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Desculpa, sacolinha

Leandro Marçal 27 de março de 2018

Peguei o banquinho na sala e o arrastei até meu quarto, à frente do guarda-roupa. Antes de me equilibrar, pensei por alguns momentos no lugar de bundas dar lugar a meus pés por uma gambiarra doméstica e arriscada. O pensamento voou e segui em frente. Subi e encarei fixamente os objetos guardados – alguns esquecidos – em antigas caixas de sapato ou cestas básicas, um pouco mais pesadas pelo pó cinza que cobria cada uma delas.

Afastei as mais pesadas e espirrei duas vezes quando o cheiro de coisa velha ficou mais forte. Olhei ao fundo, estiquei os braços e o sovaco esquerdo ficou prensado até que as mãos alcançassem a sacolinha quieta e muito bem amarrada.

Não era uma sacolinha qualquer. Mais reforçada que as distribuídas nos caixas de supermercados, diferente das que usamos nos cestos de lixo da cozinha e do banheiro. E o que estava ali dentro não era uma simples mercadoria. Nem mesmo um mandado judicial seria capaz de permitir outra pessoa estar ali, vasculhando o “arquivados e perdidos” de cima do guarda-roupa.

2005Desfiz um nó bem apertado e lá de dentro uns velhos conhecidos me olhavam com a cara de quem acabou de acordar. Os guias do Brasileirão entre os anos de 2003 e 2008, com resultados preenchidos à mão em tabelas nas últimas páginas, estavam bem conservados. Tomei cuidado para não danificar as velhas fotos de folclóricos jogadores dos times participantes, antes que a moda fosse posar para a câmera da televisão, mostrando a cara dos artilheiros a cada gol na rodada de quarta ou domingo.

Encontrei uns três livretos com todas as informações de campeonatos paulistas de meados da década passada. Mas, percebi já há algum tempo que eles não são tão empolgantes como nos velhos tempos. Quando eu encontrar um cartola por aí, contarei esse segredo desconhecido pelos donos do videogame do futebol brasileiro.

Guias da Libertadores não eram muito confiáveis para mim, então só achei na sacolinha dois ou três exemplares. Que me perdoem os editores das revistas futebolísticas, mas na minha adolescência eu achava humanamente impossível saber tudo do futebol sul-americano. Mal sabia que na década seguinte minha TV transmitiria até jogos do campeonato chinês e haveria especialistas até na segunda divisão inglesa.

Não podiam faltar os pôsteres de ídolos do meu time de coração. Alguns com a imagem do maior ídolo de sua história, outros elencos campeões perfilados antes de finais. Aliás, qual a graça de ver fotos estilo pôster na tela do computador? Pobres gerações futuras.

Sinto pena de mim pela internet me fazer economizar com os guias.

Por fim, encontrei o que tanto procurava. Os álbuns das Copas do Mundo de 1998 para cá, devidamente preenchidos do começo ao fim. Para ser honesto, falta um zagueiro croata no álbum da Copa da França, quando trocava as figurinhas repetidas na escola. Em 2002, já estava mais ligeiro e terminei com rapidez e a ajuda do meu pai. Em 2006 não me empolguei tanto, mas fui até o fim, como uma missão indispensável. Na edição disputada na África do Sul, trocava os lanches no intervalo da faculdade por mais pacotinhos na banca ao lado do barzinho. De Humanas, pedia para alguém me ajudar a fazer as contas, pois um bolsista tem dinheiro contado para pegar o ônibus de volta para casa.

O emprego fixo e o ineditismo de Copa no Brasil, com treinos de seleções na minha cidade, me fizeram repensar a desistência dos álbuns. Novamente fui até o fim e me felicitei ao colar o procurado emblema da CBF, dois dias antes do fatídico 7 a 1.

E eu fazia as contas do orçamento doméstico quando a TV falou mais alto sobre os preços das figurinhas desse ano. Cálculos rápidos me fizeram chegar à conclusão que era melhor deixar a tradição de lado do que atrasar boletos. As figurinhas estão mais caras. A vida também. A família cresceu, a crise financeira também. A maturidade e as prioridades mudaram. Minha vontade de ir à velha banca com o álbum na mão, não. Sacrifícios são necessários, infelizmente.

Desisti de atualizar a sacolinha, que entendeu bem. Não houve choros, brigas ou lamentações. O tempo passa, ela diria. Passei um pano com um produto de limpeza nos guias, pôsteres e álbuns. Não admito que os chamem de objetos inanimados. Muitas histórias em cima de um guarda-roupa.

A vida é assim. Desculpa, sacolinha. Nesse ano, não trarei novidades.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Desculpa, sacolinha. Ludopédio, São Paulo, v. 105, n. 27, 2018.
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