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Derby de tessalônica: a história recente da Grécia em um clássico

Copa Além da Copa 17 de fevereiro de 2022

O eixo Grécia-Chipre-Turquia é repleto de rivalidades históricas que vão muito além do campo. A mais famosa é, sem dúvidas, a que envolve Galatasaray e Fenerbahçe em Istambul, mas há outros exemplos menos conhecidos e também excepcionais, como a disputa política entre APOEL e Omonia em Nicósia.

Na Grécia, esse embate se dá entre clubes que representam a Grécia independente e seus rivais formados por gregos que vieram de fora, refugiados dos vários conflitos do início do século XX. Neste texto, vamos focar no caso da cidade de Tessalônica, que opõe o PAOK, time dos refugiados, em sua rivalidade com o Aris, representante de uma espécie de “elite helênica”.

Esse texto é um complemento ao Copa Além da Copa de fevereiro, que fala sobre o futebol no eixo Grécia-Chipre-Turquia e suas relações históricas e políticas. Para ouvi-lo, clique aqui!

Tessalônica: território tardio grego

A cidade de Tessalônica recebeu seu nome em homenagem a uma meia-irmã de Alexandre, o Grande. Sua localização estratégica fez com que eventualmente se tornasse a mais importante da Macedônia (a região grega, não confundir com o atual país chamado Macedônia do Norte) e, mais tarde, servisse como ponto fundamental de comércio para impérios como o Romano e o Bizantino.

Fundamental tanto para o cristianismo quanto para o islamismo, chegou a ser centro de um próprio reino, chamado Reino da Tessalônica. O mais importante para essa história é saber que, após um longo cerco de quatro anos, entre 1383 e 1387, a cidade enfim caiu para o Império Otomano, que avançava impiedosamente pelos Bálcãs. Houve um breve período de independência e resistência, mas por vários séculos os tessalônicos estiveram sob domínio otomano.

Tessalônica se tornou uma cidade multiétnica durante o domínio otomano, tendo não só turcos e gregos, como também búlgaros e albaneses. A religião também se dividiu: censos mostram equilíbrio entre muçulmanos e ortodoxos. A partir de um certo momento, a coroa começou a convidar diversos judeus para ocuparem o local – há quem veja o ato como uma forma de impedir que a população grega passasse a ser extrema maioria.

Com tal política otomana, Tessalônica era no século XVI a única cidade do mundo com maioria judia e a cidade do mundo com maior população judia.

Muito tempo depois, com a Guerra de Independência da Grécia, o governador local Yusuf Bey promoveu um massacre contra a população grega étnica. “Não se ouve nada nas ruas de Tessalônica além de gritos e gemidos”, dizem relatos da época. Foi só no final do século XIX que os gregos voltaram a se aproximar do número de habitantes que tinham antes na cidade.

Tessalônica se reconstruiu e se transformou em um centro cosmopolita no final do século XIX e início do século XX. Sua variedade étnica chamava a atenção, com 47% de judeus, 22% de turcos e 14% de gregos. O preço pela modernidade era o surgimento de grupos revolucionários de todos os tipos: alguns visavam a integração à Grécia, outros, como os Young Turks, queriam a queda do Império Otomano e a instauração de uma república turca.

Foi na Primeira Guerra dos Balcãs, em 1912, que a Grécia avançou sobre Tessalônica. O primeiro-ministro Eleftherios Venizelos exigiu que o exército tomasse a cidade a qualquer custo. Com o Tratado de Bucareste, assinado em 18 de março de 1913, a região da Macedônia foi anexada ao território da Grécia, quase cem anos após a independência helênica.

De Constantinopla a Istambul

Mas não dá para falar de futebol sem antes voltar para a ex-capital do Império Otomano, Constantinopla. Ao final da Primeira Guerra Mundial, a cidade foi ocupada por forças estrangeiras em 1918. Essa humilhação estimulou um movimento nacionalista que defendia a criação de um Estado para os turcos. 

Os turcos travaram uma campanha de batalhas em sua guerra de independência, que foi de 1919 a 1923, e conseguiram formar a República da Turquia ao final dela. A capital escolhida foi Ancara, onde o movimento já havia estabelecido o seu governo. 

Já Constantinopla ainda teria esse nome usado oficialmente até 1928, quando os turcos adotaram o alfabeto latino e passaram a exigir que a cidade fosse chamada de Istambul. Este nome, uma versão turca de uma expressão grega que significa “para a cidade”, já era usado informalmente há séculos, mas a troca oficial foi importante para demarcar o fim da influência grega. 

PAOK
PAOK em 1926. Fonte: Wikipédia

PAOK: um clube de refugiados

Até que Constantinopla virasse Istambul, a prática esportiva já havia se difundido por suas ruas. Entre os gregos da cidade, um clube chamado Hermes, em referência ao deus mitológico, era a expressão do ideal atlético no final do século XIX. Essa era apenas uma das facetas do clube, fundado para promover os valores helênicos. Estava sediado, afinal, numa cidade em que gregos disputavam espaço com turcos.

