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Diga adeus ao futebol feminino: novas perspectivas sobre o futebol

Cláudia Samuel Kessler 16 de novembro de 2015

Falar sobre o futebol de mulheres é tarefa difícil quando são empreendidos esforços para aposentar um discurso circular e repetitivo com o qual se acostumou a apresentar essa modalidade como inferior. É preciso defrontar-se com uma nova perspectiva: o desafio na superação do que pode ser denominado como “discurso das ausências” (KESSLER, 2015) e uma renovada compreensão do futebol de mulheres brasileiro como prática esportiva que está constantemente a (re)fazer-se, a (re)criar-se.

Considero necessários os esforços em desconstruir a necessidade de um automático espelhamento do futebol de mulheres em relação à “matriz espetacularizada” de homens (DAMO, 2007), a qual é considerada “mais elevada” ou imprescindível. Consequentemente, questiono a imposição dos valores pertencentes ao complexo esporte-mídia-comércio (MESSNER, 2002). O futebol de homens, ao contrário do que se propagandeia, está longe de ser um oásis. Dados apresentados por Soares et al (2011) demonstram que 84% dos jogadores brasileiros de futebol recebiam até mil reais, em 2009. Além disso, na atual organização deste futebol, diversos jogadores sofrem com problemas tais como a alienação familiar, a restrição de formação escolar formal e a violação de direitos.

O futebol de mulheres é rico em potencialidades, mas frequentemente analisado e (in)visibilizado a partir de suas ausências. Ele não é apenas um conjunto de faltas, deficiências, carências e todos os outros sinônimos que tentam colocá-lo cada vez mais em inferioridade, quando em relação aos padrões de um futebol autorizado a ocupar as arenas e estádios “padrão FIFA”. Ele não pode ser visto apenas pelas diferenças em relação ao número de praticantes, o valor das premiações ou as oportunidades de projeção profissional nacional e internacional. O futebol de mulheres deve ser entendido pelas suas diferenças culturais e históricas, bem como pelos demais elementos que o constituem, devendo-se evitar comparações com um parâmetro de futebol espetacular de homens, que é uma exceção em relação a todas as demais modalidades esportivas brasileiras.

Rio de Janeiro - RJ - 17/10/2015 - BRASILEIRÃO CAIXA 2015 - ESPORTES - Sexta rodada da Segunda fase do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino “Brasileirão Caixa 2015”, Jogo 63; Flamengo/RJ x Rio Preto/SP, realizado no estádio Arthur Antunes Coimbra - CTZ no Rio de Janeiro, RJ. Foto: MARCOS DE PAULA / ALLSPORTS
Mulheres disputam a bola na partida entre Flamengo e Rio Preto/SP pelo Campeonato Brasileiro de 2015. Foto: Marcos de Paula – ALLSPORTS.

Mas e o que é ser uma futebolista? Pretendo aqui provocar algumas reflexões sobre o uso da expressão “futebol feminino” e questionar os usos terminológicos corriqueiros. O que está associado ao “feminino” e o que está atrelado a ele quando se refere ao feminino no futebol? O que seria uma mulher feminina e qual o conceito de feminilidade adotado para considerá-la “adequada” aos padrões? Seriam as mulheres reféns de uma feminilidade hegemônica ligada à beleza dos atributos estéticos, comumente exposta nas capas de revista ou matérias publicitárias? Após realizar um estudo etnográfico com mulheres porto-alegrenses, me atrevo a dizer que as masculinidades e feminilidades postas em ação extrapolam o que entendemos como feminino ou masculino. Mesmo quando conformadas aos padrões de vestimentas, as práticas corporais dessas futebolistas podem subverter a feminilidade heteronormativa, em protagonismos presentes nos corpos e subjetividades apresentados em campo.

Caso alguém se sinta incomodado/a com uma nova expressão para se referir ao futebol praticado por mulheres, e talvez se pergunte no decorrer da leitura “Por que as modalidades esportivas deveriam ser nomeadas sem utilizar os gêneros binários (masculino/feminino)?”, prefiro inverter a questão e indagar o que já está instituído: Não haveriam formas de pensar esportes de alto rendimento mistos, sem a separação por naipes? Não haveriam formas de integrar homens e mulheres no futebol em fases além das do aprendizado inicial? E quais são os esforços que têm sido feitos para uma mudança em relação a isso, no Brasil e no mundo?

