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Discussões de gênero no tabuleiro: xadrez e mulheres

Wagner Xavier de Camargo 7 de março de 2021

A luta pela equiparação de oportunidades para mulheres no mundo dos esportes não pode parar. Mesmo para modalidades não tão midiáticas, vale defender espaços cada vez mais amplos para elas. Uma minissérie da Netflix vai trazer o xadrez e deixar essa questão nas entrelinhas: “O Gambito da Rainha”, adaptação do livro homônimo de Walter Tevis (The Queen’s Gambit, de 1983), estreou ainda em 2020 e logo alcançou tremendo sucesso. Ela é dirigida por Scott Frank e co-produzida por ele e Allan Scott.

A história se passa na década de 1960, nos Estados Unidos, e gira em torno da modalidade e de seu universo centrado em figuras de enxadristas homens. Como pivô da trama está Elisabeth Harmon, oriunda do Kentucky (interior do país) e personagem da fantástica Anya Taylor-Joy, que com seus olhos grandes e semblante único, garante boa dose de surpresas enigmáticas em falas e posicionamentos. Enquanto escrevo este texto, Taylor-Joy acaba de receber sua primeira estatueta de melhor atriz no Globo de Ouro.

Gambito da Rainha
Foto: Divulgação

O enredo é muito bem construído e captura desde o início: Harmon é uma garota que fica órfã com 9 anos e assim é enviada para o que conhecemos como “orfanato”, dormitório-escola que ofertava crianças para adoção. Não fala muito e seu silêncio provoca curiosidade. Um misto de melancolia e abandono tomam conta também de fãs da minissérie, que, inclusive, desde o princípio torcem para um final feliz da pequena personagem.

Logo um tabuleiro de xadrez entra em cena: um zelador do local, recluso no porão enquanto as atividades escolares acontecem em andares superiores, joga pacientemente durante todas as manhãs. Harmon, num dos dias em que vai limpar o apagador da professora, visualiza a cena e fica curiosa sobre como aquilo funcionava. A partir daí uma relação de aprendizagem (mas também de afeto) se estabelece entre ela e o Sr. Schaibel, interpretado por Bill Camp.

O livro original foi publicado em 1983, nos últimos anos da Guerra Fria, e seu enredo se desenrola na década de 1960, de forte tensão entre as superpotências, ex-União Soviética (hoje Rússia) e EUA. Tal década começou com disputas ferrenhas em todos os setores da vida entre ambos os países, com a Crise dos Mísseis (que envolveu Cuba e seu território) e com uma corrida armamentista cada vez mais tecnológica e agressiva. Basta lembrar que o desfecho disso será a chegada dos americanos à Lua, em julho de 1969.

A história fictícia que envolve Harmon tem, como pano de fundo, os torneios de xadrez e a rivalidade estadunidense com os soviéticos. Como jogadora, faz uma trajetória como qualquer outra/o atleta, desde a descoberta do interesse esportivo/competitivo na infância, passando pelos campeonatos locais e estaduais, até alcançar vagas para participar de competições de grande envergadura, como o Torneio de Campeões, no ano de 1968, na então União Soviética. Lá vai enfrentar, no match final, o campeão Vassíli Borgov (interpretado por Marcin Dorocinsky).

Quando pequena, Harmon é instruída pela mãe a “não depender de nenhum homem”. Esse é um traço interessante, possivelmente oriundo das vozes do feminismo de ‘segunda onda’, que naquele momento histórico sacudiam os EUA e outros lugares do mundo. Quando alguém lhe pergunta, já no Torneio dos Campeões, se ela não se intimidava com o grande (e absoluto) número de jogadores homens, apenas diz: “Eu não ligo”.

