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Diário da arquibancada: um relato dos protestos dos Gaviões da Fiel no primeiro semestre de 2016

Na ensolarada manhã do dia 25 de janeiro deste ano, uma segunda-feira, em pleno feriado municipal, as arquibancadas do estádio do Pacaembu estavam quase lotadas. A razão para a afluência massiva era a decisão da Copa São Paulo de Futebol Júnior, tradicional competição disputada a cada início de ano. A final colocava frente a frente Corinthians e Flamengo, dois dos clubes mais populares, com as maiores torcidas do Brasil. Dentro de campo, o que se via eram lances de efeito, gols vistosos e aspirantes a futebolistas que podem fazer o brasileiro voltar a ter esperança por dias melhores no seu combalido e desacreditado futebol.

O jogo terminou empatado em 2 a 2 e o título veio a ser decidido nos pênaltis. A decisão foi emocionante. As cobranças de penalidade máxima colocavam ora um time ora outro em vantagem, o que tornava o desfecho imprevisível. Já passava de uma hora da tarde quando, depois de sucessivas idas e vindas, o rubro-negro do Rio de Janeiro sagrou-se campeão. No setor das arquibancadas conhecido como Tobogã, a torcida visitante comemorava com euforia, mesmo sob o calor intenso do verão, ovacionando os novatos vencedores do seu time.

Mais do que a conquista do título pelo Flamengo, ou a comemoração dos torcedores do clube carioca, um fato chamou a atenção nas arquibancadas naquele dia. O episódio aconteceu ainda durante o tempo regulamentar de jogo, pouco depois do início do segundo tempo. O caso foi protagonizado pela maior torcida organizada corintiana, Gaviões da Fiel. O incidente ocorreu no momento em que milhares de sinalizadores foram acesos pela torcida, logo naquele início de segunda etapa da partida. O que era para ser uma manifestação de apoio à equipe causou grande controvérsia e terminou por se sobrepor aos próprios comentários a respeito do jogo.

Com efeito, o festival pirotécnico da torcida provocou uma imensa nuvem de fumaça preta. Mesmo sob a luz solar do meio-dia, a chama se avolumou no setor amarelo das arquibancadas, na altura do corner, local em que tradicionalmente se posta a torcida em jogos do Corinthians. Ante a situação inusitada, o jogo teve de ser interrompido por alguns minutos. Durante a interrupção, o locutor da principal emissora de televisão do país, que transmitia a partida ao vivo para todo o Brasil, em tom de reprimenda moral dirigida a crianças, reprovava o ato dos torcedores: “não tem nada de bonito isso, o que vocês estão fazendo é muito feio”.

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Torcedores corinthianos com os sinalizadores na final da Copa São Paulo de Futebol Júnior. Foto: Fábio Soares/futeboldecampo.net.

A repercussão negativa da mídia gerou notícia no dia seguinte. A opinião pública não apenas condenou como exigiu uma punição exemplar aos “irresponsáveis”. Aos olhos dos organizadores, estes torcedores, sob o pretexto de promover a festa, acabavam por atrapalhá-la. Ainda naquele princípio de semana, a imprensa noticiou que a referida torcida seria punida pela Federação Paulista de Futebol (FPF).

Ao tornar pública a decisão, a entidade determinava que a agremiação de torcedores estaria proibida de entrar nos estádios paulistas por um período de 60 dias. Ao longo desses dois meses, os Gaviões não poderiam comparecer aos estádios, sem a autorização para trajar vestimentas ou portar objetos de identificação, tais como faixas, bandeiras e instrumentos musicais.

A punição, no entanto, teve um efeito contrário ao esperado. Pode-se dizer que suas consequências tiveram um significado mais político do que propriamente esportivo. Isto porque a reação dos torcedores ante a decisão foi até certo ponto inédita e surpreendente. A sanção à torcida serviu de estopim para uma série de manifestações ao longo do primeiro semestre de 2016, capitaneadas por lideranças dos Gaviões da Fiel. Excluídos dos estádios, seus integrantes tomaram as ruas, fizeram passeatas em frente à sede da Federação Paulista de Futebol e ocuparam os espaços públicos da cidade de maneira pouco antes vista.

O banimento determinado pela entidade gestora do futebol profissional em São Paulo não intimidou os Gaviões, que à sua maneira partiram para o contra-ataque. A ofensiva incluía uma pauta de cobrança aos responsáveis pela organização do futebol brasileiro. Não se pode negar a relação da iniciativa com a conjuntura nacional, marcada pela atmosfera de radicalização e de indignação moral contra a corrupção, que tomou o país, e pela convulsão social desde as chamadas “Jornadas de Junho” de 2013. Sob esta influência, o grêmio de torcedores, uma das maiores torcidas organizadas do Brasil, que conta com um total de mais de cem mil associados, promoveu uma onda protestos cujo sentido foi muito além da punição sofrida, com dois meses de afastamento dos estádios.

Fora deles, ou dentro dos mesmos mas sem identificação, os Gaviões continuaram a empunhar seus sinalizadores e fizeram deste artefato um símbolo da resistência contra o “futebol moderno”. Além disto, criaram gritos de guerra contra dirigentes e passaram a exibir faixas reivindicatórias. Estas exigiam mais transparência na gestão do futebol nacional e elegiam, afora a Federação Paulista de Futebol (FPF), um alvo preferido: a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), cujos cartolas, como se sabe, não gozam de grande reputação perante a imprensa.

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Fumaça toma conta da arquibancada do Pacaembu. Foto: Fábio Soares/futeboldecampo.net.

