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Dibradoras, Pussy Riot, Nanette de Hannah Gadsby e a Copa de 2018

Max Filipe Nigro Rocha 23 de julho de 2018

Desprevenido – tinha acabado de voltar de viagem de férias com a família – eu estava entretido com um dos meus passatempos favoritos, a mecânica automotiva. Meu prazo para a elaboração desse texto da coluna do Ludopédio se esgotava e os temas que eu havia considerado abordar na coluna já haviam sido debatidos nesse mesmo espaço com competência maior que a minha.

Minha esposa já havia comentado a respeito de um stand-up, mas a conversa não havia ido muito além disso. Mas foi ontem à noite ela começou a assistir ao espetáculo Nanette da comediante australiana Hannah Gadsby disponível no Netflix, e que atualmente tem tido uma grande repercussão tanto nos grupos feministas quanto em parte da sociedade como um todo.

 

 

Se de início eu oscilava entre uma espiadela na televisão e o foco no que eu estava fazendo, aos poucos Hannah conquistava minha plena atenção. Com um humor ácido, ela conseguia arrancar de mim risadas nervosas com piadas que não eram exatamente engraçadas.

Em sua condição de mulher, comediante e lésbica, ela relata diversos casos que expõe as estruturas sociais atuais que reproduzem a misoginia, o machismo, a gordofobia, além dos preconceitos em relação à sexualidade, às questões psíquicas e ao gênero feminino.

Até o momento, você, escasso leitor/leitora, pode estar se perguntando qual a relação com o futebol e seu entorno, não é mesmo? Pois foi por meio desse espetáculo que questões tão presentes na vida cotidiana dessas mulheres puderam ser vivenciadas por mim, mesmo que devidamente mediada pela televisão e restrito a um intervalo de pouco mais de uma hora.

Se até então a luta das mulheres contra o sexismo e a reprodução de padrões clássicos do homem branco heterossexual tão disseminados durante os grandes eventos esportivos como a Copa da Rússia de 2018 contavam com meu apoio e simpatia, foi só por meio da narrativa de Hannah que foi possível me outrar-se e ser profundamente tocado por essas questões.

Como afirma a comediante australiana, “rir não é o remédio. O que cura são as histórias. O riso é só o mel que adoça o remédio amargo.” Suas histórias me deixaram mais sensibilizado diante dos dramas humanos que pudemos observar durante a última Copa do Mundo de futebol masculino.

Não fosse assim, como continuar fechando os olhos para o grande número de assédio à jornalistas mulheres por parte de homens que, protegidos sob o argumento de que tudo não passa de uma brincadeira, buscam beijá-las a força durante o exercício de sua atividade profissional e em plena transmissão televisiva?[1] Como considerar normal a predominância quase absoluta de homens nas transmissões dos jogos na condição de narradores e comentaristas? Quais as justificativas para a ausência completa de árbitras de futebol durante a competição? [2] E para aqueles que acompanham mais de perto o universo do futebol, não é possível reconhecer o papel fundamental exercido pelo excelente site Dibradoras na construção de uma leitura que se apresente como contra hegemônica ao predomínio masculino no esporte?

Recentemente, a candidata à Presidência da República Manuela D´Ávila gravou um vídeo no qual fazia um exercício interessante. Selecionou perguntas comumente feitas a ela devido à sua condição de mulher e redirecionou-as a um fictício político do gênero masculino. Em que medida esse vídeo provocativo difere da inversão proposta por Hannah em Nanette ou das locuções dos jogos da Copa de Isabelly Morais, Renata Silveira e Manuela Avena pela FOX Sports?

https://www.facebook.com/manueladavila/videos/2849931495055292/

Acredito que só a tensão e o estranhamento gerados por essa inversão de papéis possam gerar a reflexão e a transformação dos parâmetros sociais atuais. Ao nos depararmos com outras perspectivas que fogem do modelo social hegemônico, nos é possível, além de outrar-se, desconstruir perspectivas que até então eram tidas como naturais.

As narrativas individuais ou coletivas dessas mulheres que desafiam o status quo futebolístico nos parece um instrumento essencial de disputa de significados e de transformação social. Seja na arbitragem, nas locuções, nas reportagens ou na torcida, a presença feminina é uma tensão fundamental e necessária para que os espaços de representação sejam democratizados. [3]

Ou não consideraremos fundamentalmente desestabilizador o fato do grupo feminista Pussy Riot ter realizado a invasão de campo na final da Copa do Mundo de 2018?

 

Se o futebol é um local privilegiado de observação das questões sociais, por que não investigar por meio dele as estruturas de manutenção de uma ordem social que é sistematicamente excludente? Parece-nos que é possível por meio da análise desse esporte tanto evidenciar o protagonismo masculino hegemônico atual quanto indicar a luta constante por visibilidade de outras narrativas dissonantes, mais democráticas e plurais.


[1] https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2018/06/20/mulheres-relatam-assedios-e-abusos-no-pais-da-copa/ acessado em 22/07/2018.

[2] https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2018/06/26/por-que-nao-ha-mulheres-na-arbitragem-da-copa-nem-no-var/ acessado em 22/07/2018.

[3] https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/ acessado em 22/07/2018.

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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. Dibradoras, Pussy Riot, Nanette de Hannah Gadsby e a Copa de 2018. Ludopédio, São Paulo, v. 109, n. 30, 2018.
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