Outras temáticas circundam a trama, algumas mais centrais e outras mais periféricas, porém retratam o período citado anteriormente. A própria protagonista se envolve com remédios, que começam a pulular a partir de uma indústria farmacêutica em plena expansão, e bebidas, que lhe são ofertadas pela mãe adotiva, por colegas jogadores e por outras personagens. O alcoolismo e os barbitúricos acabam trazendo prejuízos para a enxadrista, que é enredada numa dependência dessas substâncias – aliás, bem como jovens atletas acabam se envolvendo até hoje.  

Há no abuso das drogas por parte de Harmon algo da construção de uma excentricidade como pessoa e atleta; algo que talvez diretor e produtor quiseram sugerir que a genialidade está para a loucura e apenas na potencialização do intelecto ao extremo, mediante estímulos externos, é que isso pode ser obtido.

Ao que tudo indica, Harmon representaria Robert James ‘Bobby’ Fischer, um dos melhores enxadristas de todos os tempos, e Borgov seria Boris Spassky, jogador russo contemporâneo de Fischer. Ambos disputaram o título de campeão mundial, em 1972. A relação entre realidade histórica e ficção é da Revista Galileu, que resgata o fato de Fischer ter vencido a partida de 1972 a partir do reconhecimento de Spassky da derrota sofrida, um gesto semelhante ao que faz Borgov no enredo em relação a Harmon.

Bobby Fischer e Boris Spassky em 1972. Foto: Reprodução Twitter

De qualquer forma, para amantes do esporte, a minissérie vale ser assistida, não só porque é uma produção de qualidade (em termos de cenas, diálogos, roupas, paisagens bem construídos), mas porque é raro encontrarmos obra filmográfica desse naipe, ambientando os bastidores esportivos. Para quem gosta de xadrez, deixo a sugestão de assistir com pausas a última partida, entre Harmon e Borgov, na qual aparece o famoso movimento do “gambito da dama” feito por ela e aceita pelo russo.

O nome da série vem dessa jogada, que é uma possibilidade de abertura do grupo dos peões da dama, e a partir da qual o oponente pode aceitar (gambito da dama aceito) ou refutar (gambito da dama recusado). Aqui talvez possa residir uma pequena crítica à minissérie: faltam cenas mais demoradas, e talvez mais focalizadas, nos tabuleiros e nas jogadas. Porém, esse é o jogo encenado, que encanta tanto quem não sabe ou não liga para o xadrez, quanto aqueles/as que o sabem, e ficam curiosos/as para ver como algumas jogadas se desdobrarão.

Em que pese hoje se discutir muito sobre a influência de outros feminismos e mesmo a forte presença das reivindicações do feminismo negro, é fundamental uma obra de ficção como essa trazer uma personagem mulher, cuja protagonista tem origem latina (Taylor-Joy desde criança morou na Argentina), além de aparecer num canal de streaming muito acessado por jovens. Dizem alguns blogs que, só no primeiro mês de estreia, “O Gambito da Rainha” foi assistida por mais de 60 milhões de assinantes da Netflix.

Para terminar, quero destacar algo que me intrigou e que não li ou vi comentado em nenhum outro espaço na internet: quando Harmon era conduzida para o aeroporto a fim de regressar aos EUA, ela pede para descer do carro e caminha por uma ampla praça, na qual encontra um grupo numeroso de anciãos russos, todos se organizando para jogar xadrez em tabuleiros espalhados em mesas simples. Ela prontamente é reconhecida como “Liza”, aclamada pelo coletivo, e convidada a jogar; ao se sentar, diz em russo: “vamos jogar?” e a série termina. Em minha leitura, e apesar de Harmon ter aprendido russo no enredo ficcional e talvez ter ficado “conhecida” depois daquele torneio em Moscou, não consegui não pensar na referência de clássicos do cinema que sugerem, em momentos finais, que o herói ou a heroína era(m) espiões russos implantados em solo americano – assim foi com Angelina Jolie, em Salt (de 2010), e com Kevin Costner, em Sem Saída (de 1987), entre alguns outros. Seria Harmon uma espiã-enxadrista infiltrada?

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Discussões de gênero no tabuleiro: xadrez e mulheres. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 14, 2021.
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