O Derby está irreconhecível
“Minha senhora, a senhora não sabe o que é um Palmeiras e Corinthians”.
Sempre que um Derby se aproxima é retomada a clássica cena de “Boleiros”, filme de Ugo Giorgetti, em que Lima Duarte, interpretando Oswaldo Brandão, invade um quarto de hotel para flagrar uma suposta infiltrada enviada por corintianos para subverter a concentração do centroavante palmeirense na véspera de um clássico e ao não conseguir o esperado “flagrante”, adverte a sedutora, interpretada por Marisa Orth, com a frase acima.

De fato, de um lado ao outro, principalmente entre torcedores, todos sabem o que é um Palmeiras e Corinthians. É o Derby, é o jogo que para a cidade e até quem não torce para os envolvidos, é a partida que o palmeirense mais gosta de celebrar e ao mesmo tempo a que mais tem raiva de lamentar e o mesmo serve para o corintiano.
Porém, o Derby que seria motivo de expectativa em qualquer outra situação se tornou algo irreconhecível por ser disputado no momento mais trágico do país neste século e talvez na história.
Apesar dos mais de 96 mil mortos e mais de 2,5 milhões de infectados pelo novo coronavírus no país, Palmeiras e Corinthians entrarão em campo para disputar o Campeonato Paulista da pandemia.
Realmente vale tudo num Palmeiras e Corinthians?
Ignorar o momento pelo qual passa o mundo para retomar o futebol é descabido. Retomar o futebol com protocolos de “faz-de-conta”, como ficou demonstrado na reunião em que o presidente corintiano afirmou que não testará seus jogadores porque o presidente palmeirense liberou seus atletas do confinamento, é irresponsável.
Fazer todo esse circo enquanto milhares morrem e outros milhões sofrem as consequências da pandemia parece no mínimo egoísta. Em São Paulo, não se cometeu a indecência de jogar futebol ao lado de um hospital de campanha, mas não custa lembrar que o estado é o epicentro da epidemia brasileira sendo o mais atingido com o maior número de contaminados e mortos.
Ao citar Oswaldo Brandão logo no início do texto poderia ser um bom caminho relembrar a trajetória vitoriosa do treinador que melhor conheceu o que é de fato um Palmeiras e Corinthians. Ele foi o treinador que mais vezes dirigiu o Palmeiras, em 580 oportunidades, e também o técnico que mais comandou o Corinthians, em 439 partidas.
Em 1954, foi o gaúcho que deu o título do IV Centenário ao Corinthians e depois de quase 23 anos, em 1977, voltou para tirar o Alvinegro do seu mais longo inverno sem títulos.
O mesmo Brandão que em 1974, pelo Palmeiras, tirou a chance do fim do sofrimento corintiano ao escalar e dar confiança a Ronaldo que anotou o gol na decisão do Paulista que virou o eterno grito palmeirense “zum, zum, zum, é 21”.
Com esse retrospecto e a história mais vitoriosa como treinador no comando dos arquirrivais, citar Brandão não é apenas um bom caminho, é a única alternativa para falar sobre um Derby que não deveria acontecer.

Um clássico que acontece desde 2016 com a infame torcida única, dessa vez, acontecerá sem torcida nenhuma nos estádios, pois o planeta passa por uma pandemia e o futebol brasileiro segue o “novo normal”.
É verdade que já aconteceu um Derby na retomada. Em matéria de bola rolando, péssimo, registre-se. Porém, não podemos naturalizar o que está errado, nessa toada, o brasileiro parece ter ficado dormente com mais de mil mortes por dia no país.
Diante de tudo isso, o resultado ao final dos dois jogos ficará em segundo plano, os dirigentes aceitaram fazer do futebol algo que ele não é: puro entretenimento, uma distração da realidade. O Derby está irreconhecível e mesmo quem já esteve várias vezes na arquibancada de um clássico, hoje, não sabe o que é um Palmeiras e Corinthians.