Foto: Wikipédia

Diego, de repente, recebe a bola.

Por ora, ele é apenas um gênio.

Dali a sete segundos, será um deus.

É o momento mais mágico e sublime do futebol mundial. É o momento da apoteose. Do alinhamento dos planetas, da congregação dos astros, da transformação do humano em divino, do ordinário em extraordinário.

Estádio Azteca, Cidade do México, Copa do Mundo de Futebol, 22 de junho de 1986.

Argentina e Inglaterra estão em campo, com lembranças ainda muito vivas e marcantes da Guerra das Malvinas de quatro anos atrás.

Esqueçamos a guerra. Foquemos no milagre.

O mítico Azteca da Copa do Mundo de 1970, da final entre Brasil e Itália, da conquista definitiva da Jules Rimet, do gol de Carlos Alberto, está prestes a presenciar mais uma cena inesquecível. Inexplicável. Inquietante.

Porque ninguém testemunha um momento desses sem mudar suas certezas, suas verdades, sua própria fé.

Diego, eu dizia, de repente recebe a bola. É jogo de quartas de final. Só um seguirá vivo.

O cronômetro marca dez minutos do segundo tempo.

Quatro minutos atrás, Diego já entrara para a história com o gol que seria batizado de “La Mano de Dios”. Agora, parece querer provar que aquele gol tinha mesmo origem sagrada.

Paralise o instante. Imagine-o.

Diego está de costas para o lado que precisa atacar, perto do meio de campo, mas ainda no setor defensivo de sua equipe. Tem dois jogadores o cercando, que, bem próximos, correm com ímpeto em sua direção.

O pensamento é ágil, a resposta do corpo alucinante.

São três toques iniciais, giros em torno de si mesmo, para o necessário movimento de, sem perder a posse de bola, se colocar de frente para o lado certo e iniciar a maior corrida de sua vida.

Na sequência, mais quatro passes. A velocidade é incrível. Já havia abatido dois. Tira de combate um terceiro. Ainda nem mesmo chegou à grande área adversária. Antes de chegar nela, um quarto inglês será posto ao chão.

Dentro da área, sem perder a velocidade, tocará apenas duas vezes na pelota.

No primeiro toque, vai tirar da jogada tanto o goleiro como o zagueiro que fazia a cobertura, prostrado ali apenas por supor que Diego era humano. Porque, se o fosse, cortaria para dentro em busca de mais ângulo. Mas, a gente sabe, Diego não é humano. Corta para fora, para onde o ângulo é mais escasso, para a terra sagrada dos deuses da bola.

No segundo, um milésimo antes de ser desarmado por um inglês alucinado, colocará para sempre a bola no fundo do gol adversário. Se procurarmos bem, ela ainda hoje estará lá. Na história, na posteridade, na memória, no arrebatamento de milhões.

Diego não parece ser apenas um jogador de futebol. É um dançarino de tango. O lance dura sete segundos. São onze toques na bola, todos executados de perna esquerda. Seis ingleses driblados, convidados a se entregar, a bailar, a se desabar no gramado.

Pois, vieram me dizer que foi justo esse Diego que morreu hoje.

Tolos.

Não sabem eles que deuses não morrem.

Deuses apenas viram arte, lenda, eternidade.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. Deuses não morrem. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 59, 2020.
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