O problema é que, em 1923, com a independência turca, Constantinopla ficou no território do novo país. Os governos de Grécia e Turquia decidiram então fazer uma troca de população: os turcos enviariam os gregos à Grécia, e os gregos enviariam os turcos à Turquia. Mais de 1,6 milhão de pessoas foram forçadas a deixarem suas casas e partirem para um novo país, num processo análogo a uma limpeza étnica dessas nações.

Muitos dos gregos que frequentavam o Hermes se tornaram assim refugiados. E parte deles se estabeleceu em Tessalônica, onde, apesar de todos os problemas que enfrentavam, ainda queriam ter um clube de futebol. Nasceu então, em 1926, o PAOK, cuja sigla traduzida do grego quer dizer “Clube Atlético Pantessalônico de Constantinopla”. 

E não é só no nome que o clube carrega as marcas do passado: no distintivo, foi adotada em 1929 a águia de duas cabeças, um símbolo do Império Bizantino, cuja capital era Constantinopla. As cores, preto e branco, também remetem às raízes. O preto é o luto pelo “desastre da Ásia Menor”, que é como os gregos chamam a perda desse território para os turcos. O branco, por sua vez, é a esperança de recuperá-lo.

O PAOK virou, no início de sua vida, o “clube dos refugiados”. E os refugiados, que foram expulsos da Turquia, não foram exatamente bem recebidos na Grécia. As autoridades os colocaram em regiões pobres, que, em pouco tempo, se converteram em locais perigosos, onde havia forte agitação social. Faltavam empregos e oportunidades, e os que já moravam em Tessalônica discriminavam contra os recém-chegados.

Além disso, a cidade já tinha um clube de futebol que a representasse.

Aris e a identidade local grega

O Aris Tessalônica foi fundado em 1914, pouco após as Guerras dos Bálcãs já mencionadas, momento em que o nacionalismo grego estava em alta. Com inspiração nas vitórias da Grécia e de seus aliados contra o Império Otomano e contra a Bulgária, um grupo de amigos criou um clube de futebol com o nome do deus grego da guerra: Ares.

A cor dourada também foi escolhida por remeter ao reino helênico da Macedônia, do qual Tessalônica fez parte. E, nos anos de 1970, o clube inclusive colocou em seu distintivo a imagem de “Ares Ludovisi”, a mais famosa escultura que representa o deus homônimo.

Portanto, antes que os estrangeiros que fundaram o PAOK chegassem à cidade, os naturais de Tessalônica já tinham um time que representava não só o orgulho helênico, mas os valores do Estado grego, aquele que, cem anos antes da criação da Turquia, havia entrado em guerra contra o Império Otomano e obtido sua independência. 

O Aris se tornou o primeiro campeão nacional grego da história, na temporada 1927/28, mas, antes disso, já havia também ajudado a formar uma liga “macedônia”, apenas com as equipes de Tessalônica. E, se afirmando perante as outras rivais locais, era quem mais bem vestia orgulhoso a identidade citadina. Portanto, nada mais natural que, com a chegada de “estrangeiros”, nascesse assim o clássico que melhor representa o norte do país: a elite helênica contra os refugiados de Constantinopla.

Aris
O time campeão do Aris em 1928. Fonte: Wikipédia

Um derby de classes sociais distintas

PAOK e Aris são dois clubes nacionalistas. O primeiro traz em seu distintivo um símbolo do Império Bizantino e a esperança de recuperar um território perdido, o segundo faz uma referência direta no nome a um deus helênico, também clara alusão à valorização do passado. Nisso, há uma óbvia convergência.

A rivalidade mora, sobretudo, nas diferenças sociais. Como mencionado, os refugiados que vieram da Turquia foram alocados em regiões pobres e que rapidamente ficaram superpopulosas. Era uma classe com pouco poder aquisitivo e que precisava se encontrar em um novo lugar. Há ainda hoje uma delimitação entre o PAOK, clube do povo, e o Aris, clube da elite.

Trata-se de uma rivalidade estrondosa, que normalmente produz brigas, ofensas e, não tão raro, mortes: agora mesmo, em fevereiro de 2022, um jovem de 19 anos chamado Alkis Kambanos foi esfaqueado e espancado até a morte nas ruas de Tessalônica. A polícia descobriu que o motivo do crime, cometido por um grupo de homens que têm no máximo 23 anos de idade, foi a rivalidade futebolística.

O grupo de torcedores do PAOK visava atacar e matar fãs do Aris que estavam almoçando em um restaurante local. Porém, Alkis Kambanos passou na rua no momento e, perguntado para qual time torcia, respondeu que era para o Aris. Foi o suficiente para seu brutal assassinato.

Após o crime, a polícia de Tessalônica fez uma batida em sedes dos principais grupos de ultras e nas casas de torcedores famosos dos clubes da cidade e encontrou várias armas. Mais uma vez, o derby está na mídia, com políticos importantes de toda a Grécia condenando não só o assassinato, como a tradição de brigas e violência que segue em um ciclo vicioso.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

COPA, Copa Além da. Derby de tessalônica: a história recente da Grécia em um clássico. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 20, 2022.
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