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Diego Armando Maradona Franco (30.X.1960-25.XI.2020)

1. Quando terminava a minha infância, fiquei sabendo da existência de Maradona. Estávamos em 1979 e Diego foi, junto com Ramón Díaz, o protagonista da conquista do Campeonato Mundial de Juniores, jogado no Japão. Na peleja decisiva contra a seleção da hoje não mais existente União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o gol que fechou o placar de 3 a 1 para os argentinos foi daquele que viria a ser, para sempre, El Diez. Um ano antes, ele havia sido preterido por César Luis Menotti no time que vencera a Copa do Mundo de 1978, jogada em casa, embora houvesse participado de dois jogos preparatórios. El Flaco considerava imaturo o garoto que nascera em Lanus, crescera em Vila Fiorito e atuava pelo Argentinos Juniors, para o enfrentamento de tudo o que significava a disputa da competição. Havia uma tremenda expectativa entre os Hermanos, que jamais haviam vencido uma Copa, além de o selecionado estar sob forte pressão da ditadura que governava (e saqueava) o país.
Ainda em 1979, Diego envergou a camiseta número 10 da equipe principal em um jogo amistoso contra a seleção da FIFA, em Buenos Aires, abrindo o placar com um golaço, por cobertura, sem chances para Leão, o goleiro brasileiro que atuava pelo time internacional. Não foi o bastante, no entanto, para a vitória dos locais, já que no segundo tempo Zico saiu do banco para forçar um gol contra dos argentinos e marcar o segundo, o da vitória, completando cruzamento do também brasileiro, e igualmente flamenguista, Toninho.

2. Quando terminava a minha infância, fiquei sabendo da existência de Maradona. Isso foi antes da Copa de 1990, mas eu era muito menina e não tinha a dimensão de quem ele era. Fui aprendendo a conhecê-lo tendo como companhia as interpretações televisivas sobre sua controversa figura, sobre o gol de mão, principalmente, já que ainda não estavam escancarados os problemas que se seguiram depois. Entretanto, foi suficiente para que eu, torcendo pelo Brasil e já com a presença incontornável do futebol em minha casa, soubesse que Maradona era um inimigo a ser temido. Na Copa da Itália, a de 1990, eu já gostava do futebol e ele já me fazia sofrer. Talvez aquele jogo tenha sido meu primeiro sofrimento futebolístico de tantos que se seguiram. Lembro-me com memória quase fotográfica do passe para Caniggia. Se fecho os olhos, vejo o loiro cabeludo avançando e recebendo um passe mais que preciso. Eu estava em Joaçaba, cidade do meio-oeste de Santa Catarina, feliz com a possibilidade de conhecer outros lugares, já que era muito difícil, naquele tempo, viajarmos. Convivia com uma amiga/prima emprestada que não tinha a mesma vontade que a minha. Ela queria correr e brincar e eu queria ver o jogo, torcer. Meus tios e os pais dela o assistiam na imponente televisão da sala, lugar de destaque e importância que o aparelho tinha e ainda tem na vida dos brasileiros. E eu não entendia como ela não queria estar com eles. Eu levava um galho de arruda na orelha (odeio seu perfume, talvez desde aquele dia), ainda sem conseguir não apelar aos céus pelos meus times, algo que provavelmente herdei de minha mãe, tão católica quanto mandigueira, principalmente quando seu Flamengo joga. Hoje finalmente aprendi a pensar e torcer mais racionalmente (ou não). Mas, Maradona continuou por muito tempo cativando meus olhares. Pensar em esporte, mas principalmente em futebol, nunca mais esteve descolado de sua imaterial presença.

Maradona com a camisa do Napoli. Arte: Emilio Sansolini.

3. Como sabemos, o domínio das técnicas corporais é requisito para a criação. Sem ele não há controle da bola, e então a jogada improvável não acontece. Com ele é possível depois fazer a pelota passar por cima da cabeça, driblar todo um meio-campo, enganar numerosos goleiros. Não foram poucos os que se enredaram nas tramas de Maradona. Perguntado sobre uma mensagem a ser dita quando morresse, disse que em sua lápide poderia estar escrito: Obrigado à bola! Ele deve mesmo agradecer. Mas, a bola também lhe deve numerosos tributos.

4. Uma existência foi pouco para Diego, para suas angústias e talentos, ele que nos deu tantas razões para nós mesmos existirmos. Hans Ulrich Gumbrecht não o tomou como exemplo por acaso. As jogadas de epifania, aquelas em que formas emergem a partir do corpo – amado e renegado – é que deram presença real em tempo real para o ídolo. Quando Maradona ignorou o meio-campo brasileiro em 1990, driblou Alemão, livrou-se de Dunga e passou a bola por entre Ricardo Gomes e Ricardo Rocha, todos incapazes de pará-lo, para Claudio Caniggia, o tempo parou. Tensão concentrada, descontinuidade temporal, sem que soubéssemos o que viria, já que não havia forma pré-estabelecida. Foi Maradona e seu corpo que concederam à jogada sua substância e a fizeram acontecimento. Em vingança fomos ensinados a odiar Diego, a compara-lo com Pelé, a reproduzir suas quedas apontando a fraqueza de seu corpo, que era igualmente a nossa, corpo que era também sua fortaleza. A bela jogada nos aproxima de Maradona, não porque possamos repeti-la, mas porque com ele compartilhamos a experiência de sua divindade.

5. Assim como os deuses gregos, Maradona não conseguiu abrir mão de sua porção de humanidade. De seu corpo desejante, mas também de sua paixão pelos homens. Foi a voz daqueles que não tinham voz, das villas de seu país, dos trabalhadores do esporte, dos italianos do Sul, torcedores da Napoli. Aliou-se aos perseguidos e não compreendidos. É incrível que tenha nos deixado exatamente quatro anos depois de Fidel Castro. Em um país como o nosso, que insiste em dizer que política e esporte não se misturam e, quando convém, pune aqueles que elevam sua voz revoltosa, Maradona nos exigiu escutar mesmo o que não desejamos, a virar o rosto para aqueles que aprendemos a ignorar. Ele ensinou a um país como o nosso, onde o futebol tem peso inegável, como na sua amada Argentina, que é preciso lembrar dos próprios deuses caídos, que ganharam e perderam como ele. Como Garrincha, anjo torto, tão divino quanto esquecido. Deuses não morrem.

Ilha de Santa Catarina, novembro de 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danielle Torri

Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

TORRI, Danielle; VAZ, Alexandre Fernandez. Diego Armando Maradona Franco (30.X.1960-25.XI.2020). Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 64, 2020.
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