Lembre-se que o desprestígio da entidade máxima do futebol brasileiro tem-se acentuado nos últimos anos, não apenas pelos recentes desempenhos pífios da Seleção Brasileira em competições internacionais, como também pelas investigações do FBI norte-americano – o Federal Bureau of Investigation – contra escândalos de corrupção na FIFA, apurados desde 2015. As suspeitas atingiram o então presidente da CBF, José Maria Marin, antigo cartola da Federação Paulista, que ficou preso na Suíça durante meses e que hoje se encontra em prisão domiciliar nos Estados Unidos.

Outra frente aberta pelos torcedores disse respeito à dimensão econômica do futebol, visto no Brasil como um lazer e como uma diversão eminentemente popular. Ao trazer à discussão as limitações do acesso dos torcedores menos favorecidos aos estádios, os Gaviões colocaram na pauta o notório processo de elitização do futebol brasileiro.

Nesse sentido, a torcida passou a colocar faixas em seu próprio estádio contra os gastos exorbitantes da diretoria do clube. Estes foram direcionados à construção da “casa” do Corinthians em Itaquera, mas tiveram por efeito imediato o encarecimento dos bilhetes e a exclusão do “povo” – motivo de orgulho da identidade clubística e do “corinthianismo” –, da sua arena. Sem poupar os dirigentes corintianos dessas cobranças, a torcida se tornou porta-voz da crítica contra os escorchantes valores dos ingressos, impostos junto com a inauguração das novas arenas para a Copa do Mundo de 2014.

Junto a isso, a torcida iniciou também uma campanha contra a emissora detentora dos direitos de transmissão dos campeonatos nacional e estadual. O centro preferencial das críticas se dirigiu a um motivo pontual, mas deveras importante para os direitos do torcedor como cidadão e como consumidor: o horário das partidas que ocorrem no meio de semana. Quando transmitidas pela televisão, estas começam às 22h00, de forma a atender à grade da programação televisiva.

Se é cômodo para os telespectadores que permanecem em seus lares, o horário, no entanto, é bastante penoso à maioria dos torcedores que se sacrifica para comparecer às partidas. Além do trabalho na manhã do dia seguinte, o horário dificulta a volta do estádio para a casa, uma vez que o sistema de transportes, em especial o metrô, deixa de funcionar durante a madrugada, uma das marcas da má qualidade do serviço público no país.

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Manifestação organizada pela Gaviões da Fiel no Vale do Anhangabaú contra os clássicos com torcida única, pela redução da violência, pela prisão dos envolvidos na máfia da merenda e pelo fim da ditadura nos estádios de futebol. Foto: Fábio Soares/futeboldecampo.net.

Essa reivindicação, aparentemente pontual, extrapolou seu significado inicial. Já no mês de fevereiro, as faixas contra a Rede Globo geraram muita polêmica. No dia 11 daquele mês, em partida válida pelo Campeonato Estadual, o Corinthians joga à noite na sua arena contra o modesto time do Capivariano. Enquanto a bola rolava, policiais avançavam sobre o setor atrás do gol, onde ficam os Gaviões, e retiravam as faixas à força. Os dizeres estendidos pelos torcedores contra a rede de televisão são confiscados pela PM, sob a justificativa de que infringem artigos do Estatuto do Torcedor. O tumulto entre a Polícia Militar e os Gaviões se instaura e o caso volta a gerar discussão, com versões diversas por parte da opinião pública.

Setores importantes da imprensa, no entanto, colocam-se contra a repressão policial e consideram o direito à manifestação dos torcedores uma atitude legítima dentro dos estádios. Assim, a repercussão do protesto tem desdobramentos na mesma semana, dias depois do ocorrido, e volta a acontecer no mesmo cenário de Itaquera, na zona leste paulistana. Imbuídos da missão de estender a faixa a qualquer custo, os Gaviões furam a revista da PM e voltam a polemizar no final de semana seguinte.

A ação era considerada estratégica, pois se tratava de um “majestoso”, isto é, de um clássico a ser disputado contra o São Paulo Futebol Clube. No dia 14 de fevereiro, na Arena Corinthians, uma tarde de domingo, as faixas brancas com inscrições em preto são novamente estendidas. O jogo foi desta feita interrompido pelo juiz, que ordenou ao capitão do time alvinegro que se dirigisse à área em que se aglomeravam os torcedores organizados, com o pedido de que os Gaviões terminassem com aquela manifestação. A solicitação do atleta não foi atendida pela torcida e mesmo a polícia, acuada pela visibilidade do espetáculo e pela reprovação de seus atos por parte expressiva da imprensa na partida anterior, dessa vez não ousou intervir nem confiscar o material dos torcedores.

Surpreendida com o incidente, a estratégia inicial da emissora no momento da transmissão foi omitir o que acontecia, sem mostrar as imagens do que estava a ocorrer. O ocultamento televisivo não foi bem sucedido, haja vista que a mídia escrita voltou a dar ampla cobertura e as redes sociais imediatamente contribuíram para que o caso ganhasse destaque. No dia seguinte, a cobertura da mídia registrava em fotos as mensagens dos torcedores: “Futebol, refém da Globo”, “Globo manipuladora” e “Rede Globo, o Corinthians não é o seu quintal”.

A continuação do texto será publicada no dia 07/09.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Felipe Tavares Paes Lopes

Graduado em Comunicação Social (ESPM) e em Filosofia (USP). Mestre (PUC-SP) e doutor (USP) em Psicologia Social. Pós-doutor em Sociologia do Esporte (Unicamp). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e pós-dourando no CPDOC-FGV. Realiza pesquisa sobre o movimento de resistência ao "futebol moderno" com auxilio da Fapesp.

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; LOPES, Felipe Tavares Paes. Diário da arquibancada: um relato dos protestos dos Gaviões da Fiel no primeiro semestre de 2016. Ludopédio, São Paulo, v. 87, n. 2, 2016.
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