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Derbies que aconteceram, que faltaram: Brasil x Argentina

Já se viu de tudo em derbies entre Brasil e Argentina, provavelmente o principal clássico entre seleções de futebol no mundo (nisso estão ambos de acordo), superior, nas expectativas que gera, aos jogos contra o Uruguai e aos derbies europeus, como Itália contra Alemanha. Foi preciso, no entanto, que tivéssemos uma pandemia mal combatida por um governo inepto e aliado de forma repulsiva ao establishment do futebol, para que alcançássemos o, por assim dizer, glorioso pico da pequeneza em relação a tão importante evento: uma partida pelas eliminatórias da Copa do Mundo com pouco menos de cinco minutos de duração.

As disputas entre brasileiros e argentinos já conheceram dias melhores. Poderiam ter encontrado seu momento máximo e insuperável na final da Copa de 2014, jogada no Brasil. À última partida, um domingo 13 de julho – há sete anos, quando ainda existia, mal ou bem, um projeto de país – os albicelestes compareceram, mas os verde-amarelos faltaram. No lugar deles estavam os alemães, responsáveis por despachar o mal montado time de Luís Felipe Scolari, aquele no qual um zagueiro jogou improvisado pela direita, o ponta obscuro de quem se esperava um milagre foi escalado, o lateral-esquerdo que não sabe marcar atuou desprotegido por volantes mal posicionados, e o beque-central resolveu ser atacante. A derrota fragorosa para os teutônicos não foi, no entanto, mais vexatória do que o insólito acontecimento do domingo passado na Arena Itaquera.  

Houve outra falta dos brasileiros, a da final dos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, ao perderem a semifinal para os nigerianos, que seriam campeões na final contra os argentinos. Dida, Ronaldo, Rivaldo, Aldair, Flávio Conceição, Roberto Carlos e vários outros excelentes jogadores regressaram com a medalha de bronze. Mas voltemos com os encontros em copas do mundo. O primeiro foi em 1978, e os argentinos jogavam como locais. O embate se deu na segunda fase daquele Mundial, antes da hora, porque ambos se haviam classificado, cada um seu grupo, na etapa anterior, em segundo lugar. O Brasil amargara dois empates, a Argentina perdera para a Itália, então lá se foram os dois times para a embarrada grama que foi palco daquela partida que ficou conhecida como A batalha de Rosário.

Foi numa noite de domingo, e a criança que eu era estranhou o horário, mas gostou: uma atividade animada, com direito à expectativa de substituir o desconforto de esperar as aulas do dia seguinte, para enfrentar o melancólico crepúsculo dominical. Lembro dos jogadores fazendo seu aquecimento no campo, o que era incomum naqueles anos. Sobre as camisetas levavam seus agasalhos da marca adidas, símbolo do que era moderno, lembrando a Alemanha Ocidental e seus centros avançados de treinamento, bem como o time campeão de quatro anos antes.  Faziam seus exercícios sob uma vaia monumental, mas a estratégia era essa, acostumar-se com a enorme pressão vinda das tribunas, para diminuir-lhe o efeito durante o jogo.

Com Zico e Rivellino começando no banco (o primeiro barrado, o segundo lesionado) e Chicão de primeiro-volante (meu pai gostava do jogador do São Paulo, homônimo dele, e que “jogava sério”) a seleção brasileira recebeu e distribuiu pontapés, deixando seu treinador satisfeito com o resultado, um empate sem abertura de contagem. Quanto ao selecionador argentino, dizia-se à época que fumara 72 cigarros durante a peleja. Eram tempos em que os cigarros eram bem-vindos até no interior de salas de aula e de aviões, e não era diferente nos campos e quadras. Cesar Luis Menotti, El Flaco, era mais um a pitar. Na rodada seguinte, que definiria a liderança do grupo e a consequente classificação para a final, os argentinos fizeram 6 gols nos peruanos, relegando a seleção brasileira à disputa pela medalha de bronze.

Cerca de um ano depois do empate em Rosario, dois novos encontros, o primeiro no Maracanã, com vitória brasileira por 2 a 1, o segundo no Monumental de Nuñez, com empate em dois gols (os do Brasil foram de Sócrates). Perguntado se seria mais difícil enfrentar a Argentina no futebol ou saltar de paraquedas na Amazônia, Coutinho, que fora capitão paraquedista do Exército Brasileiro, disse que, em Copa do Mundo, a partida contra os hermanos era mais complexa do que o salto sobre a grande floresta. Em Copa América, não seria para tanto.

O segundo encontro em mundiais foi em 1982, na Espanha, um partidaço que ficou na nossa memória como a marca daquela seleção que idealizamos, com grande desempenho de Sócrates, Zico, Falcão, Éder, Leandro, Cerezzo e Junior. Os 3 a 1 levaram o time dirigido por Telê Santana a precisar apenas do empate contra os italianos na rodada seguinte, a fim de obter a classificação para as semifinais. Mas a Itália, que seria campeã, era uma adversária à altura e, com um 3 a 2, perpetrou-nos o traumático Desastre do Sarriá.

Sim, houve outras vitórias convincentes do lado verde-amarelo: no Mundialito 1980, no Uruguai, em edições de Copa América (com um gol de Túlio, logo depois de ajeitar a bola com o braço esquerdo, em 1995; nos pênaltis, em 2004, com o time B em que brilhava o craque Adriano; em 2007, por 3 a 0, na última boa partida que o time jogou naquela competição), assim como uma goleada impiedosa em uma final de Copa das Confederações (4 a 1 na África do Sul, 2009). E também derrotas, algumas com reduzido significado, como nos Jogos Panamericanos de 2003, em Santo Domingo – o Brasil teve ótimo desempenho na competição, muito melhor que o dos argentinos, mas, segundo eles, no que interessa, que é o futebol, a vitória foi deles; outras mais expressivas, como na última Copa América, em pleno Maracanã, o 1 a 0 que levou Messi ao seu primeiro título com a seleção principal de seu país.

Neymar, Messi, Tite e outros membros da comissão técnica discutem sobre o jogo interrompido. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

E houve a ridícula situação da semana passada. Como costuma acontecer conosco, e igualmente com os queridos vizinhos, tudo foi sendo levado esperando-se que as coisas se resolvessem espontaneamente, ou que alguém daria um jeito. Em países autoritários, como Brasil e Argentina, alguma “autoridade” sempre aparece para dar uma ordem e autorizar o que quer que seja. Deu no que deu, e não surpreende. As torcidas dos dois países, tão vilipendiadas, mereciam um pouco mais de respeito. Mas, por outro lado, o que esperar dos dirigentes da CBF e da AFA, da Sul-americana e da FIFA? Bem, se houver a partida, de fato, já nos damos por satisfeitos. Somos gente que se contenta com pouco.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Derbies que aconteceram, que faltaram: Brasil x Argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 17, 2021.
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