ser um demônio” (p. 104). Muitos/as atletas passam por isso e, quando se declaram homossexuais, em geral, deixam o esporte competitivo. Diego diz:

“(…) cresci tentando esconder minha sexualidade. Não só dos outros, mas de mim mesmo. Foi muito difícil me aceitar como gay. Embora de longe não pareça, a ginástica é um ambiente altamente machista e preconceituoso” (p. 106).

Temática bastante polêmica, ainda se encontra no “armário” no ambiente esportivo. Não se pode se declarar abertamente “gay”, “lésbica”, “bissexual” ou de qualquer outra orientação (ou identidade), pois há riscos eminentes e imediatos de boicotes, cortes de patrocínios, perdas de apoios, exclusão social e, atualmente, “cancelamento”. Obviamente, há mudanças em curso na sociedade ocidental e há, também, situações distintas, dependendo da modalidade (e de sua envergadura) junto à opinião pública, e desejo que isso pouco a pouco se reverta.

Diego termina o livro dizendo que agradece a todas as pessoas, pois “um atleta nunca ganha uma medalha sozinho” (p. 121). Pois é: pediria que ele refletisse nos/nas muitos/as atletas ainda no armário da sexualidade, que têm dificuldades para se expressar esportivamente pois estão escondendo parte de seus modos de sentir e viver do grande público. Se ninguém “ganha uma medalha sozinho”, Diego, já passou da hora de você sair, de fato, desse discurso de não comprometimento – quando diz “não pretendo levantar bandeira” (p. 112) – e, fincá-la, de uma vez por todas, em solo firme…

Atletas LGBTQIAP+ agradecem, e o esporte, também!

Para quem se interessar:

HYPOLITO, Diego. Não existe vitória sem sacrifício: da depressão severa à medalha olímpica, a trajetória de superação do mais vitorioso atleta brasileiro – Diego Hypolito em depoimento a Fernanda Thedim. São Paulo: Benvirá, 2019.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Depressão, homossexualidade, sacrifício: a trajetória de Diego Hipólito. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 35, 2021.
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