Quais os parâmetros que são utilizados para colocar os homens como um patamar universal de excelência futebolística? Como podemos sair das pré-concepções que continuam a reforçar que todos os homens ou a maioria deles são mais fortes, mais potentes e mais rápidos? Ao nascer homem, já estariam todos dotados de habilidade e precisão no passe? Estariam todos os homens habilitados a jogar futebol ou seriam todos eles aceitos neste jogo? E onde estão os transexuais, os gordinhos, os desajeitados, os homossexuais, os fracos e os “pernas tortas”? E por que ainda eles são excluídos do futebol espetacular, tão registrado, comentado e monetizado?

Osasco - SP - 14/10/2015 - BRASILEIRÃO CAIXA 2015 - ESPORTES - Quinta rodada da Segunda fase do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino “Brasileirão Caixa 2015”, Jogo 58; Adeco/SP X São José/SP, realizado no estádio José Liberatti, em Osasco, SP. Foto: EVELSON DE FREITAS / ALLSPORTS
Lance da partida entre Adeco/SP e São José/SP pelo Campeonato Brasileiro de 2015. Foto: Evelson de Freitas – ALLSPORTS.

O exercício físico realizado em performances de excelência é resultado de uma educação. Educação não apenas dos corpos, mas também dos sentimentos e dos gostos, com a ampliação da importância que o esporte assume na vida das pessoas. Indago, portanto: o suor, a lágrima, a dor e o empenho teriam gênero? E quais mudanças haveriam entre gêneros? De que maneira a separação de gêneros tem contribuído para a diversidade no futebol? E como essa separação influencia também nas questões referentes à sexualização de corpos esportivos?

As questões referentes à terminologia suscitam novos debates, com repercussões que ainda podem e devem reverberar. O debate saudável sobre essa temática abre espaço não apenas para as mulheres, mas também para outras masculinidades e feminilidades expressadas nos campos de futebol. Expressões de gênero que fogem à norma e tornam o futebol um esporte ainda mais rico. Mas e qual riqueza move este futebol? O futebol atual é o quê? São as empresas multinacionais, os clubes tradicionais, os salários milionários ou apenas as torcidas gigantescas que apoiam o futebol de espetáculo? O futebol está na boca do povo, nos noticiários, na identidade nacional, diriam alguns. Mas que futebol é esse?

Proponho reflexões não apenas em relação à terminologia, mas na perspectiva adotada para analisar o futebol de mulheres. Digo adeus ao “futebol feminino”, por entendê-lo como expressão que historicamente tem posicionado as futebolistas em margens discursivas (ORLANDI, 2002), com direito a contínuos silêncios ou à mera reprodução de um “discurso de ausências”. Entendo que ainda são necessárias medidas que incentivem seus dizeres, que visibilizem seus fazeres. E se ainda restarem dúvidas sobre onde este futebol está, ele está próximo aos olhares mais atentos. Está nas praças, nos jardins, nos parques, nos colégios, nos clubes, nos condomínios residenciais, nas ruas, nas mídias alternativas e também nas pesquisas acadêmicas.

* Gostaria de expressar meus agradecimentos a dois colegas que gentilmente contribuíram com a leitura atenta deste texto: Ariane Corrêa Pacheco e Ulisses Corrêa Duarte.

Referências:

DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2007.

KESSLER, Cláudia Samuel. Mais que Barbies e ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013.

MESSNER, Michael. Taking the Field: women, men and sports. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2002.

SOARES, Antonio Jorge; MELO, Leonardo; COSTA, Felipe; BARTHOLO, Tiago; BENTO, Jorge. Jogadores de futebol no Brasil: Mercado, formação de atletas e escola. Rev. Bras. Ciênc. Esporte.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Cláudia Kessler

Jornalista e cientista social. Doutora em Antropologia Social (UFRGS).

Como citar

KESSLER, Cláudia Samuel. Diga adeus ao futebol feminino: novas perspectivas sobre o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 77, n. 7, 2015.
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